Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Quando Barbara Ehrenreich, na década de 1970, descreveu a ascensão das classes profissionais gerenciais e seu consequente distanciamento da classe trabalhadora, ela antecipou com precisão o que viria a se consolidar nas décadas seguintes. No Livro “O Medo da Queda” (Escritta, 1989), Ehrenreich apontou que os trabalhadores desamparados, sem formação universitária e tratados como mão de obra descartável – como se seu serviço fosse uma commodity – tenderiam a se afastar da elite educada, a mesma que passava a ocupar as posições gerenciais em expansão nas corporações. Ela previu que, diante desse abismo simbólico e material, esses trabalhadores acabariam aderindo à direita, compreendendo-a como a força política que restauraria dignidade, emprego e pertencimento.

Não deu outra. Nos anos 1980, essa massa trabalhadora apoiou Ronald Reagan, embalada pelo slogan Make America Great Again”, o mesmo que, décadas depois, seria reciclado por Donald Trump. No Reino Unido, algo similar ocorreu com a ascensão de Margaret Thatcher, que soube capitalizar a insatisfação de uma classe média branca e trabalhadora em meio à crise do emprego e do Estado de bem-estar social. Ambas as experiências revelaram o mesmo deslocamento: a esquerda, enquanto se intelectualizava e moralizava o discurso, se afastava do cotidiano material das pessoas comuns. E parte dessa esquerda era formada por uma classe média intelectualizada e culturalmente engajada, recém saída das universidades.

A então candidata à presidência dos Estados Unidos, Kamala Harris, durante evento de campanha em Las Vegas, Nevada. (Foto: Gage Skidmore / Flickr)

A então candidata à presidência dos Estados Unidos, Kamala Harris, durante evento de campanha em Las Vegas, Nevada.
(Foto: Gage Skidmore / Flickr)

Quarenta anos depois, o ciclo se repete. A crise financeira de 2008, embora tenha fortalecido setores ligados à tecnologia e à gestão do conhecimento, aprofundou ainda mais a concentração de renda e deixou uma massa de trabalhadores fora do ideal de classe média que sustentou o imaginário americano nas décadas de 1950 e 1960. Quando, em 2016, a imprensa liberal se surpreendeu com a vitória de Trump sobre Hillary Clinton, o espanto revelava mais sobre a bolha cultural dos jornalistas – eles próprios parte da classe profissional gerencial descrita por Ehrenreich – do que sobre o eleitorado. Era a elite cultural que não percebia que o país havia mudado de base, que a promessa meritocrática da educação superior e do sucesso profissional já não bastava para garantir estabilidade ou esperança – algo que, já se sabe, se perpetua nos Estados Unidos de hoje.

Kamala Harris é filha direta desse contexto. Após deixar a vice-presidência no governo Biden, ela escreveu um livro sobre os 107 dias de sua campanha presidencial (107 Days, Simon & Schuster, 2025). Era uma tentativa de reaproximação com o eleitorado? Não pareceu, pois estava mais propício a ser um rebrand profissional e eleitoral que apenas reafirma a distância entre o discurso democrata-liberal e a realidade social americana. O evento de lançamento do livro, em Los Angeles, reuniu um público de fãs, majoritariamente entre 40 e 70 anos, em sua maioria brancos, embora houvesse uma presença importante de, talvez, 15% de pessoas negras e latinas. Eram, em essência, membros da elite urbana – financeiramente confortáveis e simbolicamente alinhados ao ethos democrático liberal.

Kamala foi entrevistada pela atriz Kerry Washington, amiga pessoal sua, o que deu à conversa um tom promocional e confortável. A ex-vice-presidente repetiu frases genéricas sobre a necessidade de “ouvir as pessoas” e “engajar-se na luta política”. Quando afirmou que, se fosse presidente, criaria uma Secretaria da Cultura porque “o povo americano é muito criativo e o mundo precisa dos americanos”, a plateia aplaudiu entusiasmada, como se estivesse diante de uma epifania. Em outro momento, disse: “se você é latino, entre de cabeça erguida em um lugar onde só há brancos”. A retórica identitária substituiu a política: um discurso centrado na autoestima, não na redistribuição; na performance simbólica, não na estrutura material. 

Essa fala é o retrato da liturgia da virtude, que domina o campo liberal norte-americano – e, em certa medida, também o brasileiro. Aponta a professora e crítica cultural americana Catherine Liu que trata-se de um progressismo esvaziado, que confunde representação com transformação e que se contenta em produzir gestos morais no lugar de programas políticos focados na classe trabalhadora. A defesa das minorias é legítima, mas, quando feita em tom de slogan, reforça a percepção de elitismo e isola ainda mais a esquerda das classes populares que estão sofrendo para fechar suas contas. É o que Barbara Ehrenreich já havia diagnosticado: a classe profissional gerencial, altamente educada, cosmopolita e moralmente convicta, não fala mais para o povo, mas para o espelho de sua própria consciência.

Enquanto Kamala discursava sobre “ouvir as pessoas”, não mencionou nenhuma proposta concreta sobre saúde, habitação ou renda – temas centrais num país onde um tratamento de câncer pode levar uma família à falência. O Obamacare foi uma exceção importante aos mais pobres em meio a um vácuo de políticas universais que contemplem toda a sociedade americana. O restante da agenda democrata segue preso a palavras de ordem moral, à celebração da diversidade e a uma fé difusa na boa vontade do mercado. É um discurso que conforta os convertidos, mas não convence os desiludidos.

A extrema-direita, por sua vez, compreendeu melhor o sentimento de abandono. Surfou na frustração das classes trabalhadoras – jovens, desempregados, niilistas, descrentes no modelo americano de sucesso. Enquanto a esquerda insistia em explicar derrotas eleitorais por “fake news” e “crise das mediações” – Kamala, a propósito, repetiu isso insistentemente –, a direita oferecia algo mais simples: um inimigo palpável e uma promessa de repertencimento.

No Brasil, há algo semelhante ocorrendo. A esquerda institucional democrática parece ter dificuldade em dialogar com o chamado “meio termo” – essa classe média que não se entende nem como de esquerda nem como de direita, que não é bolsonarista, mas quer estabilidade, segurança e honestidade. São demandas elementares, associadas à moralidade cotidiana que são base de nossa cultura – cristã, que seja dito – e que deveriam estar no centro de qualquer projeto político progressista.

Pesquisas recentes nos Estados Unidos, publicadas por veículos como a Jacobin, mostram que a maioria dos americanos apoia políticas pré-distributivas – aquelas que garantem melhores salários, acesso à saúde e educação pública – muito mais do que as pós-distributivas, centradas apenas na necessária revisão da taxação de bilionários. É nesse terreno, o das políticas concretas e universais, que a esquerda deveria reconstruir sua base, e não na retórica moralista que hoje domina seus palcos.

O evento da Kamala, portanto, foi mais do que uma palestra: foi a encenação perfeita da crise de representação da classe gerencial globalizada. Um espetáculo de boas intenções sem consequência, um culto da virtude performativa que revela, a cada aplauso, a distância entre quem fala e quem trabalha.

(*) Leonardo Moura é jornalista, pesquisador e doutorando em Comunicação e Práticas de Consumo pela ESPM-SP. É autor dos livros Conteúdo de Marca: Os Fundamentos e a Prática do Branded Content (finalista do Prêmio Jabuti 2022), Como Analisar Filmes e Séries na Era do Streaming e Vídeos Curtos: Como O Novo Consumo Transforma o Audiovisual e A Publicidade, todos publicados pela Summus Editorial. Atua como professor universitário e consultor em comunicação e cultura digital.