Sábado, 6 de dezembro de 2025
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O porco: por que algumas culturas o celebram e outras o proíbem? Por que para os judeus e árabes alimentar-se deles é uma afronta à religião e, por outro lado, os papuas da Nova Guiné vivenciam grandes rituais na hora de comê-los e vomitá-los, até quase extingui-los de suas ilhas?

Divulgação/Montagem Opera Mundi



No centro, Dr. Oz; nas bordas, Adam, a estrela de “Man vs. Food”



Para responder a esta pergunta, há teorias muito boas. Aqui, obviamente, não é o lugar de listá-las, muito menos de discuti-las. Vamos citar apenas que, instrumentalmente, nos interessa: o texto “Amigos e inimigos dos porcos” (publicado no livro Vacas, Porcos, Guerras e Bruxas: os Enigmas da Cultura), que traça o paralelo entre os judeus e os papuas. Apenas para situar, seu autor, o antropólogo Marvin Harris, é um estudioso que procura explicar a cultura a partir da realidade material.

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Para ele, as condições ecológicas e a vida material dos judeus e árabes tornavam a criação de porcos uma atividade “cara”, pelo dispêndio de energia, e, na prática, irrealizável, enquanto os nossos amigos porcos encontravam no ambiente úmido da Nova Guiné o espaço ecológico ideal para crescer e se multiplicar – até quando começavam a competir pela comida com os humanos.

Do porco para a gordura. De dois universos ecologicamente distantes para um só canal de TV.

No Brasil, o canal Fox Life tem dois destaques em sua programação aparentemente contraditórios: o programa do médico Dr. Oz (uma mistura de Dráuzio Varella e Jairo Bouer) e os desafios de Adam Richmann contra montanhas de comida, em “Man versus Food”.

Dr. Oz é magro, forte, simpático, mas, ao mesmo tempo, duro com sua plateia. Um homem de bigodes e barriga pronunciada é recebido por ele e ouve, sem rodeios: seu coração é o de uma pessoa de 85 anos, décadas a mais do que a idade real do paciente. A receita da salvação: menos gordura, menos comida, menos colesterol, exercícios.

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Adam é gordo, mais engraçado e igualmente simpático. Percorre os Estados Unidos em busca dos maiores e mais engordurados pratos, e os desafia: uma pizza do tamanho de uma criança, um hambúrguer que não cabe numa grande panela, pimenta, gordura, sal em excesso. Muita, muita, muita comida que Adam tem de “vencer” num determinado período de tempo. Afinal, seu programa se chama “O Homem contra A Comida”. E nem sempre o cardápio é salgado: Adam já enfrentou (e venceu) uma “pia de sorvete”. No meio do desafio, quando não aguentava tanto doce, pediu batatas-fritas para poder continuar.

Nada pode ser menos saudável do que a comida de Adam, especialmente quando se tem em conta as dicas daquele que não pode ser mais simpaticamente proibitivo, o Dr. Oz. Na mesma cultura norte-americana, no mesmo espaço e coincidentemente no mesmo canal – com chamadas nos intervalos de um para o outro -, é como se dois espaços, duas culturas, duas ecologias se sobrepusessem, o Oriente Médio e a Nova Guiné. A proibição e o excesso, o controle social e a orgia desbragada da gordura, o porco que pode e o porco que não pode.

Diferentes e iguais

Por que, apesar de tão próximos, Adam não encontra Dr. Oz? Por que Dr. Oz não convence Adam a parar com um reality show que pode matá-lo? Por que, ao contrário, Adam não leva Dr. Oz para a vida dissoluta de sanduíches, cheios de bacon, ovos, fritura, embutidos?

Talvez Oz e Adam não sejam tão opostos quanto se parecem. Talvez Oz e Adam estejam, apenas, nos servindo pratos com nomes diferentes, mas preparados com os mesmos ingredientes. Porque, como na questão do porco para judeus e para os papuas, a saúde que Oz nos promete e o prazer da gula que Adam no exibe são, ambos, de ordem ritualística.

A saúde não cai do céu. Ela é o resultado de pequenos trabalhos que devemos realizar ao longo do dia – menos sal, menos refrigerantes, caminhadas, pegar escadas em vez de elevadores. Oz recorre, inclusive, ao que poderíamos chamar, com certa liberdade, de “mantras” para passar sua mensagem (ele atua em muitas frentes, não apenas no controle de peso): “O mais erógeno de todos os órgãos? É o cérebro, é o cérebro, é o cérebro”.

A gula, também, nos ensina Adam, está além da fome e da vontade de comer. Para chegar ao “Hall da Fama” é preciso ir além do desejo, é preciso encarar o desvio como um trabalho, uma missão a ser cumprida para alcançar a condição de semideus. Só vence aquele que realiza a tarefa hercúlea de ultrapassar os limites humanos.

Oz veta as gorduras hidrogenadas e o colesterol como algumas culturas proíbem o porco. Adam consome a gordura como se estivesse num grande festival, num Woodstock gastronômico.

O incrível, aqui, não é essa oposição, mas o fato de que elas convivam tão bem.

Talvez essas oposições, na verdade, se expliquem: porque em nenhuma das duas comer é um prazer em si. Para Oz, comer só traz satisfação se ajudar a manter a juventude; para Adam, se servir à glória, por mais bizarra que ela possa parecer. Em ambos, comer é apenas um instrumento para algo muito mais importante.

Temos, portanto, não um médico e um glutão.

Temos dois sacerdotes, um magro e outro gordo, impondo um meio de vida e ditando regras de conduta que nem todo mundo entende, mas, mesmo assim, aprende a seguir e a driblar, para o bem da paróquia.

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"Man vs. Food" e "Dr. Oz": como a TV transforma a gordura numa coisa sagrada

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