Novo disco de Lady Gaga: entre Xuxa e Tati Quebra-Barraco
Novo disco de Lady Gaga: entre Xuxa e Tati Quebra-Barraco
“Ela é apenas uma americana cavalgando um sonho/ e ela tem xarope de arco-íris no coração”, diz a garota, e, não, a garota não é Xuxa num disco infantil dos anos 1980. Os versos xaroposos (em inglês) pertencem à faixa Highway Unicorn (Road to Love), do novo disco de Lady Gaga, Born This Way. De fato, Xuxa não terminaria o segundo verso acima do modo como Gaga termina: “Ela tem xarope de arco-íris no coração… que sangra”.
Divulgação

O planeta pop pode andar se engalfinhando, dividido entre os que amam e os que odeiam a segunda vinda da artista mais massificada e massificadora deste início de século. Podem até estar un tantinho menos eufóricos com sua mentora, diante da agressividade exacerbada deste Born This Way, especialmente em termos sonoros. Seja como for, a audição atenta desse parque de diversões (e de horrores) musical comprova: Lady Gaga ainda é a resposta.
As novas letras, de maneira geral, são espertas, perspicazes, à parte a inconsistência que perpassa muitas delas e a futilidade de a autora ser “a” estrela mundial destes 15 minutos. E ela senta no trono gostosamente, como quando pergunta, bem canastrona, em Heavy Metal Lover electroclash misturado com rock’n’roll à la Joan Jett ou Queen: “Você me amaria se eu governasse o mundo?”. Em mais de um sentido, você governa o mundo em 2011, minha filha.
Não é que Gaga seja propriamente uma Barack Obama ou um George Bush, Jr. Ela até tenta, por exemplo em Government Hooker, “puta governamental” ou algo que o valha. “Coloque suas mãos em mim, John F. Kennedy/ vou fazer você guinchar enquanto me pagar”, cospe, brincando de ser Marilyn Monroe. “Eu sou sua puta”, geme, e completa a sentença operando inversão bem a seu gosto: “Você é minha puta”. Waal, mr. president.
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“Eu posso ser garota, a não ser que você queira ser homem/ (…) eu posso ser mãe, a não ser que você queira ser pai”, provoca, refestelada no desejo de ultrajar. O raciocínio é sinuoso, mas nem um pouco nonsense: onde queremos papai-e-mamãe, Gaga é puta do presidente; onde queremos revolução, ela é o Papa; e assim por diante.
Governos à parte, as imagens que Gaga cria estão mais para o desgovernado. Ora ela se diz pônei, ora unicórnio – na capa vampiresca do CD, ela é uma motoca com cabeça loira descabelada. Seja quem ou o que for, o tempo todo a garota se cololoca como cavalo ou burro de carga, daqueles que carregam todo o peso do mundo nas costas. Se até aqui parecia estar atrás de mera e inconsequente diversão sexualizada, não demorou nadinha para que se reconfigurasse na narradora atormentada de Born This Way.
Os sintomas de turbulência interna extravasam em cada faixa, em especial na dicotomia agora exacerbada, entre Deus e o diabo – a artista foi criada num rico e rigoroso colégio religioso, blablablá. Logo na abertura, Marry the Night, começam a se equiparar imagens de guerra (“sou uma rainha guerreira”) e de religiosidade (“sou uma pecadora”).
Adiante, surge Judas, em pessoa. “Sou apenas uma tola sagrada/ é cruel, mas ainda estou apaixonada por Judas”, afirma, afogada em termos como “traição”, “penitência”, “sentido bíblico”. Se na faixa anterior a semideusa tentava se dirigir de igual para igual aos presidentes dos Estados Unidos, agora vai além e fala como se fosse Jesus, ele mesmo: “(Judas) me trai mais que três vezes”.
“Jesus é minha virtude”, decreta, mais para Mara Maravilha que para Xuxa, e então inverte expectativas: “E Judas é o demônio ao qual me agarro”. Gaga está apaixonada por Judas e Gaga é Jesus, logo Jesus está (ou esteve) apaixonado por Judas, eis o sofisma. Como se não bastasse para se provar antirreligiosa, ela completa o ultraje com grosseria sexy dirigida a quem se ofendeu com as palavras profanas: “Use camisinha nos ouvidos da próxima vez”.
Estranha contestadora é Gaga, que para provar-se antirreligiosa pensa e fala em religião o tempo inteiro. “Não falo sua languagono/ não falo seu Jesus Cristo”, canta, em inglês, espanholês e gaguês, na gostosa Americano, bem ABBA, bem Santa Esmeralda, bem eurodisco. “Minha religião é você”, “vou dançar com as mãos na cabeça, como disse Jesus”, insiste em Bloody Mary.
“Meu corpo é santuário/ meu sangue é puro”, tenta convencer-se imaculada em Electric Chapel, uma interessante (re)conciliação setentista entre o hard rock do Led Zeppelin e o tecnopop do Kraftwerk. A audaz e perspicaz profanadora reaparece ao final, valendo-se imagem endiabrada: “Se você me quer, me encontre na capela elétrica”.
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No nó do crucifixo entre espírito bélico e religiosidade culpada, Gaga é o que sua canastrice a faz afirmar que é: o patriarcado, os Estados Unidos, o poder constituído, o pitbull. Diz-se liberta de dogmas tantas vezes que acaba por convencer: é tudo bravata, ela está é bastante enredada naquilo que jura ter superado. Nisso, também, é igual à pátria que representa, embora tenha para si o benefício da juventude e da imaturidade.
O outro lado dessa Lady autopenitente, sombria, quase deprê, é a parte, digamos, edificante de Born This Way. O melhor exemplo é a faixa-título, de roupagem musical ácida, mas portadora de mensagem doce, uma flecha de açúcar apontada ao coração de arco-íris dos “monstrinhos” adolescentes que a veneram. “Seja prudente e ame seus amigos”, “alegre-se e ame-se a si próprio”, “não se esconda na tristeza”, ensina tia Gaga, qual fosse madre superiora do convento que tenta por todo custo implodir.
Por cruel que pareça (como diria quem mesmo?, Lady Gaga?), o tom samaritano está presente nos conselhos e em tudo que a artista faz. Mas ele não neutraliza, nem sequer diminui, a potência do discurso identitário por trás da faixa-título. A letra dirige-se nominalmente “párias”, “gays, héteros ou bi/ lésbicas, transgêneros”, vítimas de bullying (será a primeira vez que o termo “bullied” é usado com essa finalidade numa canção pop?), e assim por diante. “Sou linda do meu jeito, Deus não comete erros”, ensina-e-aprende, mais uma vez colocando Deus no caminho de uma menina nascida para ser selvagem (como diria o grupo sessentista Steppenwolf em Born to Be Wild), nascida nos EUA (como rugiria Bruce Springsteen em Born in the U.S.A.).
“Estou na trilha certa, baby, eu nasci assim”, conclui, Born This Way. “Só quero ser eu mesma e ser amada pelo que sou”, completa em Hair, outra faixa destinada a trazer conforto aos fãs adolescentes (“eu sou o meu cabelo”). Nessa outra trilha, que bambeia entre o ultraje e a obediência, Gaga parece menos Xuxa “maria-chiquinha” Meneghel, mais Tati “sou feia, mas tô na moda” Quebra Barraco. Seja Lady Gaga quem for, ela continua na moda – e quase acredita que pode governar-equilibrar o mundo nos ombros. Pode?
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