Derrotar Angela Merkel. Será isso mesmo?
Desafio da esquerda na Europa é vencer uma cultura econômica de "iluminados" que se sentem rodeados por uma maré de insensatos
A consigna “derrotar Angela Merkel” tornou-se um lugar-comum, quase uma obsessão, para grande parte da esquerda européia, ou o que resta dela, embora com novo alento pelo desempenho de Mélénchon na França, a própria vitória de François Hollande, a perspectiva de ascensão do Syryza na Grécia, o desempenho ruim dos conservadores nas eleições regionais da Espanha, e a própria sucessão de derrotas que o partido e a coligação da chanceler vem sofrendo nas eleições em seu próprio país.
Cabe perguntar: o que significa isso?
Muitas coisas: como dizia amigo meu dos tempos de faculdade, “uma faca de muitos gumes”.
Por exemplo: o controverso autor Thylo Sarrazin, autor do best-seller “A Alemanha se anula” (Deutschland schafft sich ab), acaba de lançar um novo livro: “Europa braucht den Euro nicht”, (A Europa não precisa do euro). No primeiro, ele investe contra os imigrantes muçulmanos, em particular os turcos, dizendo que eles não querem se integrar e, por não valorizarem a educação e as oportunidades oferecidas, terminam por “emburrecer” a Alemanha. No segundo, diz que não só a Europa não precisa do Euro, como também a obsessão alemã por manter a moeda e a ajuda a outros países decorre do seu complexo de culpa coletivo pelo Holocausto.
Ele e Marine Le Pen também querem “derrotar” Angela Merkel e sua política do euro. Qualquer gesto de solidariedade internacional para ambos é insuportável
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Vamos ver o problema ainda por outro ângulo. Na Alemanha, se a chanceler vem colhendo derrota atrás de derrota nas eleições regionais (embora sua popularidade continue alta, com sua política do euro também), quem tem chance de “derrotá-la”? A Linke está passando por uma crise interna, vindo também de derrotas nas mesmas eleições regionais. O Partido Pirata, em ascensão, é uma vaga incógnita que ainda está por se definir. Resta mesmo o SPD e o Partido Verde. Pois bem, o que aconteceria se o SPD e os Verdes desbancassem a CDU/CSU e o FDP do governo?
Provavelmente não muita coisa de diferente em relação à política do euro, os “planos de austeridade”, e a resistência aos “eurobonds” pelos quais François Hollande está lutando (agora com apoios discretos de Mario Monti, o primeiro ministro italiano, José Manuel Barroso, o presidente da Comissão Européia, e até de Mariano Rajoy, o conservador primeiro ministro da Espanha). O SPD está claramente dividido quanto a Hollande: parte considerável da direção do partido acha as idéias de campanha de Hollande “ingênuas”, “naïve”, como se diz por aqui. Os Verdes também se dividem, e uma parte considerável de seus quadros cabe no nicho do “biocapitalismo” pró-Ocidente e OTAN.
Vamos olhar as coisas agora um pouco mais de longe. Quando do encontro do G-8 em Camp David, Barack Obama, François Hollande, Mario Monti, David Cameron, com ajuda do Japão e do Canadá, pressionaram a rígida Merkel para adotar uma política de crescimento na Europa e diminuir o arrocho recessivo da “austeridade”.
Pois bem, no dia 23 de maio, o New York Times chamou um debate on-line sobre o tema “Can Euro Bonds Save the Union”? (“Podem os eurobonds salvar a União [Européia]”?
Seis analistas financeiros, todos eles de empresas de consultoria que inclusive instruem a área pública no ramo, acorreram ao debate. Das 06 respostas, 05 disseram que não, e ficaram claramente ao lado da posição de Angela Merkel. Os argumentos giravam em torno dos eixos de que:
1) A possibilidade de obter crédito mais barato no mercado financeiro (que os eurobonds tornariam possível) só aumentaria “o comportamento irresponsável na periferia”;
2) A Alemanha que, com outros poucos países do “norte”, segue uma política adequada e responsável, sairia prejudicada, pois deixaria de ser competitiva no mercado financeiro.
Todos eles ecoavam um argumento de fundo, que vinha de Jörg Asmussen, representante alemão no “Board” executivo do Banco Central Europeu. Este, por sua vez, assumira linha já defendida por seu antecessor, Jürgen Stark. Segundo este argumento, opor-se aos eurobonds não se trata de questão de princípio, e sim de “timing”. Só poderia se pensar nisso depois que houvesse uma “união fiscal” na zona do euro, ou seja, que os “planos de austeridade” remodelem os estados e as sociedades a que são dirigidos, destruindo ou pelo menos corroendo as bases do Estado de Bem Estar Social e adequando os investimentos públicos às prioridades da banca financeira.
A mesma coisa disse Michael Hüther, do Instituto de Pesquisas Econômicas de Colônia: “Eurobonds agiriam como um desincentivo a que as economias menos competitivas se reformem”.
Este é um argumento desenvolvido e ampliado em artigo no Financial Times, do dia 7 de maio, 24 horas depois da vitória de Hollande na França (“Monetary police is no panacea for Europe”) por Jens Weidmann, presidente do Bundesbank, o Banco Central Alemão, que também faz parte do Board ampliado do BCE. Aliás, o Bundesbank é o principal acionista do capital de base do BCE., com 18% de participação.
Posicionando-se contra taxas de juros mais baixas (o que seria o caso com os eurobonds), Weidmann alerta para o fato de que, se os políticos temem tomar decisões impopulares, “tentando resolver problemas através de uma acomodação monetária”, “cabe aos que definem a política monetária resistir a tais pressões”.
Em outras palavras, um pouco mais “low key”, para ficar na terminologia desses meios, se há políticos que querem ceder às pressões dos ignaros, cabe aos iluminados entendidos resistir, como pingüins num rochedo, à subida dessa maré dos isensatos.
Esse é o caldo de cultura que está nos bastidores das posições da chanceler alemã. Esse é o tipo de pensamento que cabe sim, querer derrotar. Esse é o desafio que está diante de Hollande, Mélénchon, Tsipras, a Linke, talvez Piratas, parte dos Verdes e dos social-democratas: reverter esse quadro de fundo.
Claro: se eu pudesse votar na Alemanha, não votaria na chanceler (ainda que, ao contrário de muitos, a respeite como pessoa, pois ela acredita no que diz e faz) nem nos partidos de sua coligação.
Mas também é importante pensar mais longe. Li um artigo do Berliner Zeitung num desvão de aeroporto, que infelizmente perdi, que falava do clima opressivo nas escolas de adiministração e economia do país. Segundo o artigo, se o estudante não dança de acordo com a música herdada da chamada Escola Austríaca, de von Hayek, von Mises e outros, tem as asas de sua carreira cortadas – inclusive na área acadêmica.
Uma última observação: é claro que nenhuma dessas posições defendidas por tais “pundits”, como define Krugman (ou seja, pessoas que gostam de exibir conhecimento e se exibir com isso), progride sem uma coçada no próprio ego. Assim, a palma das definições cabe a essa auto-imagem de “heróica resistência” desenhada por Weidmann em seu artigo no Financial Times.
Aliás, um heroísmo muito bem pago em geral.
*Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.























