Sábado, 6 de dezembro de 2025
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A História se repetiu na semana passada na pequena e montanhosa república da Quirguízia, na Ásia central. Protestos populares nas ruas derrubaram o governo do presidente Kurmanbek Bakiyev, do mesmo modo que seu antecessor, Askar Akayev, foi deposto na chamada Revolução das Tulipas, em março de 2005, depois de eleições parlamentares fraudadas.

O ponto em que a História pode não servir de referência é o futuro da controvertida base militar dos EUA no país, que desempenha um papel crítico na guerra afegã. Como muitas pequenas nações, o destino da Quirguízia tornou-se profundamente enredado na política de seus grandes vizinhos em um mundo interconectado. O último levante, que levou ao fim do governo de Bakiyev, resultou da repressão promovida pelo mesmo homem que chegou ao poder em uma eleição livre e justa com a promessa de limitar os poderes presidenciais e erradicar a corrupção. Um gabinete interino chefiado pela ex-ministra do Exterior Roza Otunbayeva obteve o reconhecimento de fato da Rússia e uma consideração de ajuda financeira de emergência para a empobrecida república – o que pode levar ao fechamento da base militar dos EUA próxima a Bishkek, que incomoda Moscou.

Diante do ainda impenitente Bakiyev entrincheirado em sua vila natal, Teyit, perto da cidade sulista de Jalalabad, o gabinete de Otunbayeva dificilmente vai questionar o status da base no futuro próximo. Arrendado por Akayev ao Pentágono no rastro do ataque americano contra o regime talibã no Afeganistão, em outubro de 2001, o local se tornou uma escala crucial para o reabastecimento de aeronaves e o transporte de militares e suprimentos.

Embora tenha dado luz verde às repúblicas centro-asiáticas para que cooperem com Washington no combate aos extremistas islâmicos no Afeganistão, o Kremlin ficou apreensivo com a presença de uma base militar dos EUA em uma ex-república soviética. Para acalmar Vladimir Putin, o então presidente da Rússia, da qual a Quirguízia era – e ainda é – economicamente dependente, Akayev permitiu que o Kremlin instalasse uma base em uma antiga academia militar soviética de pilotagem em Kant, 20 quilômetros a leste de Bishkek, em outubro de 2003.

Como outras duas ex-repúblicas da União Soviética, a Quirguízia foi empurrada para uma revolução colorida que derrubou o governo pró-russo: depois da Revolução Rosa na Geórgia, em novembro de 2003, e da Revolução Laranja na Ucrânia, em dezembro de 2004, encorajadas por agências ocidentais, a vez da Quirguízia chegou no final de 2005.

Na Quirguízia, a organização Freedom House, baseada em Washington, operava desde novembro de 2003 uma gráfica em Bishkek, financiada pelo Departamento de Estado dos EUA, a fim de oferecer uma alternativa para que os editores de jornais e revistas quirguizes imprimissem publicações sem apoio do governo. Ciente do impacto das agências não-governamentais nas eleições parlamentares de fevereiro de 2005, as autoridades cortaram a energia elétrica da gráfica. A embaixada dos EUA interveio, providenciando geradores portáteis para alimentar as máquinas. Entre os beneficiados estava o jornal de oposição Moya stolitsa novosti (Notícias de minha capital), que conseguiu imprimir 200.000 cópias de uma edição especial.

A oposição teve uma boa chance de derrotar o grupo de Akayev por causa da economia fraca e da corrupção desenfreada. A agricultura definhava e a população de gado bovino encolhera para uma fração do que era antes da independência. Em meados de 2001, a dívida externa do país, de dois bilhões de dólares, era um terço mais alta do que seu PIB anual.

O alto índice de desemprego levou muitos homens quirguizes – fluentes em russo e educados sob o sistema soviético – a trabalhar na Rússia. Em 2006, suas remessas de dinheiro respondiam por mais de um quarto do PIB. Depois de 74 anos de governo sob o sistema soviético, a influência russa na Quirguízia persiste em vários aspectos. Publicações e canais de TV em russo são mais populares do que os quirguizes. Em Bishkek, que abriga um quinto da população nacional, os moradores têm acesso a dezenas de canais de TV em russo.

A dependência do governo quirguiz em relação à Rússia foi além. Atingido pela escassez global de crédito em 2008, Bakiyev pediu ajuda ao Kremlin em fevereiro de 2009. A Rússia cancelou 180 milhões de dólares em dívidas, concedeu um empréstimo emergencial de 300 milhões de dólares e prometeu investir 1,7 bilhão de dólares em projetos hidrelétricos quirguizes (para administrar o empréstimo russo, Bakiyev colocou seu filho de 32 anos, Maxim, à frente da nova Agência Central para o Desenvolvimento do Investimento e da Inovação. Maxim é acusado de uso irregular dos fundos).

O preço da ajuda financeira do Kremlin era o fim do arrendamento da base aérea de Manas ao Pentágono. Argumentando que a missão dos EUA no Afeganistão se excedera aos objetivos originais e que os ataques da Otan provocavam um aumento inaceitável de vítimas civis, Bakiyev deu um aviso prévio de seis meses para que o Pentágono abandonasse a base. Isso ocorreu num momento em que a rota de suprimentos da Otan a partir do Paquistão, pela Passagem de Khyber, era alvo contínuo de emboscadas do ressurgido Talibã.

O lobby intenso do governo Obama levou Bakiyev a reverter a decisão em junho de 2009, depois de ter recebido a ajuda financeira de Moscou, e prolongar o arrendamento em um ano – mas sob condições estritas: o aluguel anual subiu de 17,5 milhões de dólares para 60 milhões de dólares. A Base Aérea de Manas foi rebatizada de “Centro de Trânsito do Aeroporto Internacional de Manas” e a responsabilidade pela segurança foi entregue ao governo quirguiz. No início de julho, o dócil Parlamento aprovou a decisão de Bakiyev, abrindo caminho para que lucrativos contratos de fornecimento de combustível de aviação e outros serviços ao Pentágono ficassem nas mãos de Maxim e outros parentes do então presidente.

Além disso, Bakiyev obteve da Casa Branca a promessa de não comentar a eleição presidencial de 23 de julho. O Departamento de Estado americano manteve silêncio enquanto observadores da Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OSCDE) criticavam as fraudes, a intimidação e a parcialidade da mídia, que deram a Bakiyev 80% dos votos.

Curiosamente, os dois canas de TV estatais em língua russa mais populares em Bishkek marcaram o quinto aniversário da Revolução das Tulipas, em 24 de março, sublinhando a má administração de Bakiyev.

O aniversário foi acompanhado pela crescente insatisfação popular com o drástico aumento das tarifas de energia elétrica imposto em janeiro pelas companhias energéticas recém-privatizadas – vendidas a Maxim Bakiyev e seus amigos a preço de banana. Uma coalizão costurada às pressas por grupos de oposição convocou um protesto nacional em 7 de abril. O movimento logo culminou na mudança de regime.

A queda de Bakiyev reabriu o debate sobre a base dos EUA. Um funcionário de alto escalão da Rússia revelou que Bakiyev descumpriu sua promessa sobre a retirada da base americana – a de que só poderia haver uma base na Quirguízia, a russa. No entanto, como a líder interina Otunbayeva mencionou um prazo mínimo de seis meses para mudanças na Constituição e a realização de eleições, quaquer decisão sobre o futuro da base aérea de Manas terá de esperar.

A última revolução ou mudança de regime incolor em Bishkek sublinha o profundo entrelaçamento dos governos, tanto os grandes quanto os pequenos. O Ocidente pode ter inspirado a Revolução das Tulipas, mas o sucesso da democracia quirguiz depende tanto da liderança doméstica quanto da economia e da política no campo externo. Os ataques do 11/9 e o consequente envolvimento dos EUA no vizinho Afeganistão apresentaram novos desafios à Quirguízia, nação pobre de recursos. Por sua vez, o desfecho da operação da Otan no Afeganistão, que chega agora a uma fase decisiva, depende em parte da reação da Quirguízia à necessidade americana da base de Manas diante da oposição da Rússia.

Pequenos países decidem a sorte de grandes potências, tentando aumentar ao máximo seu próprio ganho. O que acontecer na Quirguízia terá repercussões no Afeganistão, no sul da Ásia e na segurança do mundo ocidental.

*Dilip Hiro é autor de Inside Central Asia (Dentro da Ásia central), publicado pela Overlook Press, Nova York. Seu livro mais recente é After Empire: The Birth of a Multipolar World (Depois do império: o nascimento de um mundo multipolar), publicado pela Nation Books, Nova York

Distúrbios na Quirguízia põem em questão base dos EUA e guerra afegã

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