Geopolítica sobre trilhos e portos marítimos
Construção do Trem Bioceânico entre Brasil e Chile poderia, guardadas as proporções, ser considerada sinal distintivo do “século chinês” na América Latina
Os Estados Unidos e a China transformaram a América Latina em um território de disputa geopolítica onde “vale tudo”. Não importa se isso coloca em risco sua condição de “zona de paz”. O que importa para o primeiro é manter seu “quintal dos fundos” e, para o segundo, inaugurar um “quintal da frente”.
A disputa geopolítica entre os EUA e a China na América Latina assume proporções sem precedentes. Nela abundam ameaças de sanções e atos intervencionistas de Trump contra os países que negociam com a China. Apesar disso, o investimento chinês cresce incessantemente e, entre 2005 e 2024, somou mais de US$ 250 bilhões em setores-chave como infraestrutura, telecomunicações, energia elétrica e mineração. Tudo isso no âmbito da Iniciativa do Cinturão e Rota (ICR).

20.11.2024 – Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante a 14.07.2024 – Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante reunião com o Presidente da República Popular da China, Xi Jinping, no Palácio da Alvorada. Brasília – DF.
(Foto: Ricardo Stuckert/PR)
Com essa onda de investimentos, multiplicam-se portos, redes de transporte e comunicações, acesso a recursos estratégicos, entre outros, em todos os países da região em que os respectivos governos veem na China um parceiro comercial confiável e respeitoso da soberania dos Estados — em claro contraste com os investimentos americanos, que carregam em si a lógica da submissão e do alinhamento coercitivo.
Os EUA e seu “quintal”
Os EUA observam com beligerante preocupação o impacto geopolítico dos investimentos chineses na região. Não é de se estranhar. Consideram uma invasão inaceitável ao “seu quintal”, que, sob a Doutrina Monroe (1823), permaneceu em condição de tutela por todos os governos americanos. Qualquer presença estrangeira nele seria vista como ameaça à sua “segurança nacional”.
Para os porta-vozes americanos, “a armadilha da dívida” já está em curso, referindo-se ao investimento maciço da China em infraestrutura estratégica. Ou seja, atribuem ao financiamento chinês as mesmas características do financiamento administrado pelo FMI e pelo Banco Mundial a mando dos EUA. No entanto, os fatos mostram outra coisa: sem deixar de lucrar, como qualquer investidor, a China permite que os destinatários do financiamento também ganhem, além de respeitar a soberania dos Estados. Os investimentos, em geral, são de longo prazo, com prazos adicionais de reembolso e juros concessionais quase nulos.
O receio americano é compreensível: 22 dos 33 países da América Latina e do Caribe assinaram Memorandos de Entendimento ou aderiram à ICR, o que lhes permitiu financiar mais de 200 projetos de infraestrutura no valor de mais de US$ 250 bilhões. Em outras palavras, a China não está apenas investindo, mas chegando a lugares onde o FMI e o Banco Mundial jamais chegaram com seus financiamentos draconianos.
O Trem Bioceânico (TB) e o Megaporto de Chancay (MPCh), patrocinados pelos governos do Brasil e do Peru e já abordados em artigos anteriores, representam obras de grande envergadura que têm o potencial de transformar profundamente a estrutura e os esquemas do comércio internacional entre continentes. Além disso, favorecem a relação bilateral entre os dois países e, ao mesmo tempo, assumem papel de destaque na geopolítica mundial ao se tornarem pontos estratégicos na redefinição das rotas regionais e globais do comércio.
Os EUA sabem que o TB e o MPCh não são fatos isolados, mas resultados de uma estratégia de longo prazo destinada a se tornar um fator de influência fundamental na região. Vale lembrar algumas obras: em 2013, a China inaugurou a hidrelétrica Coca-Codo Sinclair no Equador; em 2016, a linha de transmissão de ultra-alta tensão que leva energia de Belo Monte a São Paulo; em 2018, a estação espacial de Neuquén, na Argentina; entre outras. Cada projeto é cuidadosamente planejado para desbloquear gargalos em energia, telecomunicações, transporte ou ciência — todos voltados a fomentar mercados sem drenar as receitas locais.
A reação dos EUA se resume a ameaças de intervenção ou sanções, incluindo a proibição de que o BID e outros bancos sob sua influência invistam em projetos que recebam financiamento chinês. Chegou-se ao temerário extremo de insinuar que o MPCh teria objetivos militares.
A China e seu “quintal da frente”
Quando Xi Jinping inaugurou o MPCh (14/11/2024), poucos perceberam as dimensões econômicas e políticas dessa obra monumental. Não foi um mero ato protocolar, mas a entrada em operação de um porto destinado a se tornar a pedra angular de um processo de mudanças estruturais que desencadearia investimentos em infraestrutura em escala nunca vista no Brasil e no Peru, incluindo a construção do TB. Não era um porto qualquer, mas aquele que uniria os portos do Brasil no Atlântico ao MPCh no Pacífico.
Com o TB, a história do comércio regional e mundial inaugura um novo capítulo, enquanto os mapas logísticos se redesenham em escala global. O que está em jogo não tem a ver apenas com comércio internacional e suas rotas, mas com um jogo geopolítico de alcance planetário que, junto a outros acontecimentos — incluindo guerras —, coloca em xeque a hegemonia dos Estados Unidos.
Tudo indica que se encerra uma etapa em que o comércio sul-americano esteve sujeito a condicionamentos geopolíticos convenientemente disfarçados sob o mundo dos negócios e dos investimentos, violando soberanias e dignidades nacionais. Agora, com o investimento chinês baseado nos princípios de “ganha-ganha” e “benefício compartilhado”, a lógica de submissão e exploração que permeava o financiamento ocidental estaria chegando ao fim.
Nesse contexto, surge a pergunta: poderia o TB se tornar o “Panamá terrestre” do século XXI? Se a questão se refere apenas a custos, tempos ou volumes de carga, não deveria gerar preocupações. Além disso, tudo indica que grande parte da carga que hoje passa pelo Canal do Panamá deixará de fazê-lo, devido a cálculos básicos de custos operacionais. A soja brasileira e argentina, o cobre e o lítio do Peru e da Bolívia, a carne argentina e uruguaia, entre outros produtos, não precisarão mais do Canal do Panamá nem dos estreitos de Gibraltar e Magalhães para chegar ao mercado asiático: passarão pelo TB e pelo MPCh.
Em 1914, os EUA inauguraram o Canal do Panamá, marco do chamado “século americano”. Hoje, a construção do TB poderia, guardadas as proporções, ser considerada o sinal distintivo do “século chinês” na América Latina. Não parece exagero afirmá-lo, pois será a obra que integrará fisicamente dois oceanos por ferrovia, com ramificações multimodais, sem passar por mecanismos de controle de terceiros até chegar ao MPCh.
O objetivo geopolítico do TB e do MPCh é inegável tanto no plano regional quanto mundial. Nesse processo, ocorrerá a integração do Brasil e do Peru — países que historicamente se ignoraram, embora tenham avançado em cooperação na fronteira. Essa integração certamente ganhará força quando a ferrovia entrar em operação. Ambos os países, ao aceitarem financiamento externo para um projeto que atravessa seus territórios, manifestaram a vontade de superar desconfianças históricas que impediram um processo de integração longamente reivindicado por seus povos.
(*) Nilo Meza é economista e cientista político peruano.























