Acabou. O papel que as forças internacionais tinham a desempenhar na Líbia está perto do fim. Com o estabelecimento de uma zona de exclusão aérea e alguns bombardeios contra aviões e peças de artilharia líbias, a coalizão militar estrangeira pôs fim à ameaça declarada por Muamar Kadafi de promover um “massacre” contra os rebeldes e atacar “alvos civis”. Os caras bons protegeram a mocinha e salvaram o dia, certo? No direito, sim. Mas, na política, não é bem assim.
A Resolução 1973 do Conselho de Segurança das Nações Unidas de 17 de março de 2011 foi adotada para proteger os civis e impedir uma tragédia humanitária. E é possível dizer que este objetivo foi alcançado – Kadafi havia dito publicamente na véspera da reunião do Conselho que mataria civis e massacraria os rebeldes. O discurso, em si, já era um crime de guerra. Qualquer omissão da ONU diante desta ameaça seria inexplicável, imperdoável. Ao dizer o que disse há 15 dias, Kadafi teclou a senha que aciona uma resposta previsível da ONU. E nas vezes em que a ONU não reagiu dessa forma – em Ruanda, nos territórios palestinos autônomos e ocupados, na região sudanesa de Darfur e em muitos outros contextos – errou. Desta vez, diante da ameaça direta de Kadafi contra milhares de pessoas inocentes, o sistema acertou.
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Mas a resolução do Conselho de Segurança não fala em mudar o regime, derrubar Kadafi ou apoiar as forças rebeldes. Aliás, a resolução não fala em “como” frear o que se anunciava como um massacre de civis. Ela simplesmente autoriza o uso de “todas as medidas necessárias” para atingir esse objetivo. Uma das razões que levou o Brasil a se abster na votação que aprovou a Resolução 1973 foi justamente a adoção de “todas as medidas necessárias”, um termo surpreendentemente vago para constar num documento desta natureza.
Agora, o presidente norte-americano, Barack Obama, diz que o “tirano” Kadafi – com quem os EUA e os demais clientes do petróleo líbio mantiveram relação cínica e conivente nos últimos anos – “perdeu a confiança de seu povo e a legitimidade para liderar”. Ora, já que estamos por lá, vamos derrubá-lo.
Será preciso um exercício de contorcionismo diplomático muito grande para encaixar a queda de Kadafi dentro do mandato estipulado pela Resolução 1973. Ou uma grande dose de arrogância e prepotência dos EUA, o que é mais provável. Basta ver a declaração feita ontem pelo presidente e Prêmio Nobel da Paz: “É verdade que a América não pode usar sua força militar onde quer que a repressão ocorra. Mas quando nossos interesses e valores estão em jogo, temos a responsabilidade de agir. Foi isso o que aconteceu na Líbia nas últimas seis semanas”. De outra forma: atacamos a Líbia para preservar nossos interesses. E se esses interesses ainda não estão protegidos? Sigamos com o dedo no gatilho.
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Há outros líderes mundiais que, aos olhos dos EUA, “perderam a confiança de seu povo e a legitimidade para liderar”. É possível dizer isso sobre Hugo Chávez, na Venezuela. Será possível dizer o mesmo sobre Raúl e Fidel Castro em Cuba, como foi possível dizer sobre Salvador Allende, no Chile, num 11 de setembro no qual os americanos não foram exatamente os “freedom fighters”, em 1973.
Mas é possível que alguns atores internacionais levantem a voz. Não em defesa de Kadafi, que cruzou os limites da legalidade e terminará morto pelos rebeldes ou condenado por um tribunal internacional qualquer. Mas em defesa de um mundo multipolar, que prefira a via das instâncias multilaterais ao uso unilateral, ilegal e ilegítimo da força, como fez George Bush no Iraque.
Ontem, Serguei Lavrov, chanceler da Rússia, disse que “há uma contradição evidente entre as declarações das capitais ocidentais que dizem que seu objetivo não é derrubar Qadhafi, mas realizam ataques aéreos sobre as colunas militares do líder líbio”. Ele tem razão. E talvez caiba mesmo a um país que joga no lixo o direito internacional ao massacrar civis e rebeldes chechenos diariamente a iniciativa de mostrar que todos, incluindo a ONU, estão fazendo das normas uma munição a mais em seu jogo político.
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