‘Glauber fica!’: ataque a Braga não é raio em céu azul
A previsível escalada da direita reacionária se cimenta nos espaços deixados por uma esquerda outrora combativa, o que inclui a tentativa de cassação a Braga
”Glauber, fica!” “Fora Lira!”: há muito a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio de Janeiro, não via tanta gente. No auditório, mas também nas calçadas em frente ao prédio, uma multidão acorreu para o ato de solidariedade ao deputado federal Glauber Braga, ameaçado de cassação pelos tosco-fascistas do covil parlamentar.
E vale atentar: era ponto facultativo municipal, por conta do Rock in Rio e do Fla x Peñarol no Maracanã. Mas a militância veio. Não faltou à prova de que a esquerda combativa está atenta na defesa do mandato desse parlamentar perseguido pela veemência da defesa das causas do povo trabalhador, e da soberania nacional.
Mais ainda, a militância veio para um ato político onde “Socialismo“ e “Revolução”, que andavam tão escondidos em atos recentes, defensivos, voltaram a ser mote dos principais discursos dos deputados e representantes do conjunto de legendas do campo de esquerda que se manifestaram.
É fundamental compreender que o processo de cassação promovido pela direita protofascista do Congresso contra o mandato do deputado Glauber Braga não é raio em céu azul. Essa previsível escalada da direita mais reacionária do País, que hoje traz, mobilizada e organizada, a outrora fragmentada “maioria silenciosa”, vem sendo cimentada nos espaços deixados por uma esquerda outrora combativa, que enfrentou com várias ocupações de Brasília a privataria tucana dos anos 90, mas que se desmobilizou depois que chegou ao Planalto. Permitindo que a aquela “maioria silenciosa” antes limitada aos momentos eleitorais viesse à luz. Ocupasse as ruas. E até se visse conduzida pelo “contra tudo isso que está aí”, marcante das lutas anticapitalistas da esquerda, para se concentrar no desmantelamento de uma pauta puramente comportamental, religiosa e anticomunista.
Até aquele “então”, era a esquerda que se movia organicamente, com perspectivas táticas, combinadas com objetivos estratégicos, tanto no âmbito da luta política, através das organizações partidárias classistas, quanto no da luta econômica do campo sindical.

O deputado Glauber Braga discursa durante ato contra a sua cassação na Associação Brasileira de Imprensa (ABI) no Rio de Janeiro.
(Foto: Milton Temer / Opera Mundi)
Hoje, essa esquerda está estruturalmente enfraquecida ideologicamente, fragmentada por causa de uma Revolução Digital hegemonizada pelo capital privado, simultânea a um globalização financeira, desindustiralizante, onde robôs e algoritmos substituem os humanos nas esteiras de produção. Onde havia um proletariado existencialmente solidário, no chão da fábrica, a esquerda passou a ter que operar com uma classe trabalhadora espraiada entre uberizados (que, não raro, consideram-se “patrões de si mesmos”), terceirizados, informais, para além dos desalentados no desemprego irreversível. Quem é o sujeito histórico revolucionário nesse novo quadro?
Na compensação pelas dificuldades desse tipo novo de relações sociais, ainda pouco teorizadas, socialistas se transformam em social-liberais, incorporando contra-valores individualistas na vaga identitária que o regime capitalista estimulou e incorporou a partir da decomposição da URSS. Suas campanhas de “empreendedorismo”, “inclusão” e até “lugar de fala”. É acintosa a forma como, depois de muitas décadas de machismo e branqueamento de personagens, telejornais e novelas embarcam de forma oportunista no reconhecimento de excelentes repórteres negras e de apresentadores reconhecidamente homossexuais. Esses talentos não são de agora, mas só agora são praticados como forma de barrar debates entre posições classistas, que antes se realizavam nesses mesmos cenários jornalísticos, e impor o “pensamento único” neoliberal como normalidade a ser defendida.
O “sistema” nadou de braçada com esse “transformismo” no campo da esquerda. Afinal, na questão fundamental do regime capitalista, é a Economia Política que determina rumos. Que impõe linhas de governo. Debates sobre gênero, raça e orientação sexual atravessam os segmentos tradicionais da luta de classe. Não foram poucos os pretos que se alinharam com Bolsonaro. Hoje se sabe que uma das batalhadoras simbólicas do feminismo ianque era uma adestrada agente da CIA, cuja principal tarefa era impedir que valores humanistas igualitários, implantados pela Revolução Cubana, influenciassem movimentos feministas latino-americanos. Homossexuais não viram obstáculo em se transformarem em sionistas por conta daquilo que Berenice Bento classificou como “pink washing`’. Ou seja, as liberdades que Israel abriu de forma oficial para os movimentos gay, dentro e fora de suas fronteiras.
Nadando contra a corrente, Glauber Braga, socialista confesso, militante sempre ativo, vem pontificando na luta contra a manutenção de privilégios ao grande capital dentro dos espaços institucionais; “na Ordem, contra a Ordem”, para recuperar o conceito leninista da luta institucional. De algum tempo para cá, por isso, vem sendo transformado em alvo a ser abatido pela direita reacionária, privatista e anti-social, principalmente por suas bancadas “da Bala”e “da Bíblia”.
Fato é, no entanto, que não só a direita reacionária, orgânica, vê Glauber como adversário pela ascendência incontestável de influência política, na esteira de sua práxis sempre em dia com sua retórica parlamentar. Na “esquerda” assolada por um pragmatismo eleitoreiro e conciliador também há hostilidade. E na “esquerda” melhorista, que tem medo da polaridade inevitável em uma sociedade desigual, onde não há como conciliar os que vivem de sua força de trabalho com os que se locupletam de um rentismo parasitário. O que torna possível afirmar que a luta de classes começa hoje dentro dos próprios partidos da dita esquerda midiaticamente reconhecida – PT e Psol.
Em ambas legendas, o social liberalismo se introduziu de forma acintosa em parte expressiva das direções, das bancadas e das próprias bases, dentro da lógica da “governabilidade possível”, numa clara opção pelo abandono da luta anticapitalista.
E isso não pode ser eludido quando se tenta compreender como um energúmeno deputado corporativista medíocre de vários mandatos, assim como seus herdeiros, conseguiu alcançar o espaço social que nunca havia cogitado aspirar em seus inícios de carreira. Calçado pelo “Deus, Pátria e Família”, norteador das mais reacionárias ditaduras, fez-se presidente da República. Porque não há espaço vazio em política.
Quando a esquerda abre mão de afirmar identidade classista, a massa, vulnerável pela lavagem cerebral dos meios de comunicação controlados pelo grande capital, vai para onde se aponta uma ruptura. Vai com uma extrema-direita que sequestra o “contra tudo isso que está aí” anteriormente consignado à esquerda combativa, e o transforma em bandeira limitada aos itens comportamentais, forrados por um falacioso manto pentecostal.
Contra isso, Glauber dirigiu seus mandatos, dentro e fora do Parlamento. Na luta institucional e na mobilização social. E por isso virou alvo. O que ocorre agora é, com mais gravidade, o que já se tentou em várias outras oportunidades. Arthur Lira, no mandato passado, já o tentou, quando Glauber o inquiriu pelo microfone do Plenário, perguntando se não tinha vergonha de propor privatização do que resta público no patrimônio da Petrobras, como o mequetrefe havia dito em entrevista a uma rádio.
A resposta veio das urnas e calou Lira. Glauber dobrou a votação obtida na eleição anterior, na campanha que se desenrolou simultaneamente ao pedido de cassação de mandato que Lira havia encaminhado à Comissão de Ética.
Isso vai se repetir agora, é o que esperamos. Não por uma nova eleição, que só virá em 2026. Mas pela mobilização social; pelos atos de solidariedade que já se anunciam em várias capitais, inclusive em Maceió.
“#Glauber Fica!” e “Fora Lira!”, gritados pela massa que lotou auditório e calçada da ABI, vão se estender, na luta que segue em solidariedade a Glauber Braga.
(*) Milton Temer é oficial da Marinha cassado pelo golpe de 1964, jornalista de profissão, ex-deputado federal pelo PT e fundador do PSOL.























