Sábado, 6 de dezembro de 2025
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No final da década de 1980, o discurso neoliberal dominou o cenário político ocidental. As lições dos governos de Augusto Pinochet (1973-1990), Ronald Reagan (1981-1989) e Margaret Thatcher (1979-1990) se consolidaram e transformaram-se em lugar-comum. A combinação de incremento do autoritarismo, corte de despesas sociais e valorização de mercados controlados por grandes corporações privadas levou ao estabelecimento de uma série de medidas que seriam difundidas pela força do dinheiro ou das armas para países de todo o planeta.

Essas dez regras receberam, em novembro de 1989, numa reunião de economistas de instituições financeiras situadas em Washington, D.C., capital dos Estados Unidos, com destaque para o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, uma formulação concisa que ficou conhecida pelo nome de Consenso de Washington.

A decisão de Donald Trump de afastar e de ameaçar a presidente do FED, Lisa Cook, mostra que esse consenso acabou. A ideia de criar instituições que exercessem o poder do capital de forma autônoma, impondo seus critérios bastante independentes do sistema político – e, por isso mesmo, com possibilidade de assumir o discurso “técnico”, “não ideológico” – cai por terra.

Embora a autonomia ou independência do Banco Central não fosse uma recomendação explícita do Consenso de Washington, tal medida era vista como um instrumento poderoso de implementação do decálogo neoliberal.

Ao interferir de modo explícito e midiático no BC norte-americano, Trump não apenas se coloca acima das normas que regeram, por décadas, o trabalho do banco que, sem muito exagero, controlava a política monetária do planeta, com contribuições de Londres, Tóquio, Berlim e, mais recentemente, Pequim: ele também mostra que o Consenso de Washington não é mais um consenso e que, a partir de agora, quem manda diretamente na economia do mundo é a Casa Branca. Washington, assim, pôs fim ao Consenso de Washington.

A dúvida que fica é: o Consenso de Washington acabou porque já cumpriu sua tarefa ou, ao contrário, acabou porque, daqui para frente, não dá mais conta do recado de concentrar renda, fortalecer as corporações e o sistema financeiro e manter alguma estabilidade política?

Como quem está acabando com ele é Donald Trump, talvez a segunda opção seja a mais provável.

Os dez pontos do Consenso de Washington estão abaixo, com breves comentários sobre sua evolução entre 1989 e 2025.

Consenso 1. Reduzir os déficits orçamentários nacionais

A ideia era obrigar os países que aderissem às medidas neoliberais a equilibrar, à força, as contas públicas, supostamente para diminuir a necessidade de endividamento do governo e restaurar a estabilidade econômica. Isso foi uma verdade para a União Europeia, para a América Latina e para os países africanos. Na Ásia, o alcance da medida foi menos amplo. Nos Estados Unidos, Ronald Reagan demonstrou que essa não era uma obrigação da principal potência monetária ocidental, dona do dinheiro comum, o dólar. O país ampliou seus déficits para investir na corrida armamentista. Nos anos 1990, no entanto, os democratas também fariam esforços, parcialmente bem-sucedidos, para controlar o déficit nos próprios Estados Unidos.

Em 1994, uma reunião de dirigentes e ex-dirigentes do FED. Federal Reserve/Domínio Público.

Em 1994, uma reunião de dirigentes e ex-dirigentes do FED. Federal Reserve/Domínio Público

Consenso 2. Redirecionar os gastos de áreas politicamente populares para setores negligenciados com alto retorno econômico

Aqui o objetivo era claro: tirar dinheiro do povo e colocar em setores estratégicos. O discurso dizia que subsídios a empresas estatais ou ao consumo de alimentos e combustíveis geravam distorções econômicas e favoreciam populações urbanas mais ricas em detrimento dos pobres do campo. A redução dos subsídios a setores econômicos politicamente influentes imporia custos a alguns grupos, mas liberaria recursos para apoiar serviços sociais básicos, educação e infraestrutura.

Aqui está o argumento que favoreceu a criação de políticas dirigidas como paliativo para políticas universais. A saúde pública e a educação pública pagaram, no mundo todo, um alto preço por conta disso. Nos Estados Unidos, na prática, estão colapsando. Para manter esse colapso, que interessa ao capital financeiro, é preciso matar as experiências de saúde pública bem-sucedidas, como o Sistema Único de Saúde no Brasil e os sistemas europeus que ainda subsistem, como nos países nórdicos, na França e no Reino Unido.

Consenso 3. Reformar o sistema tributário

As reformas deveriam ampliar a base tributária e eliminar isenções que excluíam alguns contribuintes e organizações politicamente conectadas do pagamento de impostos. Ampliar e simplificar os tributos deveria, segundo o consenso, aumentar a eficiência, melhorar a arrecadação e reduzir a evasão fiscal.

Esse era o discurso. Na prática, o que houve foi a sofisticação dos sistemas de cobrança, incluindo populações pobres no rol de pagadores de impostos, aprofundando desigualdades. Não há sinal de que Trump queira mexer nisso para favorecer os mais pobres; pelo contrário.

Consenso 4. Liberalizar o setor financeiro, com o objetivo de adotar taxas de juros determinadas pelo mercado

A partir da premissa de que controles governamentais sobre as taxas de juros tendem a punir os poupadores e desestimular o investimento, ao mesmo tempo que sufocam o desenvolvimento financeiro. Taxas de juros definidas pelo mercado promoveriam a poupança e garantiriam que bancos ou mercados financeiros — e não políticos do governo — determinassem a alocação do crédito.

Trump atacou de morte esse pilar com a demissão de Lisa Cook do FED. Quem vai definir a taxa de juros dos Estados Unidos, daqui para a frente, é a Casa Branca. Essa medida pode fortalecer a reindustrialização do país, ainda que possa ter um reflexo inflacionário imediato.

Consenso 5. Adotar uma taxa de câmbio única e competitiva

O controle dos Estados sobre as taxas de câmbio permitia a adoção de políticas desenvolvimentistas que, na opinião das instituições do Consenso de Washington, desestimulavam exportações e levavam ao racionamento de divisas. Já uma taxa de câmbio competitiva e guiada pelo mercado incentivaria o crescimento econômico baseado em exportações e reduziria problemas no balanço de pagamentos.

Essa medida aboliu, na prática, Bancos Centrais de inúmeros países. A adoção de taxas de câmbio próximas a essa linha auxiliou tremendamente o fracasso de indústrias nacionais e o desenvolvimento de setores primário-exportadores, como a mineração e o agronegócio. Aqui, o caso brasileiro é paradigmático.

Consenso 6. Reduzir restrições ao comércio

Um mundo sem barreiras para o capital: essa era a ideia do Consenso de Washington. As restrições comerciais, avaliavam os representantes do capital financeiro, beneficiariam interesses específicos e deveriam ser reduzidas. Reduzir tarifas sempre que possível e eliminar o máximo de cotas de importação e exportação era a palavra de ordem.

Aqui, as tarifas de Trump, no nível e na forma como foram impostas, puseram em xeque praticamente esse consenso e a instituição mundial criada para promovê-lo, a Organização Mundial do Comércio.

Consenso 7. Abolir barreiras ao investimento estrangeiro direto (IED)

Para o Consenso de Washington, proibir ou restringir o investimento estrangeiro reduzia a concorrência e garantia monopólios a empresas nacionais. O investimento estrangeiro permitiria ao país obter capital, criar empregos e desenvolver competências, ao mesmo tempo que expunha as empresas locais a maior concorrência.

Na prática, a ausência de barreiras a esse tipo de investimento reduziu o poder de conduzir a economia dos países periféricos.

Consenso 8. Privatizar empresas estatais

Empresas estatais eram frequentemente ineficientes, dizia o Consenso de Washington, e sobreviveriam apenas com ajuda de subsídios governamentais que ampliariam os déficits fiscais.

Na prática, ao serem instrumentos eventuais de geração de déficit, as estatais atuavam como ferramentas de que governos dispunham para direcionar investimentos, o que atrapalhava diversos pontos anteriores do consenso. Além disso, as privatizações apressadas, associadas a câmbios liberados, favoreceram a expansão do capital sediado nos países coloniais, ou seja, Estados Unidos e Europa. Agora, no entanto…

Consenso 9. Abolir políticas que restringem a concorrência

Remover regulações e obstáculos que impedem a entrada de novas empresas no mercado poderia estimular a concorrência, a eficiência e o crescimento econômico, dizia o Consenso de Washington. Antes mesmo de Trump chegar ao poder, essa medida já havia caído. Os Estados Unidos, ainda sob o governo democrata de Joe Biden, taxaram os carros elétricos chineses em 100%, entre outras medidas.

Consenso 10. Garantir direitos de propriedade seguros e acessíveis

Esse consenso era uma brecha para a manutenção de um sistema duplo, que permitia incorporar parcialmente a informalidade, mas manter um controle estrito sobre ela. Muitas vezes foi aplicado “de modo exemplar” em países periféricos, como o Peru, gerando modelos reproduzidos em diferentes graus no mundo todo. Nos Estados Unidos, significaria uma vista grossa para os imigrantes “sem documentos” ou “ilegais”. O consenso dizia que um sistema legal que concedesse e protegesse direitos de propriedade — incluindo os de pessoas em empregos informais não registrados oficialmente ou que ocupavam terras sem documentação — incentivaria o investimento e a liberdade individual.

Bom, aqui os imigrantes latinos nos Estados Unidos já sabem: esse sonho nunca foi totalmente implementado no país, mas agora, definitivamente, acabou.