Lula encontrou o seu Rubicão?
Parece que já não se trata de saber se Lula decidirá ou não atravessar o Rubicão. Seus inimigos já o fizeram
É lugar comum dizer que a história às vezes acelera e comprime séculos em décadas ou anos em semanas. Também o é repetir a velha imagem da política como nuvem, que muda de uma hora para a outra.
Não sei se estamos num turning point. Mas há um sintoma: a sensação de que qualquer coisa que se escreva agora poderá estar desmentida amanhã.

10.09.2025 – Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante entrevista para o Jornal da Record, no Palácio da Alvorada. Brasília – DF.
(Foto: Ricardo Stuckert / PR)
Os acontecimentos políticos da última quinzena me davam a sensação de que o tema (recorrente) de minhas últimas colunas poderia estar superado.
De fato, tudo parecia indicar que a soberba do aprendiz de feiticeiro que, como se viu agora, apenas formalmente responde pela presidência da Câmara, provocou uma reação, na política e nas redes sociais, que poderia, finalmente, selar a aliança entre o governo Lula e os setores esquerdistas que vinham exigindo seu rompimento com a maioria do Congresso e com o grande capital.
Afinal, assistimos o segundo momento em que a reação da militância digital progressista emparedou a maioria retrógrada, ou simplesmente corrupta, do Congresso, passando a dominar amplamente as redes sociais.
O primeiro, como sabemos, foi a da insurgência orgânica contra o chamado PL do Estuprador, que obrigou a um histórico recuo da maioria do Congresso, quando ela ainda acreditava que a pauta de costumes poderia ser o fator estratégico para derrotar Lula.
Na medida em que o presidente soube, apesar de vários percalços, se livrar da armadilha da pauta de costumes, e conseguiu transformar seu mote de campanha na tão reclamada marca de governo, a plutocracia compreendeu que o caminho para evitar sua reeleição e colocar Tarcísio na marca do pênalti passará, quem diria, pela economia.
Colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda era (e parece que ainda será) mais do que promessa de campanha ou marca de governo, mas a possibilidade concreta de se manter vivo na disputa por setores majoritários da população que o governo não ganhará no campo dos costumes, mas em que pode (digo que pode e não que fará) crescer oferecendo um mínimo de avanço de bem-estar econômico em oposição a uma teologia da prosperidade que, para além de um sentimento concreto de acolhimento, permanece no horizonte das promessas imateriais.
A grande questão é saber se ainda vale o mote do “É a economia, estúpido!”.
Aparentemente, a nata da plutocracia nacional, em princípio composta por gente canalha, mas competente, acredita que sim, e deu o apito de cachorro para a asfixia do governo Lula via boicote às ações econômicas. Trata-se de gente capaz de avaliar os impactos possíveis dos eventuais desdobramentos dos bons resultados macroeconômicos (crescimento, PIB, desemprego, etc.) em políticas públicas que apresentem uma melhoria perceptível no bem-estar econômico das famílias. E que não quer perder a eleição presidencial pela sexta vez.
Hugo Motta, que dias depois seria apresentado por Dória como “herói do Brasil”, deve ter sonhado previamente com uma vaga no grupo da Marvel e decidiu jogar para o ar um acordo construído em sua própria casa, que representava o terceiro recuo do governo na questão do IOF.
O que o aprendiz de feiticeiro não imaginava é que a direita que representa levaria a maior surra nas redes sociais de todo o governo Lula, a partir de um grupo de peças produzidas por IA, inicialmente pelo PT e depois por outros grupos ou entidades.
Da campanha inicial destinada a explicar que os BBB (bilionários, bancos e bets) devem pagar imposto para compensar a isenção do IR até 5.000 reais, o episódio do IOF deslocou para o terreno em que as hashtags “Congresso da Mamata”, “Congresso Inimigo do Povo” e “Hugo Motta Traidor” dominaram amplamente a batalha das redes.
Isso estimulou, ou foi articulado a uma nova e combativa posição do governo que parece ter entendido que a eleição de 2026 já começou e que a maioria do Congresso pode estar dividida entre o sonho da anistia a Bolsonaro e a aceitação de que o big money já escolheu Tarcísio, mas definiu que a reeleição de Lula não está mais no horizonte do aceitável.
Quem acreditou que, a partir daí, aquela esquerda que vinha exigindo combatividade e apelo à mobilização deveria se alinhar ao governo pode se preparar para a decepção. Conhecida acadêmica da ciência política mineira já se insurgiu contra a hashtag Congresso Inimigo do Povo porque isso “levaria à ideia de fechar o Congresso”.
Coisa pequena diante de um economista que recentemente aumentou sua notoriedade ao ser demitido da assessoria parlamentar do PSOL e que resolveu seguir em sua campanha de ataques à política econômica de Haddad mostrando que tivemos, na história recente do país, uma proposta de reforma tributária mais corajosa, vinda de… Paulo Guedes!
Mas o estrago que pode vir desse lado do espectro político vai muito além de provocações nas redes. Manifestações de protesto em agências bancárias ou em frente ao gabinete de Hugo Motta (com a presença e estímulo de Glauber Braga) trazem de volta o fantasma de 2013. Uma quebra de vidraças e uma bandeira ou camiseta do PT é tudo que a direita, bolsonarista ou não, adoraria.
Na fronteira institucional, a resposta de Alexandre de Moraes ao questionamento da AGU sobre a inconstitucionalidade do decreto parlamentar, certamente elaborada na cozinha do Gilmarpalooza e criticada por todos os juristas progressistas, teve um duplo condão.
Primeiro, o de tirar os holofotes do aprendiz de feiticeiro e devolvê-los a seu mestre e mentor. É o agora redivivo Artur Lira que retoma a veste de pacificador e se propõe a “superar” o impasse do IOF via a sua relatoria da proposta do IR.
O segundo é que Xandão, que nunca se esquece de onde veio, deslegitimou tacitamente toda e qualquer atuação do governo via decreto presidencial. Na prática, invertendo a demanda da AGU.
Já não se trata de tentar avaliar o que acontecerá até a eleição de 26, mas quais reviravoltas as nuvens da política podem ter até este texto chegar ao eventual leitor.
P.S: Este texto estava pronto quando chegou a notícia da estapafúrdia carta de Trump. Parece que já não se trata de saber se Lula decidirá ou não atravessar o Rubicão. Seus inimigos já o fizeram. Agora a questão é se Roma conseguirá defender-se.
(*) Carlos Ferreira Martins é Professor Titular Sênior do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP em São Carlos























