Sábado, 6 de dezembro de 2025
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A proposta de Trump para Gaza que, quando escrevo, o Hamas não rejeitou liminarmente, escancara uma atualização dos procedimentos do colonialismo norte-atlântico, com a crueza e as digitais completas da nova etapa de adequação do neoliberalismo em crise às mutações na ordem internacional.

Um cessar fogo sem nenhum tipo de compensação para a quase dizimada população palestina e o desarme forçado dos poucos resistentes do Hamas não oferece nenhuma garantia de equivalência pelo exército terrorista de Israel.

O presidente dos EUA, Donald Trump, junto do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, antes de coletiva de imprensa anunciando plano de cessar-fogo para Gaza. <br> (Foto: White House / Daniek Torok)

O presidente dos EUA, Donald Trump, junto do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, antes de coletiva de imprensa anunciando plano de cessar-fogo para Gaza.
(Foto: White House / Daniek Torok)

Se o adjetivo terrorista aplicado ao exército israelense puder parecer exagerado, basta acompanhar a descrição do tratamento oferecido aos participantes da flotilha internacional Sumud (perseverança ou resistência em árabe) e, com um toque macabro de especial ferocidade, o festival de humilhação a que foi submetida a jovem Greta Thunberg. 

E não importa o juízo que se possa ter dela ou de suas razões. Exibi-la seminua e obrigada a beijar a bandeira israelense é a demonstração de que Netanyahu e seu ministro da Defesa (sic) estão longe de ser os únicos criminosos de guerra. 

Se a criação do Estado de Israel há pouco menos de 80 anos significou a insistência do fenecente império britânico na arrogância do colonialismo pós Segunda Guerra Mundial, e a universalização do poder das mídias digitais foi caracterizado como um colonialismo 4.0, o protetorado proposto por Trump – e até onde se pode avaliar, aceito com recalcitrância pelos genocidas israelenses – significa a inauguração de um colonialismo 5.0, baseado não apenas no convencimento via guerras culturais mas no exercício da pura força bruta ou, mais precisamente no argumento final, de claro prazer trumpiano: Accept or Die!

Difícil escolher entre a dimensão trágica da autoimposição de Trump como o imperador da Palestina ou a indicação do abjeto Tony Blair como seu lugar-tenente. Mais do que ironia, cabe falar em sarcasmo da história. Um inglês para comandar a nova Nakba, agora com objetivos de “reconstrução” imobiliária.

Sim, a proposta de Trump é abjeta. E como tal foi compreendida e denunciada por analistas de esquerda, pelas declarações de líderes como Gustavo Petro ou daqueles que mantinham aquecidos nos seus corações a ideia de que a justiça afinal triunfaria. 

No entanto foi apresentada com o apoio declarado de todo o entorno árabe, dos países europeus e, para espanto de muitos, da própria diplomacia brasileira, oferecendo a oportunidade para mais uma rodada do velho esporte de cobrar de Lula a coerência, não com suas convicções ou estratégias, mas com os desejos de cada analista ou comentador.

É, ao fim e ao cabo, compreensível que, diante dos horrores que o processo histórico de corrosão de um império, que poucos anos atrás se auto concebia como o resultado final da história, gere, nos seus críticos morais, o renascimento das velhas esperanças de uma vitória final da justiça, sempre presente nessas frases rituais da esquerda idealista, como “o lado certo” o “julgamento da história” ou assemelhados.

Mas não é prudente colocar o wishful thinking acima do velho e bom método da análise concreta de fatos concretos.  

Ou alguém acreditou que os navios de guerra enviados pelos governos da Itália e da Espanha iriam enfrentar militarmente as forças israelenses?  Não era mais razoável supor que o governo neofascista da Itália apenas respondia à greve iniciada pelos trabalhadores portuários e que incendiou o país? Ou que o neossocialista Pedro Sanches precisava desviar a atenção das denúncias de que suas declarações formais de apoio ao povo palestino contrastavam com a permissão à utilização de seus aeroportos para envio de armas a Israel, feitas recorrentemente pelos deputados do Podemos ou da Esquerda Republicana?

E o que fazer com a indignação moral pelo apoio da diplomacia brasileira a tão ignóbil proposta quando ela é, ao menos inicialmente, aceita… pelo Hamas?

Serão suas lideranças, também, a expressão de uma debilidade estrutural que consiste em radicalizar verbalmente e, ao final, conciliar? Os será que essas lideranças sabem que a intensa mobilização internacional não está sendo suficiente para mobilizar ações concretas dos governos ocidentais, cada vez mais fascinados pela fantasia de uma guerra contra a Rússia? 

Pior, que eles já perceberam que Gaza não será um novo Vietnã e que o ideal de um Estado Palestino, com toda a sua justeza, não poderá concretizar-se se o extermínio do povo palestino for levado a cabo?

Alguém teria dito que o primeiro dever de um revolucionário é permanecer vivo. Talvez pudéssemos agregar que o segundo é superar o mito de que a história tem lado certo e, no final, o bem vence o mal.  Para colocar nos termos de TJClark, cada vez mais precisamos de uma esquerda capaz de olhar o mundo.

(*) Carlos Ferreira Martins é Professor Titular Sênior do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos