Segunda-feira, 22 de dezembro de 2025
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Pensando em moda, design e outras áreas que propagam tendências, até pouco tempo, a América Latina (na verdade, o Sul) ocupava uma posição de cruel inferioridade em relação ao Norte. Evocados esses temas, logo rodava em nossas mentes o velho filme da chegada das caravelas: o colonizador desce do barco com espelhos e quinquilharias, vestido como bom súbito de seu rei, e se aproxima do índio pouco vestido, usando um par de colares e talvez pintado, e lhe apresenta seus inventos para suavizar uma abrupta chegada. Nós compramos o que eles venderam, e eles levaram o que era nosso.
 


John Pierce critica Special Effects

Hoje, a cena é outra. Ainda não conta uma história de igual para igual, mas já deixa a sensação de que nos olham com mais curiosidade. Um vídeo viral que circulou à toa na internet há algum tempo serve de molde. Nele, um respeitado crítico de cinema, John Pierce, diz em inglês que é fascinado pela América Latina: “Amo o café, a salsa e as ditaduras militares”. Sobre John, recaiu a tarefa de analisar um filme latino, a que ele assistiu com grande interesse e curiosidade. Infelizmente, seu veredicto final não alcançou suas românticas expectativas: “É o pior filme que já vi na minha vida”.


No cenário do design mundial, depois de “desfilar” muitas coleções tidas por críticos de moda internacionais como “as piores de suas vidas”, a América Latina começa chamar a atenção. O movimento ainda é tímido, porém cresce, especialmente no atual processo de ascensão das economias emergentes e de evolução da crise mundial que mais afetou o hemisfério norte até hoje. Nada mais natural agora que “somos todos economias emergentes”, como afirmou o inglês John Thakara, considerado um dos maiores nomes do design.

Comentam o assunto alguns especialistas, como a brasileira Adelia Borges, jornalista e curadora na área de design. “O design da periferia começou a somar sua polifonia de vozes e experiências para enfrentar numerosos problemas da agenda global”, diz ela no artigo “Oportunidades num mundo multipolar”, publicado pela revista chilena ARQ. Para ela, os latino-americanos têm três vocações que, no atual cenário, podem ser caminhos a trilhar rumo a uma identidade latino-americana no design (e na moda): a sustentabilidade, dado o nosso histórico de reaproveitamento de materiais e ideias que buscam driblar a pobreza, a responsabilidade social, já que as difíceis condições de vida nunca nos permitiram esquivar o tema, e, finalmente, a necessidade de buscar nossos próprios caminhos, deixando de fazer reverência ao que vem de fora (e de cima).

Já a chilena Laura Novik, consultora especialista em tendências e moda, afirma que “nesses momentos de crise global, quando questionamos as lógicas do sistema financeiro, produtivo e social, é impossível pensar que a moda e o design – tal como foram concebidos no século XX – continuem sem ser questionados”. Também para a revista ARQ, ela assina o artigo “Latinoamericanismos, uma atitude política do design”.

Artesanato e lifestyle

De fato, já passou a hora dos latinos valorizarem suas próprias referências, que começam com a proximidade geográfica e com uma história comum, em lugar de buscá-las sempre fora.

O artesanato, ao contrário do que se pensava quando o esforço era o de esconder penas e miçangas, negando imagens folclóricas e carnavalescas, pode ser a saída – como foi nos países escandinavos e na Itália, onde o desenvolvimento industrial se deu como uma consequência da sabedoria e da prática artesanais. No Brasil, poucos estilistas assumem essa identidade, como o mineiro faz Ronaldo Fraga, cujo trabalho é fortemente ligado às referências culturais populares. 

E então chegará o momento em que os designers e lançadores de tendências em geral deixem de lado o produto e se concentrem nos modos de vida e em sistemas capazes de transformar seu entorno. Usando novamente o Brasil como exemplo, esse é o esforço da Osklen, grife que promove a ideia de um lifestyle carioca, propondo mais do que displicência e charme à beira-mar ao assumir compromissos com o local sem abdicar do global – e em sintonia com as hoje tão necessárias e valorizadas atitudes sustentáveis. Não é à toa que a marca tem virado referência de identidade “fashion” brasileira. 

Seja como for, ainda é preciso tomar o espelho da mão do colonizador e, pela primeira vez, investigar de fato a imagem que ele reflete. Só conhecendo-nos melhor é que seremos capazes de distinguir e estabelecer nossos próprios modos. E de criar a nossa tão desejada moda.

Só conhecendo-nos melhor é que seremos capazes de distinguir e estabelecer nossos próprios modos. E de criar a nossa tão desejada moda

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