Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Enquanto uma poderosa armada americana se move lenta e ameaçadoramente para a costa da Venezuela, em um gesto de ousadia delirante de Donald Trump, a Argentina queima no caso de corrupção, com seu presidente de extrema direita, pela primeira vez, em apuros reais –embora a estocada contra Javier Milei esconda uma disputa política entre as direitas argentinas que, talvez, interesse também ao presidente americano.

Nesse sentido, Diego Spagnuolo é o nome da vez na Argentina. Ele foi gravado enquanto tocava um esquema de corrupção na Andis, a agência responsável por tocar políticas públicas para pessoas com deficiência no país. A conversa implica a poderosa – e onipresente – irmã de Milei, Karina, o que fez a história chegar em todos os principais jornais argentinos, mesmo o direitista Clarín.

Os presidentes dos EUA, Donald Trump, e Argentina, Javier Milei, durante encontro em Maryland, EUA, em fevereiro de 2025. (Foto: Molly Riley / White House)

Os presidentes dos EUA, Donald Trump, e Argentina, Javier Milei, durante encontro em Maryland, EUA, em fevereiro de 2025.
(Foto: Molly Riley / White House)

Spagnuolo estava grampeado desde muito, se tornando uma grande isca humana. Coincidência ou não, a revelação vem depois que Milei rompeu com sua vice, Victoria Villaruel, filha e advogada de militares ligados à última ditadura argentina – e as eleições legislativas deste ano, embora remotamente fossem conceder a Milei maioria parlamentar, por outro lado, acabariam com a fragmentação das direitas a seu favor.

Voltando ao Caribe, enquanto Trump parece sem muitas opções para dobrar Vladimir Putin nas negociações sobre o futuro da Ucrânia, ameaçar ativos de Moscou com a Venezuela ou mesmo tarifar mais ainda a Índia parece ser o que Washington tem para hoje – e pode não ser o mais inteligente, embora no caso venezuelano pareça ser o caminho mais fácil. E não é coincidente que isso ocorra agora.

Na Argentina, Milei é uma figura bajuladora e histriônica que age como um interventor externo a serviço da banca, mas não é exatamente o homem de Trump em Buenos Aires, ao contrário do que o senso comum nos faz pensar – o ex-presidente Maurício Macri, amigo de Trump desde muito, é essa figura, e hoje estaria às voltas de perder protagonismo, caso as legislativas virassem uma polaridade entre Milei e o Kirchnerismo.

A genealogia de Milei e a sombra do vampiro Macri

Com seus ternos muitíssimo bem cortados, Maurício Macri se parece com o estereótipo do aristocrata vampiro da Europa. Seu pai foi um influente magnata durante a derradeira ditadura militar argentina, mas nunca se envolveu diretamente com a política – teve e fez amizades poderosas pelo mundo, inclusive com Fred Trump, pai de Donald, razão pela qual Maurício o conhece desde muito.

Milei, muito pelo contrário, é apenas um quadro médio da burocracia argentina, cujo fervor ideológico e esotérico o tornaram o homem certo para ser o interventor de seu próprio país – tudo em favor da banca internacional e seus credores abutres. A ascensão de Milei se deu precisamente quando Joe Biden nomeou Marc Stanley, um poderoso quadro ligado ao sionismo, para a embaixada americana de Buenos Aires.

A vitória de 2023, contudo, não tornou Milei exatamente um soberano absoluto. Liderava, é verdade, sob um Congresso fragmentado e cuja figura de Macri nos bastidores era central. Hoje, seu partido, o A Liberdade Avança (LLA, em espanhol), parecia caminhar para monopolizar os votos da direita, relegando Macri para escanteio no jogo político argentino. 

Mas tudo só é eterno enquanto dura. E hoje a família Milei se tornou alvo, inclusive de uma imprensa direitista, incluindo o Clarín, que sempre o apoiou – mas agora não parece sequer disposta a abafar as denúncias contra ele, mesmo às vésperas de eleições legislativas na província de Buenos Aires e, em alguns meses, eleições legislativas nacionais, as quais podem ser vencidas pela temida oposição kirchnerista.

Os efeitos de curto prazo são imponderáveis, mas um deles é Milei perder o poder, por paralisia ou renúncia/deposição ou continuar sob controle das forças políticas lideradas por Macri – e novamente teríamos o cenário de Milei como uma marionete, dessa vez a serviço de um quadro mais confiável para Trump ou com a ultra-direita tradicional argentina de volta ao poder diretamente.

E la nave va na Venezuela

Enquanto isso, sob a alegação tragicômica de realizar uma operação contra o crime organizado na Venezuela, Trump, que já declarou que os Estados Unidos poderiam ter conseguido todo o petróleo venezuelano não fosse pelos erros de Biden, despachou uma armada considerável – uma ameaça permanente no pior estilo das políticas do big stick do início do século 20.

Tudo vem na esteira de negociações com a Rússia na qual Trump, sem o muito o que oferecer ou com que pressionar Putin, saiu de mãos abanando sob a Ucrânia – uma fonte aparentemente infinita de problemas, que serve de constrangimento perpétuo para o presidente americano, eleito com a promessa de terminar com o conflito em 24 horas; mas já se passaram muitos dias.

Com isso, Trump manda um recado para os russos, mas também adverte a América Latina, de que nem ele nem seu gabinete de secretários escondem que se trata, apenas e tão somente, de um quintal. A Venezuela, para variar, age com altivez e bom humor, enquanto sua postura excepcionalmente resistente – só comparável à Cuba – fez o país resistir além do limite do imaginável.

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Antes, Trump fazia acenos positivos sobre a Venezuela, precisando garantir o fluxo de petróleo do país para os Estados Unidos para, assim, evitar mais um foco de incêndio inflacionário – razão pela qual, possivelmente, Trump também se move para colocar fim ao conflito ucraniano, muito embora não ajude ao fazer tarifaços e ameaçar, paradoxalmente, a Venezuela a partir de agora.

A armada americana ainda posterga sua misteriosa chegada, em uma espécie de versão sombria do célebre E la nave va de Felini, um falso documentário sobre um navio luxuoso – aqui, temos uma invencível armada e sua surrealista operação farsesca, que ainda que venha se provar verdadeira o será por ser, mais ainda, uma grande mentira ancorada em um mar de tantas outras farsas e absurdos.

(*) Hugo Albuquerque é jurista e editor da Autonomia Literária.