EUA: o retorno do Rambo em O Império Contra-ataca
Em termos de novidades estratégicas, o discurso do ministro da Guerra dos EUA não traz nada, a não ser o fato de que, junto aos equipamentos, a prioridade dos EUA agora sejam “cortar o cabelo, fazer a barba e aderir aos padrões”
Inicialmente, peço desculpas ao Darth Vader pois ele, boy magia master das telonas, não merece ser mencionado junto à horrorosa série de filmes Rambo, estrelada por um Sylvester Stallone que, numas regatas horríveis, assassinava pessoas no Vietnã. Mas é inevitável esse gosto de remake de série ruim dos anos 1980 ao assistirmos o discurso do Secretário da Guerra dos EUA, Pete Hegseth[1], a centenas de oficiais generais estadunidenses reunidos em uma base dos fuzileiros em Virgínia. Assim como a Guerra do Golfo resgatou a experiência do Vietnã, o período atual deve ser pensado a partir das lições do Iraque e Afeganistão.
Ao que constam inéditas, as iniciativas dão prosseguimento às reformas levadas a cabo pela administração Trump no coração do deep state, o Pentágono. Além de rebatizar o Departamento de Defesa como Departamento de Guerra, funcionários de alto nível acusados de pouco alinhamento ideológico vêm sendo removidos – como o comandante da Aeronáutica, um homem negro, e o comandante da Marinha, uma mulher –, e o efetivo de generais reduzido em um quarto. Nas palavras do secretário, “é quase impossível mudar uma cultura com as mesmas pessoas que ajudaram a criar ou até se beneficiaram dessa cultura”. O mesmo processo ocorreu no Brasil, quando mais de uma centena de militares progressistas foram os primeiros atingidos pela ditadura militar, presos e reformados, em 8 de abril de 1964.

O secretário da Guerra dos EUA, Pete Hegseth.
(Foto: DoW / Alexander Kubitza)
Se as iniciativas prosseguirão, não há certeza; mas a julgar pelo discurso do secretário, o fracasso em termos de estratégia bélica seguirá estrondoso, embora acompanhado de vitórias econômicas do complexo tecnológico-industrial-militar dos EUA. A tônica geral da fala foi a de valorização da essência do guerreiro em detrimento do defensor. Na realidade, o corpo musculoso do guerreiro busca disfarçar o coração de banqueiro.
Primeiro um comentário quanto à forma: assustadora a falta de respeito e arrogância com que o secretário tratou seus generais. Críticas sobre falta de liderança, comentários jocosos sobre excesso de peso e uso de barbas (autorizadas principalmente por questões religiosas e a militares negros, portanto um caso de intolerância religiosa e racial), sobre a presença de mulheres e incluso palavrões – “acabamos com essa merda” – em um ambiente formal. Para amenizar as críticas, o secretário opõe os militares aos civis, em especial acadêmicos e membros da imprensa. “Não somos civis. Vocês não são civis. Vocês são separados para um propósito distinto”. Com um “bem-vindos ao Departamento de Guerra, pois a era do Departamento de Defesa acabou”, Hegseth sugeriu o retorno aos anos 90, como se a guerra tivesse permanecido estática ao longo dos últimos 40 anos. O lema “Make America Great Again” deixava claro o desejo de retorno a um passado idílico, agora datado: retomar as políticas do final da Guerra Fria. Esqueceu-se do óbvio: todos os altos oficiais ali sentados construíram suas carreiras ao longo desse tempo que ele caracterizou como woke, sendo testados inclusive no campo de batalha.
O conteúdo mantém aquela autoestima machulenta[2] de sempre: os EUA são lindos, maravilhosos, terra da liberdade, bombadões, um ou outro comentário religioso, etc. O secretário identifica o cenário internacional como um ambiente em que “nossos inimigos se reúnem, as ameaças aumentam”, mas prometeu para o futuro outro discurso sobre ameaças. Prometeu, também para o futuro, um discurso sobre mudanças operacionais. Neste se concentrou em dez aspectos da cultura militar, aqui resumidos e analisados à luz dos acontecimentos no Brasil.
Barack Obama, em algum momento, usou uma expressão que se adequa perfeitamente a esse momento: “para quem tem apenas um martelo, todo problema é um prego”. Aos desafios no cenário internacional, os EUA respondem como sempre, confundindo estratégia com o acúmulo de equipamentos de última geração para a vitória em guerras. “Precisamos de mais munições, mais drones, mais Patriots (sistemas de mísseis), mais submarinos, mais bombardeiros B-21, mais IA em tudo, mais efeitos cibernéticos, mais sistemas anti-UAS (Sistemas Aéreos Não Tripulados)…”
Entretanto, diferente do que parece, a questão não é a vitória, mas a reestruturação da base industrial de Defesa, especialmente a área de construção naval (em que a capacidade chinesa é absolutamente impressionante) através da repatriação de componentes críticos. O mesmo objetivo geral que Trump tem com a imposição de tarifas econômicas ao redor do mundo. O método também segue o mesmo: concentração dos ganhos e socialização das perdas com os amigos – “nossos aliados e parceiros devem se mobilizar e compartilhar o fardo”. Isso já vem ocorrendo, com a sinalização dos países que compõem a OTAN de gastar 5% do PIB com sistemas de armas. Se a base da economia dos EUA é o complexo industrial militar, mais guerras são necessárias para crescer economicamente.
Temos falado que Trump reedita a Doutrina Monroe, ou a repagina como FAFO (Fuck Around, Find Out), uma doutrina que é tudo, menos FOFA. Construir a paz através da força, ou em outra expressão também usada pelo secretário – “cuspa e tome um tapa” – é a proposta de reagir com extrema violência a qualquer movimentação do inimigo. O pensamento de defesa é considerado amplo demais. A guerra, por outro lado, é “a violência esmagadora e punitiva sobre o inimigo”. O direito internacional está definitivamente em baixa nos EUA, assim como regras de engajamento que tratam do uso gradual da força. “Nossos combatentes devem intimidar, desmoralizar, caçar e matar os inimigos do nosso país”. No entendimento do secretário, estaria faltando agressividade à liderança militar estadunidense. Por um pouquinho não emprega as palavras testosterona ou culhões. Temos visto isso todos os dias, com vídeos de soldados israelenses fazendo troça de brinquedos ou roupas íntimas de crianças e mulheres palestinas assassinadas.
Como mineira, eu diria que o secretário pode ter cuspido para o alto, e corre o risco de receber o próprio cuspe de volta bem no meio da testa. Qual será a temperatura entre o oficialato dos EUA?
Por um lado, foi acusado de queda de padrão por promover líderes por razões erradas. Considerando temas como raça, gênero e outros “lixos ideológicos tóxicos”, promoveram líderes “avessos ao risco”, incapazes de “abordar os problemas dos próprios comandos e formações”, “gordos, despreparados e mal treinados”. “Chega de homens com vestimentas femininas”, ou “se isso significa que nenhuma mulher se qualifica para alguns empregos de combate, que assim seja. Essa não é a intenção, mas pode ser o resultado.” Recordei de uma palestra dada por um coronel da Aeronáutica brasileiro sobre os desafios que nossas Forças Armadas enfrentam. Eu poderia apostar que centraria sua fala na carência de recursos financeiros, mas ele a concluiu com “nosso maior problema é a entrada de gays nas nossas fileiras”.
Sob outro aspecto, Hegseth liberta os militares de amarras institucionais que certamente os tolhiam (e incomodavam) operacionalmente. Impossível não se lembrar da primeira medida adotada por Michel Temer ao assumir a presidência, historicamente reivindicada pelas forças de segurança: crimes em operações de GLO seriam julgados pela Justiça Militar, o que, em outros termos, é uma autorização para o excludente de ilicitude. Pensando também nas limitações dentro da própria organização, recordemos que 21% das oficiais estadunidenses denunciaram algum tipo de importunação sexual por parte dos seus colegas de trabalho, e o próprio Secretário de Estado já recebeu acusações do tipo. Hedseth não falou sobre isso diretamente, mas tratou de “capacitar os líderes a impor padrões sem medo de retaliação ou de serem questionados por assédio moral”.
A questão da liderança é um problema real na maioria das Forças Armadas. Registros sem máculas existem para aqueles que não correm riscos. Na AMAN, escutei uma frase sobre isso: quando questionados sobre o porquê dos cadetes não se voluntariarem para atividades, me foi respondido: “o prego que mais aparece é sempre o mais martelado”. Uma perfeita elegia ao imobilismo. Ao problema real, o secretário de Guerra dos EUA propõe – “cortem o cabelo!” – mas também faz uma reformulação na Inspetoria – “chega de reclamações anônimas”. Além disso, mudará também os registros de pessoal, para que “líderes com infrações perdoáveis, honestas ou menores não sejam sobrecarregados por essas infrações perpetuamente”. O secretário não especificou quais seriam, mas deixou clara sua disposição para um indulto em prol de fidelidade.
Por isso, saliento também os aspectos práticos derivados do discurso, como a adoção de um conjunto de testes físicos de altura e peso a serem realizados por todos, inclusive generais em atividades administrativas. “Tudo começa com a aparência física”. Aqui, vale lembrar que se evoca não apenas um ideal de virilidade masculina, mas também que supremacistas raciais compartilham da mesma busca pelo corpo perfeito. No início do século passado, a principal disputa sobre a educação militar brasileira era em torno dos bacharéis e tarimbeiros ou, em outros termos, oficiais dedicados a uma carreira de estudos de influência positivista ou oficiais formados nos corpos de tropa através da prática profissional. Contemporaneamente, busca-se o equilíbrio entre os dois aspectos, algo sempre tenso. Mas não é essa a questão levantada pelo secretário. Aos tarimbeiros, ele opõe os burocratas, administradores da grande máquina de guerra estadunidense. Enquanto secretário da Guerra, se posiciona favorável aos primeiros, destilando ironias aos segundos. “O treinamento básico está sendo restaurado para o que deveria ser: assustador, duro e disciplinado.” Um subordinado incapaz de questionar é também incapaz de tomar decisões difíceis em um cenário de batalha. Se pensarmos que a guerra é dinheiro, e hoje cada vez mais pulverizada, eu diria que Hegseth corre o sério risco de, também nesse aspecto, levar o próprio cuspe de volta na testa.
Pete Hegseth ainda fez críticas à incorporação da temática ambiental nas Forças Armadas, à vacinação obrigatória, e ao uso de redes sociais por subordinados. Mas não se esqueceu de deixar claro às centenas ali sentados quem manda, e quem obedece dentro do Departamento de Guerra, ameaçando novas demissões nada sutilmente. “Vocês vencerão algumas discussões e perderão outras. Mas quando os líderes civis emitem ordens legítimas, nós executamos”. Mais uma vez para suavizar, ele se coloca lado a lado com eles, pois também passará por testes físicos, já que todos devem ter as habilidades combatentes básicas. Apela para questões emocionais clichês como aquelas dos filmes de Hollywood: “Não lutamos porque odiamos o que está à nossa frente. Lutamos porque amamos o que está atrás de nós”.
Guerras são vencidas adotando uma estratégia adequada ao ambiente em que ocorrem e às características dos países (ou coalizões) agressores e agredidos. Em termos de novidades estratégicas, o discurso de Hegseth não traz nada. Talvez a novidade seja que, junto aos equipamentos, a prioridade é “cortar o cabelo, fazer a barba e aderir aos padrões”.
Nenhuma insatisfação pública foi registrada e, caso o dinheiro siga fluindo cada vez em maior quantidade, enfrentar uma academia para “meter o shape” talvez não seja nada demais. Teremos Rambos de sapatênis comandando o contra-ataque do império. God Bless o restante do mundo.
(*) Ana Penido é professora do IRID, UFRJ. Pesquisadora do GEDES e do Instituto Tricontinental.























