Irã e Israel, entrelaçados na História e rumo ao Juízo Final?
Conflito direto de Israel contra o Irã é ameaça para toda a humanidade e contradiz argumentos histórico-religiosos pelos quais os sionistas legitimam seu regime
Nos últimos dias, o mundo está em choque com os acontecimentos dramáticos entre Israel e Irã. Após o premiê israelense Benjamin Netanyahu autorizar a execução de Hasan Nasrallah, líder do Hezbollah, no Líbano, eis que o Irã respondeu com um ataque de mísseis hipersônicos – que se mostraram capazes de atingir o território de Israel, furando suas defesas antiaéreas. Agora, estamos em compasso de espera para uma suposta resposta israelense.
Além dos riscos, nada desprezíveis, do conflito entre as duas maiores potências militares do Oriente Médio – ou Ásia Ocidental, a depender da perspectiva –, a situação não deixa de gerar um curto-circuito narrativo para Israel, que se legitima enquanto derivação do reino bíblico de Israel, havido há quase três mil anos. Então como fica esse discurso se Ciro, fundador do Irã, é o primeiro messias e, portanto, seu Salvador?
A República Islâmica do Irã é sucessora do Império Aquemênida de Ciro – certamente muito mais do que Israel sucede dos antigos israelitas. A estrutura dos aquemênidas serviu de ambiente cultural para o desenvolvimento do Judaísmo, permitindo-o tomar sua forma definitiva. Ainda hoje, as promessas de Ciro se cumprem, uma vez que o Irã é o lar de uma comunidade judaica – contínua e milenar, possuindo direitos e representação política.
O Irã e o Hezbollah
Ainda que não tenha sido o primeiro “império” em sentido genérico, o Irã Aquemênida – referido como Pérsia, pela origem de sua elite dinástica – foi o protótipo para os impérios como os conhecemos, isto é, enquanto entidade política vasta, expansionista e assentada em uma liderança central, mas ao mesmo tempo garantidora de uma estrutura plurinacional e uma cultura cosmopolita.

Quando o assunto é o Irã, a propaganda israelense rapidamente esquece do Velho Testamento, na sua ininterrupta ação de propaganda junto às platéias fundamentalistas cristãs.
(Foto: Sarallah Ankouti / Tasnim News)
É óbvio que o Irã sofreu inúmeras dominações, seja por gregos, árabes ou turcos, aderiu ao Islamismo, mas a língua persa – que pertence à mesma grande família linguística do português, e não das línguas semitas – jamais foi substituída, o que manteve sua tradição literária, jurídica e política. Isso se expressa em uma formulação particular e sofisticada do Islamismo, o que se explica pela dimensão anterior à chegada do Alcorão.
Esse Irã, sobretudo depois da Revolução Islâmica do final dos anos 1970, se configurou como o mais poderoso Estado entre os países islâmicos da Ásia Ocidental. Nos últimos anos, ele se materializou na grande barreira ao poder americano e israelense na região, com uma grande teia de movimentos e partidos, com seus braços armados, a resistir no Líbano, Iraque, Iêmen, Síria, entre outros lugares.
No século XXI, com as ações americanas que destruíram o Iraque e tentaram destruir a Síria, um enorme espaço vazio foi ocupado pelo poder iraniano, que se projetou a oeste, a exemplo do velho império, que chegava ao Mediterrâneo. Antes mesmo disso, o Hezbollah no Líbano foi um desses elementos, que representou uma limitação ao poder israelense, pondo fim à longa ocupação do Sul do país por Israel, entre 1982-2000, e repelindo a tentativa de invasão em 2006.
Nasrallah era o líder do Hezbollah, o Partido de Deus, principal movimento político xiita no multicultural Líbano. E, como é óbvio, Nasrallah era um dos maiores antagonistas israelenses. Por razões religiosas, ideológicas e estratégicas, Nasrallah era alinhado ao Irã, formando o chamado Eixo da Resistência que se opôs aos planos americanos de sujeitar ainda mais a Ásia Ocidental aos seus desígnios.
Síria e os Acordos de Abraão como forma de reconstruir a logística global do petróleo
O Hezbollah rapidamente se tornou o alvo da vez após abrir fogo com média intensidade enquanto Israel dizimava a Faixa de Gaza. A cadeia de comando do Hezbollah foi atingida com a audaz – e terrorista – ação israelense explodindo os pagers usados para comunicação, forçando uma reunião presencial de Nasrallah e seu alto comando, o que se mostrou um erro primário e fatal.
O gesto, autorizado enquanto Netanyahu estava na Assembleia-Geral da ONU, é mais um pá de terra sobre o falido sistema internacional. É impressionante que há um ano Israel fazia uma ofensiva diplomática, baseada na coerção – patrocinada pelos Estados Unidos – e um misto de gestos amigáveis para atrair a Arábia Saudita para os acordos que fizeram Bahrein e Emirados Árabes reconhecerem Israel em 2020.
Nos oito anos da presidência de Barack Obama, embora marcados por indisposições com Netanyahu, a aposta feita era destruir o Estado Sírio, sobretudo com a oportunidade aberta pelas revoltas da Primavera Árabe, quando surgiu a possibilidade de remover o regime. Obama, como sabemos, fracassou na empreitada, uma vez que a intervenção russa impediu a queda do regime de Bashar al-Assad em Damasco.
Embora Assad tivesse posturas muitíssimo mais moderadas do que seu pai em relação ao Ocidente, o fato é que aproximar e depois remover adversários é a velha política americana para o mundo islâmico. Vide a destruição da Líbia em 2011, mesmo que as relações entre Ocidente e o regime de Gaddafi já estivessem, em tese, normalizadas há tempos. Em ambos os casos, os levantes da Primavera Árabe foram aproveitados por Washington.
A tentativa de destruição do Estado Sírio, em particular, foi uma retaliação cuidadosamente planejada, pelos Estados Unidos e a OTAN, em razão de Assad se negar a dar passagem a um gasoduto com origem no Qatar – como apontou o crítico do regime sírio Nafeez Ahmed. Este gasoduto desaguaria na costa da Síria rumo à Europa, iniciando, assim, um processo irreversível de transporte de gás e petróleo árabes por terra diretamente para o Mediterrâneo.
A alternativa oferecida por Assad foi um gasoduto que viria do Irã, atravessando o Iraque – o que teria uma origem fora do controle ocidental. Se o motivo pelo qual o Ocidente desejava construir o gasoduto do Qatar era, precisamente, se livrar da influência estratégica do Irã – que poderia a qualquer momento travar o golfo Pérsico, caso fosse ameaçado –, logo essa “alternativa” não interessava realmente a ninguém.
O grosso do petróleo e do gás extraídos nas Arábias, por sinal, é embarcado no golfo Pérsico, demandando a circunavegação da Península, para acessar o mar Mediterrâneo. Assim é abastecida a gigantesca – e desabastecida de petróleo – economia europeia. Mas isso cria um desafio estratégico porque há dois estreitos, Ormuz e Bab al Mandeb, sob controle direto e indireto iraniano, respectivamente, além do canal de Suez, sob controle egípcio.
O fracasso da operação de destruir o regime sírio demandou, aí sim, uma alternativa. A Síria se mostrou resiliente e ainda contou com o apoio russo, legitimado pelo desabonador apoio velado do Ocidente aos grupos fundamentalistas, como o Estado Islâmico, mobilizados depois da oposição laica a Assad falhar. Para Moscou, o Ocidente criar uma alternativa para seu fornecimento europeu era um ataque óbvio ao seu comércio de gás.
Uma vez eleito, Donald Trump rifou a estratégia democrata para a Síria e, ato contínuo, apostou em uma política de forçar uma paz entre Israel e países árabes com objetivo de substituir a costa Síria pela israelense – sobretudo a oprimida Faixa de Gaza. Esse plano foi mantido por Joe Biden, mas demandava ainda forçar a Arábia Saudita a fazer comércio com Israel, o que foi abortado pelo levante do Hamas em 7 de outubro do ano passado.
O vácuo gerado pela destruição do Estado iraquiano, pela guerra em relação a qual Trump foi contrário à época, embora apoiada por seu partido, no entanto, gerou um espaço pelo qual o Irã é capaz de se movimentar, colocando à prova as estratégias ocidentais – não à toa, Trump eliminou o general Soleimani, principal articulador da estratégia iraniana na Ásia Ocidental no aeroporto de Bagdá.
Irã e Arábia Saudita em paz e nos BRICS
Em março do ano passado, em pleno Ramadã, o mês sagrado dos muçulmanos, sauditas e iranianos firmaram um acordo de paz em Pequim, na China, o que fez a diplomacia americana saltar os olhos. Meses depois, em agosto, os dois países entraram no BRICS, causando frustração em Washington, que passou os últimos anos tomando o lado saudita e, em grande medida, insuflando um conflito entre Irã e Arábia Saudita.
Naquele momento, os Emirados Árabes e o Egito também entraram no BRICS, o que permitiu ao bloco estar presente tanto no golfo Pérsico quanto no mar Vermelho, além de controlar os dois estreitos e o canal essenciais à circunavegação da península Arábica. Isso foi uma estupenda derrota da administração Biden e exigia uma resposta imediata e contundente: a “pacificação” das relações entre a Arábia Saudita e Israel.
A conjunção do aumento da violência contra os palestinos, manifestado pelo mais extremista de todos os gabinetes chefiados por Netanyahu, com a possibilidade do “acordo” saudita-israelense impossibilitar, talvez definitivamente, o estabelecimento de um Estado da Palestina, ajudam a explicar o porquê da ação do Hamas, que está prestes de completar um ano – ação que transformou as relações internacionais desde então.
Se Netanyahu já vivia às voltas com uma grave crise no regime israelense, após o levante de 7 de outubro uma expedição punitiva na Palestina era necessária para responder ao público interno israelense – mas obviamente também satisfazia a gestão Biden, que forneceu armas e apoio a Netanyahu, possivelmente mirando uma jornada “disciplinar” na Ásia Ocidental com vistas ao Irã e a desmobilização da zona de circulação criada pelo BRICS.
Ainda que o Hezbollah tenha lançado ataques pontuais a Israel enquanto ele revidava o Hamas, massacrando a população civil de Gaza, o fato é que Netanyahu tinha todo o interesse de expandir a guerra – mesmo que não houvesse evidências de que a ação do Hamas tenha sido coordenada pelo Hezbollah ou pelo Irã, nem eles tenham agido de forma decisiva para interromper a destruição de Gaza.
Apesar de uma retórica progressista que busca isentar o papel de Biden e dos democratas nos atuais morticínios, que se repete com um ataque desproporcional a Beirute, o fato é que a atual administração americana segue dando apoio e financiamento às ações de Netanyahu – e, na pior das hipóteses, segue a reboque dela, mas o fato é que as ações anti-iranianas do governo israelense interessam a Washington.
De volta para o passado, o Irã e a escatologia
Quando o assunto é o Irã, a propaganda israelense rapidamente esquece do Velho Testamento, na sua ininterrupta ação de propaganda junto às platéias fundamentalistas cristãs. Assim, entra em cena a noção vaga de uma guerra santa contra o Islamismo, mas não deixa de ser curioso que Israel, sob os auspícios americanos, tenha buscado acordo com a antijudaica Arábia Saudita, enquanto elegem justo o Irã como o inimigo.
Na antiguidade, no Irã, sob a religião zoroastrista, nasceram noções como o dualismo entre Bem e Mal, um fim do mundo com um Bem triunfando e, ainda, um Messianismo na forma de Saoshyant, o protótipo da ideia do “messias” – e, afinal de contas, do Cristo. Ciro é descrito como Salvador pelos judeus, e o Império Aquemênida é aclamado como um reino de justiça e paz.
Não à toa, o Islamismo, com toda razão, admite o Zoroastrismo – ou Mazdaísmo – como uma Religião do Livro. E se o Zoroastrismo, com suas raízes avestanas – e, portanto, em grande medida védicas – ajudou a gerar o monoteísmo abraâmico no Ocidente, por outro lado, o Islamismo retornou com um bumerangue ao chegar ao Irã, o que não deixa de ser curioso, mas é da própria História.
Religião e velhos argumentos históricos – até mesmo a fidelidade pela Tradição – obviamente são narrativas de legitimação instrumentalizadas na busca estratégica pelo controle dos fluxos de gás e petróleo – a energia que tomou o lugar do ouro e é a verdadeira moeda do mundo. Nessa disputa, vidas humanas pouco importam, e o velho direito de guerra – que diferencia a civilização da barbárie – é atirado pela janela.
Por ora, é sob a égide democrata de Joe Biden que eventos violentíssimos ocorreram ao redor do mundo, ao contrário do que o senso comum liberal fazia crer. A evolução para mais um conflito, ainda maior, desta vez envolvendo diretamente o Irã, seria mais um desdobramento assombroso disso. E nesse bailado apocalíptico, Biden e Netanyahu se atropelam e se manipulam reciprocamente, precipitando-se – e nos levando junto – em direção ao abismo.
Israel foi criado pelas Nações Unidas, mas é um frequente desrespeitador de suas resoluções; igualmente, Israel surgiu na esteira do Holocausto, muito embora não respeite a dignidade humana dos palestinos. Agora, ele arranjou uma terceira contradição antagônica para sua coleção: vilipendiar a Tradição e suas promessas, que aparecem como fundamento religioso-histórico para a existência do Judaísmo, ao investir contra o Irã.
Se modernas análises apontam que o Livro de Isaías foi escrito por várias pessoas ao longo de séculos, por outro lado, podemos embarcar na fantasia da Tradição e acatar que ele foi escrito de uma só vez e, por isso, profetizado a existência de Ciro, o Grande. Assim, estaríamos diante de uma pedra angular do Judaísmo, e a ação de Netanyahu é incontornavelmente falha.
Por sinal, a grande lição de Isaías, como aponta com precisão David Petersen, é que ele fundamentou a justiça na santidade de Deus, falando pelos oprimidos, e não na aliança de Israel – o que traria uma segunda questão complexa e uma revelação profética menos óbvia do que a aparição de um messias que seria martirizado, o que foi interpretado séculos mais tarde como Jesus Cristo pelos próprios evangelistas.
Ainda que se faça uma leitura materialista de Isaías – que se torna, dessa forma, ao menos três textos –, o fato é que essa ação israelense atenta contra uma fundação profunda do próprio edifício do Judaísmo. A aniquilação recíproca que pode acontecer pelas armas, na verdade, acaba se tornando a parte simbólica dessa conversa, uma vez que destruir o Irã e seu legado seria destruir a Tradição e a Lei que o sionismo instrumentaliza.
(*) Hugo Albuquerque é jurista e editor da Autonomia Literária.























