Lições do Marechal Pétain para o bolsonarismo
A fascista República de Vichy, comandada pelo militar, foi um dos casos mais graves de entreguismo e subserviência – assim como o bolsonarismo é no Brasil hoje
“Quando nossos jovens […] entrarem na vida […] lhes diremos […]: que a verdadeira liberdade só pode exercer-se sob a proteção de uma autoridade tutelar, que eles devem respeitar, à qual devem obedecer […]. Em seguida, lhes diremos que a igualdade [deve] circunscrever-se dentro de uma hierarquia, fundada na diversidade de funções e méritos […]. Finalmente, lhes diremos que não pode haver verdadeira fraternidade senão dentro desses grupos naturais que são a família, a cidade, a Pátria.”
Essas palavras foram pronunciadas por uma das figuras mais controversas da história: Philippe Pétain, marechal francês. Foram ditas em setembro de 1940. A França acabava de ser invadida e derrotada pela Alemanha nazista em poucas semanas de campanha militar. O governo republicano havia se desfeito, Paris estava ocupada, e a Assembleia Nacional transferira poderes quase absolutos ao velho herói de Verdun, o general de 84 anos celebrado na Primeira Guerra Mundial como símbolo da resistência. Aclamado como salvador da pátria em colapso, Pétain assumiu em Vichy a chefia de um Estado autoritário, disposto a renegar a herança da Revolução Francesa e a reescrever os fundamentos da vida política sob a sombra da ocupação alemã.

O marechal Philippe Pétain em 1918.
(Foto: Domínio Público / Picryl)
O marechal de Verdun, convertido em chefe de Estado, falava como guardião de uma ordem antiga. A derrota fulminante e o armistício assinado em Compiègne abriram caminho para que fosse investido de poderes quase absolutos. Legitimado pela aura militar e pela promessa de regenerar a nação, proclamou um novo lema — Travail, Famille, Patrie — em substituição à tríade revolucionária. A refundação autoritária se anunciava ali: a herança republicana era varrida para dar lugar a um tripé de obediência, hierarquia e enraizamento patriarcal, apresentados como cura para o trauma da derrota.
Esse lema espalhou-se como tatuagem no corpo da França ocupada. Estava em cartazes de propaganda, nas fachadas das prefeituras, em moedas e nos livros escolares. Era a pedagogia de um regime que queria ser fundador, não apenas administrador de ruínas e de uma vergonhosa derrota. A “família” legitimava a moral conservadora e a perseguição a qualquer desvio; o “trabalho” disciplinava operários e camponeses em nome de uma ordem produtiva alinhada à Alemanha; a “pátria” era invocada para silenciar opositores e naturalizar a obediência. Enquanto a liturgia moldava a vida cotidiana, a repressão política e policial eliminava dissidentes e perseguia judeus, comunistas e resistentes.
A República de Vichy foi um dos casos mais graves de entreguismo e subserviência de um Estado diante de outro. Aceitou a tutela alemã combatendo a própria resistência local, colaborou ativamente na perseguição aos judeus, entregou trabalhadores franceses ao esforço de guerra nazista, dissolveu garantias republicanas em troca de uma sobrevida administrada. Essa submissão não foi apenas militar, mas política e moral: o regime reescreveu a identidade nacional para ajustá-la à ordem hitlerista, reduzindo a França a protetorado ideológico do Reich. Na prática, facilitou à máquina de morte nazista avançar sem amarras.
Essa iconoclastia da República de Vichy contra o legado de 1789 não nasceu naquele momento. Faz parte de um fio reacionário longo, que atravessava monarquistas, católicos entreguistas e nacionalistas sempre prontos a transformar a Revolução em bode expiatório. Hoje, vemos a mesma operação em escala global: a igualdade é apresentada como ameaça à ordem, a liberdade é redefinida como obediência a uma autoridade forte, a fraternidade é encolhida até caber em identidades exclusivas — família, nação, religião. Em períodos de crise, a fórmula retorna: em vez de memória de emancipação, slogans que evocam segurança e pertencimento, embalando projetos autoritários com a retórica da tradição.
As palavras de Pétain se traduzem com clareza na gramática da extrema-direita contemporânea. A “autoridade tutelar” reaparece na exaltação de líderes fortes, no culto ao “mito” ou ao “pai da nação”, e na ideia de que a liberdade só existe sob a tutela de um chefe providencial. A igualdade confinada à hierarquia sobrevive no discurso da meritocracia seletiva, que celebra “vencedores” enquanto naturaliza a precariedade e culpa os pobres pela própria condição. Já a fraternidade reduzida à família, à cidade e à pátria se traduz na defesa de uma moral rígida, na perseguição de minorias, na vigilância sobre corpos e sexualidades, e no uso da bandeira nacional como instrumento de intimidação e exclusão.
No Brasil, essa lógica se manifesta em práticas e símbolos: slogans como “família acima de tudo, Deus acima de todos” — herança do fascismo mussolinista —; a militarização da vida política; a demonização de movimentos sociais e da diversidade; a nostalgia de uma ordem autoritária apresentada como “remédio contra o caos”. Tudo isso compõe a mesma engrenagem ideológica que sustentou Vichy: substituir a promessa universal da democracia por um idioma de medo, disciplina e exclusão, travestido de tradição e patriotismo.
E, no centro desse projeto, está o entreguismo — traço visceral da República de Vichy, que aceitava a submissão ao invasor como destino inevitável e convertia a renúncia à soberania em virtude. Eis a advertência que atravessa o tempo: onde o entreguismo se instala como prática de governo, a soberania nacional é sacrificada, e com ela se dissolve também a democracia.
(*) Ricardo Queiroz Pinheiro é bibliotecário, pesquisador e doutorando em Ciências Humanas e Sociais.























