Sábado, 6 de dezembro de 2025
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A decisão de Flávio Dino, anunciada ontem, de, na prática, impedir a adoção imediata dos efeitos da Lei Magnitsky contra Alexandre de Moraes pode parecer uma resposta direta à prepotência de Donald Trump e dos Estados Unidos para com o Brasil. Ela tem, de fato, esse sentido, mas esconde um conflito mais profundo, relacionado à soberania, que está apenas começando.

Comecemos pelo anedótico — porque, em certos momentos, a anedota é bastante reveladora das movimentações de fundo. Em 9 de março de 2023, ou seja, há dois anos, quando o presidente dos EUA ainda era Joe Biden, Flávio Dino foi ao Congresso depor na Comissão de Segurança Pública do Senado, ainda como ministro da Justiça.

Na ocasião, soltou uma frase que virou meme. Provocado pelo senador Marcos do Val (Podemos-ES) — hoje investigado por tentativa de golpe de Estado, com salário congelado e tornozeleira eletrônica —, Flávio Dino brincou com a autodeclarada biografia do parlamentar: “Se o senhor é da SWAT, eu sou dos Vingadores”. Do Val entrou para a vida pública apresentando-se como instrutor da SWAT, unidade de elite da polícia de Dallas (Texas, EUA). Desde então, Dino passou a ser representado nas redes sociais como um super-herói — tanto como o Homem-Aranha quanto como o Incrível Hulk.

A segunda expressão desse conflito está na própria decisão que, indiretamente, blinda Alexandre de Moraes das sanções unilaterais dos Estados Unidos. Flávio Dino determinou que decisões judiciais, leis, decretos ou atos executivos estrangeiros não têm validade automática no Brasil, a menos que sejam formalmente incorporados por meio de homologação pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou via instrumentos de cooperação internacional.

A medida surgiu como resposta à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1178, proposta pelo Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram). Essa ação foi motivada por prefeituras de Minas Gerais e do Espírito Santo que buscavam indenizações na Justiça do Reino Unido pelos desastres ambientais causados pelos rompimentos das barragens de Mariana (2015) e Brumadinho (2019).

Segundo Dino, permitir a aplicação automática de decisões estrangeiras violaria a soberania do Brasil e o pacto federativo. Ele ressaltou que a Constituição brasileira não autoriza tribunais estrangeiros a julgarem diretamente entidades nacionais. Dino também determinou que o Banco Central, a Febraban, a Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF) e a Confederação Nacional das Empresas de Seguros (CNSeg) sejam notificadas para impedir que instituições financeiras cumpram decisões estrangeiras (como bloqueios ou transferências) sem chancela do Judiciário brasileiro.

Ministro do STF e resposta da embaixada dos EUA concordam em um ponto: adotar a Lei Magnitsky significa criar uma instância superior à Justiça brasileira
Lula Marques / Agência Brasil

Reposta da embaixada dos EUA a Flávio Dino

É exatamente aqui que o conflito com os Estados Unidos se materializa, tendo Alexandre de Moraes como figura central. A embaixada de Trump sentiu o golpe e publicou, em suas redes sociais, que “nenhum tribunal estrangeiro pode anular as sanções impostas pelos EUA ou proteger alguém das severas consequências de descumpri-las”. Além disso, aumentou a pressão sobre empresas — como bandeiras de cartão de crédito e bancos brasileiros — que não dificultarem a vida do ministro do Supremo: “Alexandre de Moraes é tóxico para todas as empresas legítimas e indivíduos que buscam acesso aos Estados Unidos e seus mercados. Cidadãos americanos estão proibidos de manter qualquer relação comercial com ele. Já cidadãos de outros países devem agir com cautela: quem oferecer apoio material a violadores de direitos humanos também pode ser alvo de sanções.”

O conflito se resume assim: enquanto Flávio Dino demonstra, de forma didática, que punir Moraes significaria transformar os tribunais — e, ao fim e ao cabo, o governo norte-americano — na instância máxima de Justiça no Brasil, os EUA afirmam justamente o mesmo: que seus tribunais têm jurisdição universal, podendo decidir sobre qualquer assunto, em qualquer lugar do planeta.

Flávio Dino e Estados Unidos: pontos em comum

Temos, portanto, um diagnóstico claro do que está em jogo. E essa deve ser a compreensão compartilhada por todas as forças políticas que ainda acreditam em alguma forma de soberania nacional. Não há espaço para subterfúgios: a mensagem é explícita — e a resposta, também.

A genialidade de Dino foi identificar, entre os processos do STF, um caso suficientemente grande e relevante para demonstrar que o bloqueio do cartão de crédito de Moraes é apenas um grão de areia diante das disputas que permeiam a economia brasileira (e, como vemos nas notícias internacionais, também de muitos outros países, inclusive da China). Mais que isso: trata-se de uma decisão que afeta a grande burguesia — inclusive internacional — atuante no Brasil, especialmente no setor de mineração, com suas consequências bancárias e securitárias. Há dinheiro demais em jogo para que esses setores não reajam de maneira minimamente soberana.

(É possível que a decisão atrase ou até mesmo inviabilize medidas de reparação para os atingidos pelos desastres ambientais. Dada a magnitude dos processos, espera-se que o STJ se manifeste rapidamente. Mas este não é o ponto central deste artigo.)

Quando Flávio Dino enfrentou Marcos do Val no Senado, sua frase comportava uma piada. Mas era uma piada política, no melhor sentido do termo: Do Val representa uma linha parlamentar marcada pela truculência, que a imagem da SWAT ocupa no imaginário desde os anos 1970 — graças aos “enlatados” exibidos pelas TVs brasileiras (os antigos seriados importados, antes do streaming).

Ao invocar os Vingadores, Dino também recorreu ao imaginário ocidental e norte-americano dos super-heróis — só que num campo em que não basta a força, como no caso da SWAT: é preciso algum senso de justiça.

Esse é o grande paradoxo do momento: o que está em disputa é a preservação de uma soberania limitada, mas minimamente justa, nas relações com os Estados Unidos. Trata-se de uma guerra que ultrapassa tarifas comerciais — e não há um PIX a ceder nesta história.