Guinada da Europa mostra que a austeridade fiscal é uma opção política
Com saída de cena dos EUA na proteção da Europa e da Ucrânia, as lideranças europeias esqueceram o discurso de austeridade. A nova moda é o “keynesianismo de guerra”
A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, anunciou que a União Europeia irá gastar 800 bilhões de euros para aumentar sua capacidade de defesa. O anúncio vem acompanhado da intenção de relaxar as regras fiscais do continente: a nova liderança conservadora da Alemanha, que ainda está formando a nova coalizão de governo, quer suspender o limite de endividamento do país especificamente para gastos de defesa. Com a saída de cena dos Estados Unidos na proteção da União Europeia e da Ucrânia, as lideranças políticas europeias esqueceram o discurso de austeridade. A nova moda é o “keynesianismo de guerra”: uma perversão das propostas do economista John Maynard Keynes que utiliza a indústria de defesa como propulsora da demanda agregada na economia. Com vistas em algum objetivo bélico ou geopolítico, o Estado volta a gastar e movimentar a economia.
Esse contexto nos lembra que a austeridade fiscal é uma escolha política: não é a “falta de dinheiro” que limita os gastos, é a construção de acordos políticos sobre a alocação de recursos na sociedade. Nas palavras do próprio Keynes, “Podemos pagar por qualquer coisa que podemos executar”. A frase de Keynes não é um “liberou geral”, uma afirmação de que o Estado pode gastar o quanto quiser. Keynes era um liberal que, em situações normais, defendia um orçamento “corrente” equilibrado.

O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, em abril de 2022. Bloco tem dado sinais de que abandonará política de austeridade após Trump virar as costas para a Europa.
(Foto: President.gov.ua)
A frase de Keynes nos diz que, enquanto sociedade, podemos optar por qualquer política pública para a qual temos, coletivamente, os recursos necessários. Por “recursos” quero dizer as máquinas, tecnologias, conhecimentos e mão-de-obra necessárias. O grande desafio de uma sociedade diante de uma opção de política pública é transferir, voluntariamente ou por força, os recursos necessários para aqueles que a executarão.
Além da disponibilidade interna de fatores de produção (capital e trabalho) e tecnologias, há também a restrição externa: se não temos o capital, trabalho ou a tecnologia necessária para produzir o que é desejado, precisamos importar e, para isso, precisamos obter divisas estrangeiras. Se não temos divisas disponíveis, é necessário reduzir a importação de bens e serviços, aumentar a exportação ou aumentar a entrada de capitais no país.
Se a política pública desejada é compatível com as restrições físicas internas e a restrição externa, o único impedimento é a falta de acordo político para sua implementação. Aqui, é importante lembrar que não é apenas uma questão de “canetar” a política pública, como alguns economistas do nosso campo sugerem.
O acordo político necessário para a implementação de uma política pública vai muito além do poder da caneta do presidente ou mesmo da construção de uma coalizão no Congresso. Cada grupo com poder político e econômico tem algum grau de poder impor custos à escolha política, mesmo que não tenha condições de mudá-la. Os insatisfeitos podem criar resistências políticas, econômicas ou mesmo apelar para a sabotagem e, no limite, para a deslegitimação do Estado, como foi feito na Lava-Jato e no golpe de 2016.
No entanto, a maior barreira pode acabar sendo ideológica: quando as lideranças do nosso campo político assumem o discurso de que simplesmente não há dinheiro para certas políticas públicas, a busca por um acordo político que as materialize fica inviabilizada de início. Se há restrições físicas (como o pleno emprego de mão-de-obra) ou políticas (como a resistência forte de alguma fração do capital), é importante que isto seja dito claramente.
(*) Pedro Faria é economista pela Universidade Federal de Minas Gerais e doutor em História pela Universidade de Cambridge























