Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Considerado um dos pais fundadores da sociologia brasileira, Florestan Fernandes (1920-2005) foi pouco lembrado pela imprensa, mesmo a de esquerda, no aniversário dos 105 anos do seu nascimento. Algumas postagens e textos em sua homenagem foram publicados, mas talvez a parte mais urgente de sua obra para o tempo que vivemos mereça mais atenção.

Antes de cientista social, Florestan foi um trabalhador que viveu, desde a infância, apaixonadamente as mudanças políticas radicais. Suas primeiras memórias políticas remontam à revolução de 1930, que, aos dez anos de idade, comemorou nas ruas de São Paulo junto com trabalhadores cansados da dominação da oligarquia paulista, abalada pela crise de 1929 nos Estados Unidos. Na época, já era um trabalhador, aliás: teve de largar o Grupo Escolar Maria José, no Bixiga (a escola existe até hoje, na esquina da rua Treze de Maio com rua Manoel Dutra) após três anos de alfabetização para ganhar a vida e ajudar a família.

A trajetória do engraxate que se tornou professor catedrático da USP é razoavelmente conhecida. Sua influência na sociologia e na antropologia, pelos estudos sobre negros e indígenas, é indiscutível. Mas há uma área cuja contribuição de Florestan tem sido, na minha avaliação, negligenciada: a ciência política.

Um dos alunos de Florestan, Fernando Henrique Cardoso, embrenhou-se mais claramente por este ramo das ciências sociais, assumindo a cadeira na USP. Florestan permaneceu, nas narrativas hagiográficas, como “o sociólogo” que, também, contribuiu com a antropologia (com seus livros sobre a organização social e a função social da guerra nas sociedades tupinambás durante a colonização) e a educação (sobretudo por conta de seus escritos em defesa da escola pública).

Florestan Fernandes discursa como deputado. Ele exerceu dois mandatos: 1987-1991 e 1991-1995. Foto: Câmara dos Deputados

Florestan Fernandes discursa como deputado. Ele exerceu dois mandatos: 1987-1991 e 1991-1995. Foto: Câmara dos Deputados

A ciência política, no entanto, dá de ombros para escritos na área, muitas vezes entendidos apenas como materiais de propaganda radical de ideias socialistas e partidárias (para o Partido dos Trabalhadores).

Entendo, porém, que não é bem assim.

O que é revolução? e A Constituição inacabada

Depois de voltar do autoexílio, nos anos 1970, e não retornar à Universidade de São Paulo, Florestan dedicou-se ao trabalho militante. Mas não era qualquer militância. Era uma militância essencialmente intelectual e, ao mesmo tempo, agitadora, em que se destacou o livro O que é revolução, publicado na coleção Primeiros Passos, da editora Brasiliense, e por coletâneas de profundos e sintéticos artigos que, em geral, saíram antes em jornal que em livro.

Entre os livros dos anos 1980, destacam-se Que tipo de República? (1987) e A Constituição inacabada (1989). Este último livro, aliás, é especialmente precioso, pois seus textos foram escritos a quente, durante e logo após a promulgação da Constituição de 1988.

Como ele próprio explicitava, sua abordagem era a de um “observador participante”, priorizando a análise sobre a situação política concreta para desvendar os impasses sociais e políticos. Seu objetivo era, por vezes, influir nas decisões dos colegas constituintes – mas, em geral, seu alvo eram os movimentos populares.

Sem contar com planilhas, orientandos ou ferramentas de inteligência artificial, Florestan Fernandes demonstrou toda sua acuidade analítica. Ele percebeu que a Assembleia Nacional Constituinte, embora tenha sido concebida para legitimar a “transição lenta, gradual e segura” sonhada pelos militares, acabou por gerar uma Constituição “substantivamente democrática”, abrindo múltiplos caminhos e conferindo voz aos trabalhadores.

Nas suas palavras, ela criava um “espaço legal para a luta de classes”, algo até então bloqueado no país. Florestan, no entanto, enfatizava que a Constituição só seria eficaz se se tornasse um valor e fosse inserida nas lutas políticas pela liberdade e igualdade.

Influência no PT e sobre Lula

Embora estivesse à esquerda no Partido dos Trabalhadores, a influência dele sobre a bancada constituinte foi decisiva em vários aspectos. E pode se notar, por exemplo, em artigo do então deputado Luiz Inácio Lula da Silva no desfecho da Constituinte. Em texto de outubro de 1988 na Folha de S.Paulo, Lula apresentou uma síntese do pensamento do PT sobre a Constituição que guardava notável semelhança com as análises de Florestan, a ponto de podermos conjecturar que o texto possa ter passado por sua revisão.

Lula afirmou que a Constituição de 1988 “joga no lixo a colcha de retalhos arranjada pela Junta Militar de 1969”, abrindo caminhos para a sociedade civil, mas, contraditoriamente, mantinha elementos como a “tutela militar, o sistema de representação antidemocrático, as regalias para o capital e a antirreforma agrária”.

Os acertos de Florestan em suas previsões são impressionantes e ressoam no Brasil contemporâneo. Ele compreendia que eventos como o golpe de 1964 não eram isolados, mas parte de um padrão recorrente de erros e omissões históricas, alertando que o país corria o risco de não completar sua “revolução burguesa”. Sua análise da “Constituição inacabada” revelou que, apesar dos avanços, o país não havia superado as amarras do passado, como o sistema escravista e uma sociedade de classes autocrática e militarizada.

O Florestan pessimista e o otimista

O Florestan “pessimista” de A Constituição inacabada acertou “na mosca” ao prever os focos de conflito e como a burguesia mobilizaria suas forças contra as demandas por igualdade de gênero, raça, equilíbrio econômico, educação e saúde pública. Ele diagnosticou também a “resistência patológica à mudança social” da burguesia brasileira, que, para não perder o poder, preferiria ceder os anéis para ficar com os dedos, mesmo que isso significasse o retrocesso do país. Seus escritos apontavam ainda os limites da “esquerda da burguesia” (como o PSDB), que, na sua avaliação, seria esmagada caso avançássemos no campo das lutas sociais.

O Florestan “otimista” acertou ainda ao prever que a Constituição abriria “espaços novos para os de baixo lutarem” por direitos recém-conquistados, como se viu na capacidade da esquerda de utilizar o texto legal para avançar suas pautas.

A capacidade de antever o destino do país residia em seu pensamento dialético e na atenção simultânea ao “pequeno” (cotidiano) e ao “grande” (estrutura social). Para Florestan, a ciência política era um instrumento de intervenção, que devia se comprometer com a transformação social, sem se limitar a abordagens excessivamente quantitativas ou institucionalizadas.

Resgatar o pensamento político de Florestan Fernandes, sobretudo seu método, talvez ajude a pensarmos nossas dificuldades mais prementes, quando parcela da burguesia parece estar disposta a lutar pelos Estados Unidos contra o próprio país.