Sábado, 6 de dezembro de 2025
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O presidente do Banco Central (BC), Gabriel Galípolo, conseguiu o que parecia impensável para quem imaginava que ele agiria de modo diferente do seu antecessor, Roberto Campos Neto. Num esforço explícito de acompanhar o mercado financeiro e se converter em reprodutor da lógica do rentismo, Galípolo se antecipou de forma discutível para avisar que os juros, hoje no inacreditável patamar de 15% ao ano, assim devem permanecer “por longo período”. Ou seja, não apenas fez a pregação em linguagem de banqueiro central, defendendo o combate à inflação e o trabalho para convergi-la à meta, como tratou de ir além das expectativas e mostrar que é o mais duro de todos, em benefício sabe-se de quem. Não lhe bastou dizer que não pode ou não quer definir prazos para que o Comitê de Política Monetária (Copom) inicie uma trajetória de queda da taxa Selic, mas reforçou que vai levar um tempo longo e indeterminado para fazê-lo. Com essa opção, mostra que ou tem bola de cristal ou age na direção do mercado financeiro. E, na prática, como farol do próprio mercado que alimenta as expectativas mais favoráveis ao rentismo, o presidente do BC ajuda a precificar os próximos meses. Nas alturas.

Trata-se de algo excepcional, uma forma que Galípolo parece ter encontrado para explicitar a hegemonia do capital financeiro sobre nossa política monetária e o Banco Central. A recepção e a perplexidade no tratamento do BC e do Copom em relação à inflação são inevitáveis, pois é como se nada tivesse mudado na instituição depois de sua nomeação, pelo governo Lula, juntamente com a maioria dos membros da diretoria. É inconcebível uma declaração antecipada de que os juros se manterão altos por longo tempo, especialmente quando se pode constatar, segundo os dados mais recentes, que a inflação começou a baixar. A meta de inflação, como se sabe, é de 3%, com a previsão de margem de 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo. Portanto, estamos falando em 4,5% como teto da meta. O próprio mercado sinaliza para 2027 uma expectativa de inflação em torno de 3,97%. Nem os representantes da Faria Lima parecem tão conservadores quanto Galípolo. 

O presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo. <br> (Foto: Pedro França/Agência Senado)

O presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo.
(Foto: Pedro França/Agência Senado)

Exceto aqueles interessados no rentismo, muitos economistas criticam, com razão, essa meta de 3%. Definida aleatoriamente pela dupla Paulo Guedes-Roberto Campos Neto, a meta é irreal, foi um erro e merecia ser discutida tecnicamente, já que impõe um custo demasiadamente alto, restringindo atividade econômica e gerando distorções. Mas o sincericídio de Galípolo é gritante, com o presidente do BC demonstrando com quem está efetivamente preocupado: “Se você falar que aceita [inflação de] 4,5%, a sensação do mercado é de um BC que não persegue [a meta de] 3%, mas sim 4,5%, e, quando ocorrer alguma surpresa, a inflação irá estourar os 4,5%. Significa que a moeda é menos bem defendida pelo BC e tem tendência a perder mais valor”. E assim, para o “mercado” não achar que o Banco Central não persegue a meta e desconsiderando a possibilidade de enquadrar-se na banda superior, algo plenamente previsto nas regras a que o BC se submete, Galípolo deixa claro que enfrentaremos longo tempo nesse patamar restritivo dos juros. Da última vez em que a Selic esteve perto das alturas como agora, entre 2015 e 2016, a taxa ficou estacionada por quase 15 meses em 14,25% ao ano.

Apesar do negacionismo do BC, a economia e o País resistem, mas ao ver a autoridade monetária avisar que a curva de juros não baixará por longo tempo, a economia inevitavelmente começará a esfriar com mais intensidade, juntamente com o inevitável crescimento da dívida pública. Desse jeito, o capital financeiro, já satisfeito em trabalhar para encurralar o governo do presidente Lula, expropriar a renda nacional e esconder o fato de ter virado um modo de vida para 1% dos privilegiados do País, nem precisará mais chamar sua cavalaria habitual. Já tem o próprio presidente do BC nomeado por Lula para seguir adiante no projeto de garantir os benefícios devidos ao rentismo e transferir para as despesas obrigatórias e o custeio do governo e os programas sociais a suposta responsabilidade por altos juros, inflação, déficit público e dívida pública. Como tenho escrito, o Brasil é viciado no rentismo e na ortodoxia monetária, parte de uma campanha intensiva que já dura longas décadas e que expressa a ideia falaciosa de insulamento burocrático, segundo a qual decisões do Banco Central são essencialmente técnicas, isentas e baseadas em dados, não capturadas por interesses políticos dos governos de ocasião e situadas acima do bem e do mal (onde o “bem”, claro, é o mercado, e o “mal” está na política e no governo). 

Não poucos esperavam que Galípolo decidisse superar tal vício. E assim o presidente do BC passa a funcionar como uma espécie de porta-voz disposto a favorecer os liberticidas do mercado e, de quebra, ajudar a agenda do agronegócio e de parte do Congresso e da direita brasileira, que têm, como desejo de fundo para 2026, eleger um presidente que trabalhará por um Brasil privatizado, sem a Petrobras e os bancos públicos, sem vinculação do salário mínimo com a Previdência que defendem privatizar, sem um piso de gastos para a saúde e educação, que nos Estados já privatizam no máximo, mantendo a tendência atual de transformar o Brasil num país exportador de alimentos e energia – uma regressão para o século XIX. Essa turma não aceita enfrentar o déficit público com uma reforma tributária e financeira. São radicalmente contrários à isenção de imposto de renda para quem ganha R$ 5 mil, a cobrança de impostos do estoque de riqueza e da renda, de lucros e dividendos, a redução das despesas tributárias e de pôr fim ao descaminho de uma taxa Selic na casa dos 15%, que custa 8% do PIB. Cerca de R$ 1 trilhão é gasto pelo governo pelos excessivos juros, assegurando a festa do rentismo.

Nosso Banco Central tem exercido essa função com esmero. Há poucas semanas, seu presidente foi aplaudido por bolsonaristas em um encontro com a Frente Parlamentar do Empreendedorismo. “Ele mais parecia um presidente do Banco Central de Bolsonaro”, disse, com sorriso no rosto, um deputado do PL. Nosso BC ignora o que acontece hoje mundo afora. As economias e os governos dos EUA, Europa e Japão abandonaram os dogmas da década de 1980, em cenário totalmente mudado pela crise da globalização e da financeirização do capitalismo no contexto da ascensão da China, da Índia e do Brics. A própria União Europeia publicamente coloca em questão a soberania do dólar como moeda de reserva. Com o fim dos acordos de Bretton Woods abre-se uma disputa pela hegemonia mundial, com a China a caminho de se tornar uma alternativa real junto com o Brics. O ex-presidente Joe Biden emitiu trilhões de dólares para retomar o lugar da “América” no mundo, iniciou a reindustrialização que agora Trump elege como prioridade ao lançar a guerra tarifária e reduzir em US$ 4 trilhões os impostos, agravando o déficit e a dívida pública norte-americana.

Se na Europa vemos subsídios à alimentação, energia e aluguéis, rearmamento, política de reindustrialização, além de administração da taxa de juros e câmbio – como, aliás, é o que pretende Trump com suas tarifas, da mesma forma que Ronald Reagan, na década de 1980, impôs ao Japão a valorização do yen – hoje cada país busca crescimento, inovação e autossuficiência em alimentos, energia, finanças e tecnologia. No caso dos EUA, vale tudo, inclusive ameaça e uso da força militar e das “Bigs Techs”, intervenção em eleições, anexação ou ocupação de países ou regiões, imposição de bases militares. Enquanto isso, no Brasil, o BC age como se nada disso estivesse ocorrendo e aproveita para negar realidades, como a constatação de que, no mundo atual, a política monetária, inclusive a do FED norte-americano, não tem o efeito contracionista ou anti-inflacionário do passado. E assim o nosso BC insiste numa meta de inflação de 3%, também comprovadamente irreal e nunca alcançada, como podemos comprovar nas últimas três décadas. Fora o fato de que o FED e os bancos centrais de muitos países excluem os alimentos e a energia do cálculo da inflação, porque esses itens são mais sujeitos a variações voláteis.

O resultado é o círculo vicioso de sempre, com juros acima da inflação, do risco Brasil e dos juros internacionais, o que alimenta a dívida pública e seu serviço, tornando qualquer política monetária ineficaz e deixando o governo nas cordas, obrigando-o à busca de um déficit primário zero. Mas pelo menos Gabriel Galípolo pode dormir tranquilo, sabendo que, recorrendo a uma suposta bola de cristal, diz que os juros seguirão altos e restritivos, por longo tempo. É seu modo de assegurar que o mercado não achará algo nele diferente do que se espera do presidente do BC.

(*) José Dirceu foi ministro-chefe da Casa Civil no primeiro governo Lula (2003-2005), presidente nacional do Partido dos Trabalhadores e deputado federal por São Paulo.