Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Cancelamento é dessas palavras que mudam de peso conforme atravessam o tempo. Ela nasceu como parte dos embates digitais, explosão passageira de desagrado, e acabou se tornando um modo de nomear o conflito nas relações políticas e afetivas. Tornou-se o idioma de uma época que hesita entre o confronto e o silenciamento. O termo se expandiu tanto que já não cabe no formato de um meme: infiltra-se nas assembleias, nas redes de trabalho, nas amizades, nos coletivos, nas brigas familiares. Mas, quanto mais se amplia, mais perde contorno. Por isso, antes de escolher um lado, talvez seja preciso perguntar: quando alguém é afastado, de que pertencimento estamos falando?

Falamos de cancelamento quando um conflito rompe a superfície do comum e exige resposta. Não é o meme, nem o unfollow; não é o humor interno de fandoms que retiram atenção de um artista e seguem o fluxo. Essa camada existiu – e, em parte, ainda existe – mas ela é outra coisa. O que importa aqui é o momento em que o termo passa a nomear a possibilidade de punir, afastar alguém da convivência; quando uma violência, um abuso de posição ou um dano se torna incontornável. Essa passagem – do gosto ao vínculo, do entretenimento ao espaço comum – é o que dá peso à palavra.

Hoje, “cancelamento” nomeia experiências que não se equivalem. Às vezes é crítica necessária. Às vezes é ressentimento. Às vezes é o registro de uma ferida. Às vezes, o desconforto de ter sido contrariado. Quando tudo recebe o mesmo nome, o acontecimento que originou o conflito perde forma. A ferida fica opaca. O contorno se desfaz.

Hoje, “cancelamento” nomeia experiências que não se equivalem. Às vezes é crítica necessária. Às vezes é ressentimento. Às vezes é o registro de uma ferida. Às vezes, o desconforto de ter sido contrariado. Quando tudo recebe o mesmo nome, o acontecimento que originou o conflito perde forma. A ferida fica opaca. O contorno se desfaz. <br> (Imagem: Mohamed Mahmoud Hassan / Public Domain Pictures)

Hoje, “cancelamento” nomeia experiências que não se equivalem. Às vezes é crítica necessária. Às vezes é ressentimento. Às vezes é o registro de uma ferida. Às vezes, o desconforto de ter sido contrariado. Quando tudo recebe o mesmo nome, o acontecimento que originou o conflito perde forma. A ferida fica opaca. O contorno se desfaz.
(Imagem: Mohamed Mahmoud Hassan / Public Domain Pictures)

Quando o dano perde contorno, o foco da conversa muda. Já não se trata do que aconteceu, mas de como se falou sobre o acontecido – o tom, a escolha das palavras, a intensidade do gesto. A violência permanece ali, intacta, mas é empurrada para o plano da forma, como se o problema estivesse no modo de dizer e não na ferida que o motivou. O que exigiria reorganização do comum é tratado como mal-estar individual, algo a ser contornado, e não como algo que demanda trabalho coletivo.

É nesse ponto que surge a tentativa de acomodar o conflito sem tocá-lo. A moderação aparece como prudência. Ela pede cuidado, contenção, paciência. Mas, na maior parte das vezes, é sobre quem sofreu o dano que recai essa responsabilidade: ser cuidadoso, medir palavras, não estremecer o ambiente. A moderação reconhece a ferida, mas suspende as consequências que ela exigiria. Responsabilizar implica mexer nas relações – redistribuir autoridade, rever tarefas, reequilibrar fala e escuta. É justamente esse trabalho que a moderação tende a evitar, fazendo do conflito algo que deve ser amortecido, não reorganizado.

Do outro lado, há a reação imediata: a denúncia que explode, circula e cria calor. Há verdade aí – o gesto nasce de exaustão e limite. Mas, quando não encontra forma, a força se dissipa. A violência é nomeada, não é apurada, não é depurada. Ela aparece, mas não se torna critério; não volta ao coletivo como matéria de elaboração. Fica suspensa no acontecimento, deixando o comum intocado.

É nesse intervalo – entre a suspensão da moderação e o esgotamento da descarga – que liberais e reacionários, parecendo estar em lados opostos, convergem no efeito. Uns afirmam que houve exagero; outros falam em censura. A discussão se desloca para a superfície, para a forma da fala, para o modo de dizer. O dano, que exigiria reorganização, perde densidade. A política se afasta do acontecimento.

Isso aparece com clareza em situações ordinárias. Um coletivo cultural organiza um evento anual. Com o tempo, alguém centraliza decisões e reconhecimento. Não começa como violência; começa como hábito. O hábito endurece. Quando alguém diz que está machucado, o ar pesa. Surgem respostas para evitar o desconforto do conflito: “não vamos criar clima”, “isso é pessoal”, “então afasta logo”. Nenhuma delas toca a forma que tornou o acúmulo possível. Há fala – mas não há reorganização.

No fim, esses três movimentos não se anulam. A moderação que estaciona o conflito, a descarga que se esgota em si e o anticancelamento que normaliza o dano se apoiam mutuamente. Tudo volta para o privado, como se cada um tivesse de carregar sozinho o que feriu. A ferida fica ali, sem elaboração. O dano não se resolve; apenas permanece.

A discussão sobre cancelamento costuma se fixar em tomar posição – a favor ou contra – como se fosse uma escolha moral ou identitária. Mas o que importa é outra coisa: o modo como lidamos com o dano quando ele aparece. Se ele é acolhido, ignorado, exposto ou elaborado. É isso que reorganiza – ou não – o comum.

Quando o dano é empurrado para o privado, ele apodrece em silêncio e a sociedade não amadurece. Quando é apenas exibido, ele se esgota no próprio impacto e reverbera negativamente. Quando recusamos sua consequência, ele retorna mais tarde, mais duro, ocupando o espaço que tentamos negar. Elaborar uma ferida é lento, incômodo, muitas vezes imperfeito. Mas é esse trabalho – e não a limpeza de reputações ou a manutenção da harmonia – que sustenta uma vida compartilhada.

A construção do comum não se funda em consenso, mas na capacidade de enfrentar tensões sem transformar ninguém em sobra. É um cuidado sem garantias, refeito a cada vez.

(*) Ricardo Queiroz Pinheiro é bibliotecário, pesquisador e doutorando em Ciências Humanas e Sociais.