Meu coração na curva de um Rio
Entre lágrimas e a geopolítica, o Rio de Janeiro expõe a lógica de um mundo cada vez mais militarizado
Escrever está difícil… Tomando emprestado de Mercedes Sosa, tanto sangue verteu pelo Rio que eu só tenho “a oferecer mi corazón”. Como falar de países e de esperanças, da vida, e de mudar esta, a nossa casa, em meio a tanta matança? Às vezes, parece que tudo está perdido.
Gosto muito do início do livro Moby Dick e suas dicas de saúde mental. “Algumas pessoas, quando atacadas de melancolia, suicidam-se de qualquer maneira. Eu não. Vou para a água, aplacar a tristeza e regularizar a circulação sanguínea”. E não é que, entre as muitas águas que regulam o corpo humano, pois são de água nossas lágrimas, suores e salivas, me encontrei com Lô Borges, querido vizinho da rua Divinópolis, no Clube da Esquina. Ele acolheu meu coração na curva de um rio, Rio, rio, Rio, rio, Rio…. e me lembrou que a chama não tem pavio, que basta contar compasso, e basta contar consigo. Então, vim para as letras, palavras e frases, para aplacar a tristeza, organizar as ideias e regularizar a circulação sanguínea.

Rio de Janeiro (RJ), 29/10/2025 – Dezenas de corpos são trazidos por moradores para a Praça São Lucas, na Penha, zona norte do Rio de Janeiro. Operação Contenção.
(Foto: Tomaz Silva /Agência Brasil)
Nos encontramos em um momento histórico de reconfiguração da ordem mundial, caracterizado pela agudização das disputas geopolíticas entre a ordem hegemônica e uma ordem multipolar emergente. Com isso, se amplia a militarização como mecanismo de controle territorial, econômico, político e simbólico; lançando mão de novos mecanismos e alianças estratégicas.
Os massacres no Alemão e na Penha podem ser analisados desde o nível micro – mas não menos importante –, quando me solidarizo com as mães que choraram por seus filhos que nasceram com a pele escura demais. Num nível intermediário, podemos avaliar o absoluto fracasso tático da operação, que deixou 121 mortos, inclusive 4 policiais, e fez pífias apreensões de recursos. Em um nível estratégico, é previsível o agravamento da situação, com o crescimento da profissionalização do Comando Vermelho e de ações de vingança orquestradas por policiais. Por fim, a ação foi um retumbante sucesso político para o governador Cláudio Castro em particular, e para o espectro político à direita em geral, pautando as eleições de 2026 em torno do tema da segurança pública.
Como internacionalista, começo pelo nível geopolítico. Num mundo em crise, a América Latina e o Caribe entrarão no centro do furacão. Veremos o desdobramento de bases militares estrangeiras, como no Peru e Equador; a assinatura de tratados de cooperação com a OTAN, como na Argentina; gastos em defesa em detrimento de investimentos sociais, como no Chile; o uso crescente de tecnologias de vigilância, inteligência artificial, drones e software de controles, como no Brasil; a proliferação do mercenarismo e das empresas militares privadas, como na Colômbia; a persistência de estruturas narco-paramilitares com capacidade de controle territorial, como no México. Em suma, uma trama que ameaça a soberania dos povos, das democracias e dos bens comuns.
Por isso, adiantamos aqui nossas conclusões. Levando em conta os objetivos políticos para os quais a operação foi desenhada, o governador Castro está correto: a operação foi um sucesso, e recolocou a direita na ofensiva após a condenação de Bolsonaro e os acordos Lula-Trump. Vidas negras são dispensáveis, assim como é irrelevante a eficácia da política de segurança pública.
A seguir, sumarizamos alguns elementos globais, regionais, nacionais e operacionais que consideramos importantes. Eles não são exaustivos, pois novas questões vêm surgindo no debate público. Por fim, reunimos alguns elementos sobre o que fazer para contribuir com a discussão.
Aspectos globais
1 – Os gastos militares em 2024 seguem crescendo e foram de 2.7 trilhões de dólares, segundo os cálculos do Sipri (Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo), que são os mais conservadores. Existem 673 milhões de pessoas com fome. Lula está correto: “decisões políticas provocam a fome, e não a escassez de comida”.
2 – EUA e China vêm fazendo mudanças profundas nos seus exércitos. Lideranças políticas buscam garantir sua hegemonia interna através de aposentadorias compulsórias e promoções seletivas que tendem a tornar os exércitos mais coesos ideologicamente. Se soldados passarem a temer perseguições, poderão ter problemas de liderança e iniciativa, mas ainda não parece ser este o caso.
3 – Os EUA estão com sérios problemas domésticos, em especial na economia. Como explicar que a maior máquina bélica do mundo receba doações privadas de aliados do presidente para pagar salários atrasados de militares da ativa? Em meu último texto, falei sobre a reunião do Secretário da Guerra dos EUA com seus generais. Estaria a maior força profissional do mundo se tornando uma força mercenária?
4 – Trump realiza o recuo hemisférico. Diante da realidade de que este não será um novo século americano, o presidente busca liberar recursos na Ucrânia e em Gaza para reorganizar o seu quintal, sua reserva estratégica, a América Latina, atualizando a Doutrina Monroe. De toda maneira, é evidente a fragilidade desse momento, pois enquanto os EUA explodem lanchas no Caribe, China e Rússia apresentam novas tecnologias bélicas para o mundo, como o míssil movido a combustível nuclear e o torpedo capaz de provocar tsunamis.
5 – Os EUA também alteraram sua legislação nacional. Ao transformar grupos criminosos armados em organizações terroristas, o país passa, de fato e de direito (ilegítimo, mas não ilegal), a atuar como “polícia do mundo”, na feliz expressão de Lula. O direito penal dos EUA ganha alcance planetário. A rigor, caracterizar um grupo como terrorista amplia o conjunto de ações coercitivas autorizáveis, pois passa a ser considerado um problema de segurança nacional. Em tese, não se negocia diante de táticas terroristas. Dizemos em tese pois, na política real, os EUA acabaram de receber, com louros, o jihadista transformado em estadista Ahmad al-Sharaa, atual presidente da Síria, em função do seu antagonismo com a Rússia. Mas essa não seria a primeira vez que os EUA se posicionam como polícia global, e, arriscaríamos dizer, não será a última. Ao eleger o combate a corrupção como um problema de segurança nacional, os EUA construíram as condições para a prática de lawfare, vista recentemente na Argentina contra Cristina Kirchner.
6 – Sobre o conceito de terrorismo, sugiro meu texto com Hector Saint-Pierre, “quem é o terrorista?”. Reitero que não existem grupos terroristas. O terrorismo é uma tática usada pelos grupos militarmente mais fracos no confronto, e não tem coloração ideológica. Não tem como objetivo produzir vítimas, mas provocar terror com finalidades políticas.
7 – A China e a Rússia dificilmente interviriam militarmente no nosso continente, mesmo para acudir um aliado em apuros, como é o caso da Venezuela. Possivelmente atuariam para tornar o custo geopolítico de uma intervenção direta muito alto, mas dificilmente veríamos “coturnos no chão”.
Aspectos regionais
1 – O Caribe é visto pelos EUA como seu Mar Mediterrâneo, onde não cabe nenhuma margem para a divergência, o que amplia a relevância de Cuba. Recentemente, Marco Rubio fez visitas à Jamaica, Suriname, Guiana Esequibo, Trinidad e Tobago. O Panamá vem militarizando o canal, o Haiti segue sob influência dos EUA (agora através de empresas privadas de segurança e reconstrução) e os EUA mantêm Guantánamo, Porto Rico, Ilhas Virgens, além das parcerias com territórios holandeses (Aruba e Curaçao) e das Antilhas francesas. Os EUA avançam inclusive sobre países que pertencem à ALBA, como Antígua e Barbuda e Granada. Todas essas medidas reforçam a América Latina e o Caribe como zona de exclusão imperial para as outras potências globais. São ações que têm funcionado com países mais frágeis, como o Panamá, que deixou a Rota da Seda.
2 – O regionalismo está muito frágil à esquerda. Mesmo problemas comuns como as deportações e as sanções econômicas não vêm sendo enfrentados de maneira articulada pelos principais líderes progressistas da região, como os do Brasil, Colômbia, México e Chile. Não é o caso da articulação à direita. Argentina e Paraguai reagiram prontamente após uma operação em nível municipal no Brasil, declarando PCC e CV como organizações narcoterroristas e reforçando as fronteiras. Mesmo os placares em pautas historicamente comuns, como as condenações na ONU do bloqueio à Cuba, têm mudado. Era comum que houvesse dois votos negativos: EUA e Israel. Na última votação, foram 12 abstenções, como de Costa Rica e Equador, e 7 votos contrários, como da Argentina e Paraguai. Países aliados dos EUA como El Salvador e República Dominicana sequer votaram.
3 – Multipolaridade? Mais ou menos… Mesmo países como a Colômbia e o Brasil seguem, na área militar, bastante alinhados aos EUA. Na Colômbia, recentemente uma missão dos EUA atualizou as doutrinas das escolas de formação, e no Brasil, os exercícios conjuntos seguem, assim como as compras de equipamentos e missões internacionais. Um ou outro foi cancelado, ou modificado, mas o grosso permanece como antes. Nessa área, ruídos provocados pela falta de “química” entre os presidentes são raros.
4 – O uso do termo narcoterrorismo para a perseguição dos EUA a segmentos que não lhes interessam na América Latina não é novidade. Embora o termo tenha surgido no Peru, resultado da existência concomitante de dois fenômenos – a luta armada hegemonizada pelo Sendero Luminoso e a explosão de vendas de narcóticos nos EUA (que anteriormente chegou a ser estimulada pelo governo para fragilizar os Panteras Negras) – ele se massifica com o final da Guerra Fria, quando os EUA precisam repaginar seus inimigos para seguir fomentando o complexo cultural-bélico-industrial. Para isso, estimulam (inclusive vendendo armas secretamente) dois inimigos principais – no Oriente, o terrorismo, e no Ocidente, o narcotráfico.
5 – Os dados sobre o narcotráfico não fazem nenhuma diferença para o planejamento das operações na região. As rotas passam pelo Pacífico, através do Equador do aliado Noboa, depois de serem produzidas no Peru, também aliado. Na parte Atlântica, a rota passa pela Jamaica e pelo Haiti, chegando ao Sul da Flórida. Foi-se a época do “contra fatos, não há argumentos”.
6 – A Colômbia se configurou como o enclave geopolítico dos EUA na América do Sul, quase como se fosse a “Israel” latina, ao longo de 15 anos. O instrumento para isso foi o Plano Colômbia, através do qual bases militares dos EUA foram instaladas, o país se tornou o principal aliado extra OTAN no continente, a doutrina militarista de enfrentamento ao inimigo interno foi atualizada e a economia do país subordinada a setores militares. Com seus limites, Petro rompe esse ciclo. Se manifesta contra o genocídio palestino; interrompe a prática de emprestar a Colômbia à ofensiva contra a Venezuela; e muda a maneira de enfrentar o narcotráfico, usando drones, inteligência artificial e rastreamento de rostos e recursos. Recentemente, Trump o considerou um narcogoverno, e anunciou a suspensão de subsídios militares.
7 – Os EUA têm mobilizado muitos recursos para operação na Venezuela. Se essa é a operação psicológica para intimidação mais cara da história, ou um preâmbulo para a invasão militar, não é possível precisar. Mas essa é apenas uma novidade que se junta às diversas táticas de desestabilização contra o chavismo apoiadas pelos EUA, como as guarimbas (ações violentas urbanas), sequestros, tentativas de infiltração e divisão da FANB, ataques com drones… A Venezuela já passou pela curva de aprendizagem que iniciativas de desestabilização oferece, e se preparou para um conflito em termos doutrinários e de equipamento, combinando milícias, FANB e segmentos intensivos em tecnologia transferida pela Rússia. Maduro mobilizou a população que o apoia, e enquadrou a população que, embora o critique, não apoiaria uma intervenção estrangeira. Entretanto, a população está cansada de tantos anos de bloqueio e anseia por tranquilidade.
Aspectos nacionais
1 – No Brasil, morrem mais pessoas por dia que em diversos países em conflito conflagrado. O perfil dos mortos não se altera a décadas: homens, jovens, negros, urbanos.
2 – Através da CIA e da DEA, os EUA financiaram a Polícia Federal brasileira para combater o tráfico de drogas. Muito se comenta sobre os cursos de militares nos EUA em função da memória recente sobre o papel da Escola das Américas durante as ditaduras. Entretanto, polícias e o Judiciário fazem o mesmo tipo de treinamento, e estão sujeitas às mesmas práticas de cooptação e colonialismo doutrinário. Em alguns casos, financiaram inclusive centros para o manejo de dados operacionais, úteis para fazer inteligência. O Rio já vivenciou outras militarizações que não resolveram a situação, inclusive no próprio Alemão, 15 anos atrás, cujo auge foi a intervenção federal durante o governo Temer, comandada pelo general Braga Netto, agora condenado e preso por golpe de Estado. Embora a operação pareça ser sobre o crime organizado, e esteja sendo criticada na imprensa pela ineficácia para o enfrentamento do problema, ela não é sobre o crime; é uma operação política.
2 – Lula não comanda seus instrumentos de força. Costuma adotar um comportamento de negociador diante de corporações que falam o idioma da hierarquia e da disciplina. Por exemplo, enquanto Lula criticou o genocídio palestino na ONU, o Brasil comprou rifles se Israel para a Polícia Federal, Ibama e para a secretaria de polícias penais, sob o guarda-chuva de uma licitação da Polícia Rodoviária Federal de 2022.
3 – O imperialismo não precisa de uma intervenção direta, pois conta com uma linha auxiliar bastante ativa composta por brasileiros. Logo depois de Trump bombardear lanchas no Caribe, Eduardo Bolsonaro sugeriu que o mesmo deveria ocorrer na Baía de Guanabara. Em maio, o governador Castro já havia enviado um relatório para os EUA sobre o Comando Vermelho. Na imprensa, não foi noticiado quem elaborou o relatório, quais as vias de tramitação diplomática ele seguiu, e se isso gerou ruídos dentro do sistema de inteligência nacional.
4 – Ocorre o massacre no Rio de Janeiro. Logo após a reunião de Lula com Trump, e na véspera da COP, principal aposta de política externa do governo, o Brasil ganhou as capas dos jornais do mundo todo com imagens de um massacre, e não sobre o meio ambiente. A ação tem como efeito doméstico a disseminação do medo entre a população, recupera a moral abalada da extrema-direita pós reunião Lula-Trump, e rearticula o campo em torno de uma bandeira moralista e belicista. Externamente, fortalece a doutrina de combate ao narcoterrorismo dos EUA.
5 – Castro decretou que o RJ estava sozinho, e recebeu o apoio dos governadores de oposição ao governo federal. Castro não pediu uma GLO. De quebra, desgastou o Judiciário, responsabilizado o terceiro poder pelo crescimento do CV em função da ADPF das favelas. A posição defensiva tem supremacia sobre a ofensiva na guerra, pois tem o controle do território. Entretanto, Castro partiu para a ofensiva contra o governo federal, tendo clareza que determinar o momento (pré COP) e o local (pauta da segurança pública) em que o embate ocorreria lhe favorece. Se a briga é inevitável, Castro escolheu quando e como.
6 – A esquerda já patinava no assunto antes mesmo da operação, tanto em termos práticos, já que a PEC da Segurança não decolou, e a adoção de câmeras nas fardas das polícias estaduais enfrenta resistências; quanto em termos discursivos, quando Lula voltou atrás em sua declaração que colocava traficantes como “vítimas” do sistema. Entretanto, a segurança pública é a maior preocupação de 30% dos brasileiros e tem forte componente eleitoral. As guerras híbridas são travadas explorando contradições reais que existem no seio da classe trabalhadora. O medo da violência é uma delas.
Aspectos operacionais
A professora Jaqueline Muniz fez, a quente, uma boa análise sobre aspectos tático-operacionais equivocados durante a operação no Rio de Janeiro. Outros analistas, inclusive policiais, a acompanharam a partir das informações disponíveis, e resumiremos a seguir aqueles que, na nossa compreensão, são os mais importantes. Entretanto, cabe salientar que os aspectos operacionais são subordinados ao elemento estratégico, e ambos ao elemento político. Nesse sentido, a avaliação do fracasso operacional só é válida caso a decisão política fosse priorizar a segurança pública através do enfrentamento ao crime organizado, e não é esse o caso. Em suma, concordamos com o governador: a operação foi um sucesso. Ele é o elemento político, e definiu seu objetivo político – ampliação de capital político para si mesmo e para aliados –; definiu a estratégia – pautar a campanha de 2026 em torno das “ameaças” à segurança pública, o que favorece a extrema direita –; e os meios para isso – encarceramento em massa, massacres e militarização.
1 – O crime organizado não ameaça a soberania estatal, e não existe um Estado paralelo. O CV não emprega a violência fora dos territórios que controla, e quando a usa, não tem como objetivo intimidar a população carioca para que ela pressione o Estado a adotar determinada política. A polícia entra e sai de comunidades rotineiramente. Além disso, é através das estruturas do Estado que o dinheiro oriundo da criminalidade é esquentado. A finalidade do crime organizado é auferir ganhos financeiros.
2 – O CV tem o formato organizativo de grupamentos irregulares. A guerra revolucionária já ensinou que, nesses casos, não faz muita diferença a prisão de uma liderança, pois são formas organizativas descentralizadas. O Doca, Joca, Boboca, a rigor, não fazem muita diferença no resultado. Novas lideranças surgirão lançando mão da violência para se afirmar sobre a população do território e sobre grupos rivais. Possivelmente, enquanto concluo esse texto, o recrutamento de novos membros esteja em curso para substituir os assassinados.
3 – O crime organizado observa e aprende com a guerra moderna. Quando os EUA, a Rússia e seus respectivos aliados ampliam a utilização de mercenários em conflitos como na Ucrânia, eles não estão apenas “empregando” mão de obra barata, mas também “treinando” mão de obra barata. Com isso, táticas usadas em outros territórios passam a ser incorporadas pelo crime organizado, como o uso de drones e de booby traps (objetos aparentemente inofensivos, mas carregados com explosivos). As barricadas já são uma tática comum. A polícia amplia sua capacidade repressiva numa verdadeira corrida armamentista. O resultado, assim como no dilema da segurança entre os Estados, é o mesmo: crime organizado e policiais mais armados; crime organizado, policiais e sociedade mais inseguros.
4 – Mesmo na guerra interestatal, a tática de cercamento deixa uma rota de fuga para o inimigo/criminosos de maneira a efetuar prisões, pois prisões geram informações em primeira mão sobre o lado oponente. A tática usada pelo BOPE de “muro humano” na mata é similar à utilizada nos anos 70 no Araguaia, mas naquela época se chamava “martelo e bigorna”. Nessa tática, não se prende ninguém, se elimina. Infelizmente, a tática é um bom exemplo de como a nossa incapacidade de acertar as contas com o passado faz com que ele se mantenha vivo e presente. Exemplifica também que não se trata apenas de “desmilitarizar a polícia”, e sim de “desmilitarizar o sistema de segurança pública”, eliminando a doutrina do inimigo interno.
5 – Forças de segurança, como a classe trabalhadora em geral, estão doentes. Em São Paulo, morreram mais policiais por suicídio do que em confrontos. No Exército, cresceu em 40% a busca por apoio psicológico. Uma cultura que combina alta pressão, baixo salário, rigidez hierárquica, mito da invulnerabilidade, baixa probabilidade de punição a superiores assediadores… Diferente do Exército, a polícia funciona em regime de pronto emprego, e não consegue sustentar grandes operações por longos períodos. Foram mobilizados grupos de choque que não isolaram o perímetro das operações, não recolheram cadáveres deixados na mata, dificultaram a necrópsia, não gravaram a operação, alteraram cadáveres…
O que fazer?
1 – Muitas das informações usadas para as operações foram produzidas pela própria população, através de aplicativos como o “Pega a visão”. Se por um lado isso explicita a fragilidade de informações do sistema de segurança pública sobre o território, por outro, mostra que, pressionados pela criminalidade organizada de um lado, e pela polícia violenta e corrupta de outro, a lógica da autodefesa, ainda que feita de forma amadora (avisando em grupos de familiares sobre locais por onde não circular), funciona. Podemos aperfeiçoar essas experiências, e conhecer iniciativas exitosas em outros países. De certa maneira, é também o que iniciativas como a Flotilha, a Marcha, as greves de estivadores na Itália, ações de efeito em eventos esportivos, também fizeram sobre o genocídio palestino. Gente comum faz política de defesa e segurança, não apenas Estados e organismos internacionais.
2 – Estudiosos das relações civis militares sobrevalorizam o controle sobre os militares, e não sobre os instrumentos que tornam os militares mais fortes que outros segmentos, a saber, as armas. Quem faz esse acompanhamento no Brasil são principalmente ONGs e institutos de pesquisa, não necessariamente à esquerda, como o Fogo Cruzado, Igarapé, Instituto Sou da Paz etc. A esquerda precisa, sem titubear, assumir como bandeira o controle sobre os instrumentos de violência estatais e privados, humanos ou materiais. No México, por exemplo, fala-se em Rio de Ferro como o processo de tráfico de armamentos dos EUA para as gangues mexicanas. Embora a imprensa tenha repercutido em letras garrafais a presença de um fuzil de origem venezuelana entre o armamento apreendido, na realidade, as pesquisas indicam que a maioria das armas encontradas com o crime organizado no Brasil são de fabricação nacional. Não teve repercussão, mas no último mês, a PF desmontou no Rio, através da Operação Forja, um esquema que produzia 3.5 mil fuzis por ano, como seguimento da operação que apreendeu 47 fuzis em mansão na Barra.
3 – Não misturar alhos com bugalhos. O Comando Vermelho é fruto, inicialmente, de um erro da ditadura. Ao misturar presos comuns aos políticos, o segundo grupo inspirou o primeiro a se organizar para conseguir melhorias no cárcere. Posteriormente, a democracia errou novamente, pois ao transferir presos ligados ao crime organizado para presídios em outros estados da federação, contribuiu para a nacionalização do CV. Misturar o crime organizado que vive da renda conseguida com o comércio ilegal de drogas a grupos que lancem mão de táticas terroristas seria outro equívoco. Não existem narcoterroristas no Brasil. Sequer existem organizações que lancem mão de maneira sistemática de táticas terroristas. O que temos é o crime organizado.
4 – Reforma do sistema prisional. Centenas de pesquisas apontam o óbvio: as cadeias brasileiras não recuperam ninguém, não preparam ninguém para a reinserção (ou seria inserção?) no mercado de trabalho. Na prática, funcionam como agência de RH do crime organizado. Depois de uma primeira passagem pelo cárcere, voltam ao crime “promovidos”. Na prática, o Estado ajuda a organizar o crime organizado. Penas mais altas são comprovadamente ineficazes. O que é eficaz na contenção ao crime é a certeza de punição. Na realidade, penas mais altas aumentam a resistência de criminosos à prisão, fazendo com que eles lancem mão de maior violência, ou inflam os valores do “arrego”. Quando presos, tornam o ambiente da cadeia insustentável, pois se não existe sequer a possibilidade de conquistar um “semiaberto”, o preso não tem nada a perder “exceto as correntes que o prendem”.
5 – É preciso punir quem ordenou e praticou a execução. Fortalecer as corregedorias de polícia, com nomeações externas à corporação, contribui para o enfrentamento à corrupção. Isso vale também para o monitoramento financeiro. Os crimes são cometidos com finalidades econômicas, e deixam rastro financeiro, como viu-se na operação da PF ocorrida na Paulista.
6 – Quando uma operação dá certo, os governadores capitalizam. Quando uma operação dá errado, os governadores empurram a conta para o colo do governo federal. Isso só é possível em função de lacunas no pacto federativo. Fala-se muito em interoperabilidade, em articulação, em cooperação entre agências. Por que não ocorre? Porque é um desgaste político enfrentar o poder das várias corporações que atuam nessa área. Seria necessário que o governo federal colocasse contrapartidas políticas diante das demandas financeiras dos governadores, como a obrigatoriedade na adoção de câmeras (grande exemplo de política de sucesso). Governadores de oposição vão reclamar, daí a importância da comunicação e do debate com a opinião pública ser ampliado. Se queres a paz, prepara-te para a guerra é um pensamento equivocado. A guerra começa quando começamos a nos preparar para ela. Se queres a paz, prepara-te para a paz. Vivemos em tempos de operações psicológicas, e o financiamento e regulamentação da comunicação precisa levar isso em consideração, desde os aplicativos de celular até a TV aberta. Programas e canais com soluções coletivas e informações positivas devem ser estimulados.
7 – A política governamental precisa ser mais ofensiva, e isso não significa adotar o “bandido bom é bandido morto”, ou o “bandido é vítima do sistema, só resolve se levar educação e cultura pro morro”. Quem é vítima de violência, desde o estupro pelo crime organizado nas comunidades, ou o furto de celular na Zona Sul, não tem paciência para esperar mudanças no sistema. A esquerda foca no debate sobre as causas estruturais da violência, e a direita sobre as consequências da violência. As pessoas tendem a concordar com os dois. É preciso sustentar, tecnicamente, o debate de segurança pública. Mostrar a ineficácia de operações desse tipo, explorando o senso comum da população que já viu dezenas de operações e a situação piorando. Por exemplo, estima-se que de 5 a 10 toneladas de drogas, por mês, sejam negociadas nas comunidades onde ocorreu a operação, que prendeu 29 quilos… É, como se diz na minha terra, “dinheiro de pinga”. Uma ação do Estado não pode produzir um dano maior do que seu objetivo. Trabalhar com grandes motes de propaganda que têm respaldo científico como “a polícia que mais mata é também a que mais morre”, “mais armas em circulação são também mais armas nas mãos do tráfico”, “não existe Estado paralelo”, “quem não deve, não teme” – para tratar das câmeras em fardas. A esquerda precisa disputar o modelo de segurança pública, mostrando que inteligência e integração funcionam melhor que militarização, encarceramento e endurecimento penal.
Falar em autodeterminação e paz virou “coisa de comunista”. A América Latina se transforma em um laboratório de ensaio para novas formas de guerra híbrida, propaganda, criminalização de protestos e controle integral da vida. Falávamos na conexão Porto Príncipe – Rio de Janeiro. Hoje, falamos na conexão El Salvador – Rio de Janeiro. Nosso sangue latino é sempre o mesmo, pois mesmas são nossas raízes como colônias de exploração.
Mas como Neruda, “veo lo que viene y lo que nace, los dolores que fueron derrotados, las pobres esperanzas de mi pueblo: los niños en la escuela con zapatos, el pan y la justicia repartiéndose como el sol se reparte en el verano.” Comunidades indígenas, camponesas, negras, acadêmicos críticos, entre outros, têm tecido formas de resistência e defesa territorial. É um processo de construção da paz desde as raízes, distante das normativas e organismos internacionais.
Meu primeiro texto para o Opera Mundi em 2025 avisava que “eu não seria o arauto de boas notícias”. De fato, não fui. Que em 2026, eu seja arauto da nossa resistência.
(*) Ana Penido é professora do IRID, UFRJ. Pesquisadora do GEDES e do Instituto Tricontinental.























