Sábado, 6 de dezembro de 2025
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A situação política na Grã-Bretanha é das mais alarmantes para as classes trabalhadoras de lá, bem como as de outras latitudes influenciadas pela ex-potência imperial. Após o massacre promovido pela Era Tatcher nos anos 1980, seguido pela penosa hegemonia do “Novo Trabalhismo” desde meados dos anos 1990 em diante, uma nova etapa de catástrofes políticas abriu-se por volta de 2010, quando a eleição de David Cameron inaugurou a atual fase de declínio econômico, social, moral e, sobretudo, ideológico na correlação de forças das lutas de classes naquela nebulosa ilha do Atlântico Norte. 

A campanha de Cameron decerto aproveitou-se do desgaste acumulado dos governos Blair-Brown, tanto no plano doméstico, com a erosão dos direitos sociais e serviços públicos, quanto no front externo, com a infame adesão à Guerra do Iraque. Mas foi a proposta eleitoral do Brexit, isto é, de promover no prazo de sete anos um plebiscito popular sobre a permanência ou saída da União Europeia, que simbolizou a terrível mudança que estava por vir. Pensando qualitativamente, esta foi a cereja do bolo, o estopim ideológico, por assim dizer, que galvanizou o eleitorado britânico para a guinada à direita que se anunciava justo naquele instante. Cameron passou (e quase retornou)[1], mas o seu oportunismo eleitoral custaria-lhe o mandato e, pior, abriria uma caixa de pandora que até hoje ninguém foi capaz de fechar.

Nigel Farage, líder do partido de extrema-direita inglês Reform UK. (Foto: Gage Skidmore / Flickr)

Nigel Farage, líder do partido de extrema-direita inglês Reform UK.
(Foto: Gage Skidmore / Flickr)

O autor destas linhas (sobre)viveu naquele país justo quando a cartada populista de Cameron recebeu toda a atenção midiática que desejara. É fácil recordar qual era o grande objetivo: atrair os votos de uma direita radical em ascensão, porém ainda diminuta. Na cena partidária, o UKIP (Partido da Independência do Reino Unido) não ameaçava o bipartidarismo tradicional da política britânica (que também conta com partidos menores, desde que se mantenham como força auxiliar na hora de fechar uma coalizão governante em caso de eleições apertadas). Cameron, portanto, conseguiu uma Vitória de Pirro, pois ganhou as eleições, mas não impediu que Nigel Farage, líder do UKIP à época, prosseguisse a sua ascensão e, menos ainda, que o Partido Conservador perdesse o controle sobre os setores mais dinâmicos da direita inglesa, tornando-se, ao fim, refém daqueles que antes eram uma fração marginal de sua base de apoio.

Setores que também se organizavam em torno do BNP (Partido Nacional Britânico), liderado por Nick Griffin, ou da EDL (Liga de Defesa Inglesa), grupelhos proto-fascistas que atraíam alguma atenção sem, no entanto, representarem grande perigo. As passeatas da EDL eram geralmente dispersas pelos movimentos antifascistas (às vezes com algum custo, mas sempre com estes prevalecendo nos confrontos de rua). Quando a BBC, rede pública e supostamente independente do governo, decidiu convidar Griffin para um debate no horário nobre, uma gigantesca coalizão de movimentos sociais de esquerda literalmente cercou a sede da emissora, impedindo-o de entrar, após intensos choques com a polícia.[2] O BNP também sofreu com a ação dos movimentos negros, que realizaram uma filiação em massa num partido abertamente racista e supremacista branco (a justiça terminou por obrigar o partido a aceitar a filiação de quem quisesse). Em suma, a direita radical estava lá, mas era contida tanto pela esquerda quanto pela própria direita conservadora tradicional. Cameron pôs fim justamente a esta contenção.

Em 2017, quando chegou a hora de pôr em prática a promessa de campanha do Brexit, tudo saiu do controle. A vitória do “Leave” (sair) obrigou aos Tories, como são apelidados os conservadores, a lidar com a materialização de sua própria ideologia, calcada numa indisfarçável nostalgia imperial: ninguém pode estar acima da Grã-Bretanha, nem mesmo os europeus do continente. Em última instância, foi o racismo que venceu aquela campanha. Mas boa parte do establishment britânico tinha dúvidas sobre os riscos materiais, econômicos e políticos desta decisão. A hesitação em implementar o Brexit tornou-se a maldição que destruiria múltiplos governos conservadores dali em diante: o próprio Cameron renunciou por esta razão, que também ceifou os mandatos de Theresa May, Boris Johnson e Rishi Sunak (embora a guerra da Ucrânia e a pandemia, além dos escândalos pessoais, tenham desgastado a todos).

Por sua vez, Farage captou para si o saldo político chauvinista da vitória no referendo, ocasião em que ele já fundara um novo partido chamado, literalmente, “Partido Brexit”. Assim, enquanto os Tories batiam cabeça entre si (e com as burguesias britânicas) tentando implementar os resultados, Farage consolidou sua imagem de “político por vocação”, no sentido weberiano, ao retirar-se da cena pública tendo em vista que sua missão estava realizada. O retiro pareceu sincero, mas quando a oportunidade de retorno apareceu, ele não hesitou em agarrá-la. Em 2021, rebatizou seu partido como “Reform UK” e voltou com toda força ao cenário político após participações em reality shows e uma breve carreira como entrevistador em programas de TV e rádio. Hoje, as pesquisas indicam que o “Reform UK” é, com sobras, o partido mais popular do país, com 27% de preferência dos eleitores, ao passo que Trabalhistas e Conservadores ficam empatados em segundo lugar, ambos com um distante 17%, quase a mesma cifra dos Verdes (16%) e do eterno “terceiro-partido” Liberal-Democrata (15%). Existe um virtual consenso de que nas próximas eleições teremos uma histórica derrocada do bipartidarismo e um inédito governo de extrema-direita, sob a liderança de Farage como primeiro-ministro.[3]

Por seu lado, a esquerda parece, até o momento, incapaz de fazer frente a este processo de radicalização da direita em curso. Já se vão longe os tempos de sucesso da “Stop the War Coalition”, que desembocou na eleição de um parlamentar (George Galloway) pela aliança intitulada “Respect”, composta por uma miríade de movimentos, partidos e agrupações à esquerda do Novo Trabalhismo. O principal dentre eles, o Partido dos Trabalhadores Socialistas (SWP), de orientação trotskista-luxemburguista, acabou implodindo-se internamente diante de escândalos machistas e, sobretudo, por conta de divergências acerca da rebelião popular de Agosto de 2011, quando cidades inteiras, incluindo Londres, arderam por cinco noites seguidas, após a população periférica se revoltar contra um assassinato racista cometido pela polícia da capital, iniciando uma série de incêndios, depredações e saques generalizados em diversas cidades (ao todo foram mais de 3 mil pessoas presas em toda a Inglaterra somente naquela semana).

Na falta de organizações próprias, uma faísca de esperança apareceu quando inúmeros militantes optaram pela tática do “entrismo” e filiaram-se em massa a um Partido Trabalhista em crise, logrando uma vitória temporária, ao elegerem Jeremy Corbyn como líder desta agremiação. O entusiasmo, contudo, durou pouco. A velha-guarda “blairista”, que representa o social-liberalismo da outrora chamada Terceira Via teorizada por Giddens, mas que no fundo é tão neoliberal e imperialista quanto os Tories, reagiu boicotando seu próprio partido numa eleição nacional e forçando a demissão de Corbyn em meio a absurdas acusações de anti-semitismo.[4] Sob o comando de Keir Starmer, o partido que construíra um dos mais amplos Estados de Bem-Estar Social (welfare) agora parece fadado a ruir em meio a sua obsessão com o Estado de Guerra (warfare) contra a Rússia.

Ao contrário da direita radical, entretanto, a esquerda radical ainda não conseguiu deslanchar um processo sólido de organização da classe trabalhadora em um partido político próprio. Após a decepção com o “entrismo”, agora é a vez do sectarismo personalista dar o tom do fracasso. Muito tardiamente, ícones da esquerda trabalhista e setores à esquerda do trabalhismo decidiram, finalmente, criar um novo instrumento político realmente combativo, ao qual deram o (péssimo) nome inicial de “O Seu Partido” (Your Party). No entanto, antes mesmo de seu primeiro congresso, agendado para o mês corrente, as disputas internas já aparentam minar o processo prematuramente. O mais triste é que tais disputas versam sobre controle do processo de filiação e protagonismo (entre os campos ao redor de Corbyn e da também ex-parlamentar trabalhista Zarah Sultana) e não sobre ideias, doutrinas ou planos de ação.[5] Em todo caso, os socialistas radicais não estarão prontos para desfrutar da imensa insatisfação social que recairá, de bandeja, sobre o colo do “Reform UK”, partido que não para de crescer também em antigas regiões operárias.

Neste cenário repleto de labirintos e becos-sem-saída, é urgente que as forças anticapitalistas na Grã-Bretanha superem a lógica dos cálculos mesquinhos para que se coloquem à altura da necessidade histórica de enfrentar a nascente hegemonia da direita radical. Para tanto, além de criar partidos (o que é absolutamente necessário) terá de enfrentar frontalmente alguns temas espinhosos como a desindustrialização, a imigração e a guerra na Ucrânia, que requisitarão de uma postura crítica, pela esquerda, à OTAN, mas também acerca da própria União Europeia. Temas que os trabalhistas, sempre vacilantes, nunca conseguiram superar e que também podem custar caro à esquerda que se pretende mais radical. 

Como Farage nada tem de bom pra oferecer às classes trabalhadoras[6] além de uma compensação sentimental pós-imperialista pelas perdas materiais que vêm sofrendo há décadas, a urgência desta tarefa é ainda maior. No bojo de uma agonizante crise de impotência da ex-potência capitalista de outrora, os alertas de Frantz Fanon parecem mais atuais do que nunca: “é preciso […] que as massas europeias decidam despertar, sacudir seus cérebros e parar de brincar, irresponsavelmente, de Bela Adormecida”[7]. 

Pois, deixados à vontade, os “parasitas do imperialismo”, como os chamava Hobson[8], acomodados no topo das burguesias, dos castelos e dos parlamentos britânicos, seguirão impedindo que os trabalhadores salvem a Inglaterra de si mesma, ao passo que continuam capazes de infligir sérios danos ao redor do mundo, como as devastações do Iraque, da Líbia (sob as ordens de Cameron) e, mais recentemente, da Ucrânia, não cessam de nos mostrar.

(*) Miguel Borba de Sá é historiador pela UFRJ, doutor em Relações Internacionais pela PUC-RIO e Mestre em Ideologia e Análise de Discurso pela Universidade de Essex.
Notas:
[1] Entre 2023 e 2024 ele serviu como Ministro dos Assuntos Estrangeiros no gabinete de Rishi Sunak.
[2] O fato de lidarmos com uma polícia não-armada certamente facilitava este tipo de ação. Griffin acabaria conseguindo pousar de helicóptero no telhado da emissora e participar do programa. Mas a sua sina estava dada: os movimentos antifascistas sempre impediam-no de falar nas universidades, expulsando-o, se fosse necessário, aos pontapés dos auditórios. Ele sempre fugia, como uma galinha verde. 
[3] A própria BBC parece endossar o fato: https://www.bbc.com/news/articles/cm2kyjrg77eo
[4]  Vale lembrar que Corbyn é um intransigente defensor da causa palestina, o que obviamente torna-lhe um alvo preferencial do lobby sionista. Ver, a respeito, a foto da página atual da coalização contra a guerra:
https://www.stopwar.org.uk/
Hoje sabemos que as alegações contra ele foram fabricadas pelo próprio Partido Trabalhista. Até mesmo o fato de Corbyn ter escrito um prefácio à obra clássica de John Hobson sobre o imperialismo foi usado como ‘prova’ de seu alegado anti-semitismo. Ver, a respeito, a série de reportagens investigativas da Al Jazeera: https://www.ajiunit.com/investigation/the-labour-files/ 
[5]  Ver, a respeito, o bem-fundamentado alerta de Bhaskar Sunkara em interessante artigo sobre o tema: 
https://jacobin.com/2025/09/your-party-corbyn-sultana-workers
[6]  O único benefício que Farage poderia propiciar às classes trabalhadoras britânicas seria uma desvinculação do afã militarista da OTAN em relação à Rússia e China. Mas, justamente neste ponto, ele parece já ter voltado atrás e alinhado-se ao projeto liberal-expansionista (‘globalista’) que um dia criticara.
[7]  Fanon, Frantz. (2005) Os Condenados da Terra. Juiz de Fora-MG: Ed. UFJF, p.126.
[8]  Hobson, J. (1981) El Estudio del Imperialismo. Madrid: Alianza Editoral, cap. 4, pp. 56-79.