Sábado, 6 de dezembro de 2025
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A Política Externa Brasileira (PEB) sob o governo Lula expressa a crise da ordem internacional. Como o próprio presidente afirmou na ONU, a “autoridade desta Organização está em xeque” e “o multilateralismo está diante de nova encruzilhada”. O Brasil, contudo, não propõe uma ruptura, mas uma reforma: tenta reanimar a velha ordem sob nova direção, propondo a “refundação da ONU” e a “ampliação do Conselho de Segurança”. 

Neste contexto, a organização da COP30 (Conferência das Partes da ONU sobre Mudanças Climáticas) no Brasil não é apenas um evento ambiental, mas a manifestação mais clara de uma PEB que transicionou do liberalismo institucionalista puro para um liberal-realismo reformista, utilizando o prestígio ambiental para barganhar poder e recursos em um cenário global multipolar, mas ainda profundamente hierárquico. 

08.11.2025 - Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, posa para fotografia com Voluntárias e Voluntários da COP30, no Parque da Cidade. Belém - PA. <br> (Foto: Ricardo Stuckert / PR)

08.11.2025 – Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, posa para fotografia com Voluntárias e Voluntários da COP30, no Parque da Cidade. Belém – PA.
(Foto: Ricardo Stuckert / PR)

O liberal-realismo climático: prestígio em troca de margem 

A atual PEB articula a defesa da democracia interna com uma postura de autonomia externa, buscando transformar estabilidade institucional e previsibilidade jurídica em moeda diplomática. Essa lógica se estende à pauta climática, definindo o Brasil como um arquiteto climático: 

1 – Ato Moral e Normativo: O país assume metas de Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) ambiciosas, ostenta resultados na redução do desmatamento (caindo pela metade) e propõe iniciativas como o Fundo Florestas Tropicais para Sempre. O Brasil quer ser visto como uma nação confiável e responsável, apta a negociar. 

2 – Ato Realista de Barganha: A tática principal é transformar o prestígio ambiental em financiamento, tecnologia e mercados (bioeconomia, energia limpa). O ambientalismo, que antes era defensivo, torna-se estratégico, utilizando o clima como política industrial e financeira. 

O léxico utilizado é liberal (ONU, regras, humanitarismo), mas a finalidade é realista (recalibrar poder e ampliar a margem de manobra do Sul Global, e do Brasil em particular). A Amazônia, nesse processo, deixa de ser vista apenas como um “ativo moral” e passa a ser tratada como um “ativo tecnocientífico”. 

A crítica marxista da dependência: o risco do extrativismo verde 

A Teoria Marxista da Dependência (TMD) – que exige que soberania e poder se assentem sobre uma base produtiva e tecnológica sólida – oferece uma crítica essencial a essa estratégia liberal-realista, que se manifesta em alguns pontos cruciais: 

A dependência se manifesta quando a posição periférica se mantém, mesmo mudando o objeto de exploração. O Brasil corre o risco de trocar a commodity fóssil pela commodity carbono, ou por minerais estratégicos não processados. A crítica marxista alerta para o extrativismo verde, onde a dependência muda de forma, mas não de conteúdo. Entramos

no risco de um “green lock-in”, onde nos especializamos na exportação de ativos ambientais de baixo valor agregado tecnológico. 

A TMD, inspirada em Ruy Mauro Marini, ensina que a afirmação de soberania no plano jurídico e diplomático (a chamada dependência civilizada) não é suficiente quando cadeias produtivas, tecnologia e finanças permanecem controladas de fora. A “autonomia limitada” ocorre quando se negocia posição sem ter poder material – moeda forte, tecnologia, energia e crédito – para sustentá-la. O aumento da representação diplomática (exemplo no BRICS, G20) cresce, mas o comando produtivo/tecnológico permanece estático. 

A soberania precisa ser material. A democracia procedural, mesmo sob ataque, defendida pelo Brasil, opera em sociedades dependentes como um mecanismo de integração subordinada, administrando a mudança social sem tocar a propriedade e os comandos da economia. O desafio é transformar o prestígio normativo (ser o país da COP30) em capacidade produtiva e tecnológica

Alternativas factíveis: construindo a soberania material 

Para que a COP30 seja, de fato, a “COP da verdade” e não apenas um palco para mais uma rodada de dependência reformada, a política externa precisa se apoiar em um planejamento estatal que promova a soberania material. As alternativas factíveis exigem que o Estado “mande na sala de máquinas”:

1 – Macro Verde Desenvolvimentista 

É fundamental tratar a questão climática como política industrial e não apenas como regulamentação. 

Conteúdo Nacional: Criar polos industriais para turbinas, painéis solares, eletrolisadores e baterias. As metas de conteúdo local e as encomendas tecnológicas devem transformar a pauta climática em aprendizado setorial e produtividade. 

Soberania Fiscal: É possível conciliar estabilidade nominal com expansão real. O Orçamento de investimento verde deve ser colocado fora de tetos rígidos. A Teoria Monetária Moderna (MMT) sustenta que o emissor de moeda (o Estado brasileiro) não enfrenta restrição financeira interna como um lar; o limite é a capacidade real (gente, máquinas, insumos). O déficit pode ser uma ferramenta para pleno emprego e aumento da oferta real.

2 – Infraestrutura e Tecnologia Soberanas 

A soberania tecnológica define produtividade e taxa de lucro. No contexto digital, que permeia o planejamento da transição energética, a infraestrutura informacional (nuvem, IA, pagamentos) não pode ser deixada à mercê do capital privado e estrangeiro. 

Soberania Tecnológica: Estatais e Joint Ventures público-privadas em IA, semicondutores, cibersegurança e telecomunicações. As compras governamentais devem incluir metas de transferência tecnológica.

Amazônia Bioindustrial: A floresta precisa ser tratada como plataforma de valor científico-industrial, desenvolvendo cadeias de fármacos, bioinsumos e materiais avançados com parques tecnológicos e universidades. 

Comércio Condicional: Toda aliança e acordo deve ter cláusulas obrigatórias de transferência tecnológica e conteúdo local. O Brasil deve vender mercado para obter tecnologia, não o inverso.

3 – Integração e Finanças Alternativas 

A fragilidade diante de choques externos e a dependência do dólar exigem a coordenação regional e a construção de arquiteturas financeiras alternativas. 

Integração Produtiva: O Brasil deve atuar como nó tecnológico para cadeias regionais em energia, máquinas, fármacos e defesa. A escala regional dilui o custo de P&D e viabiliza o aprendizado cumulativo. 

Crédito Planejado: O BNDES e os bancos públicos devem ser o “sistema circulatório do planejamento”. Linhas de crédito por missão (indústria verde, chips, defesa), inclusive para pessoas físicas (solar residencial, retrofit habitacional), ajudam a coordenar a transformação produtiva e a acelerar a difusão tecnológica, usando o preço e a direção do crédito para organizar a transformação. 

Desdolarização: Utilizar clearing em moedas locais e linhas swap para reduzir a dependência do dólar e criar almofadas de liquidez para choques. 

Conclusão: da retórica à máquina 

O Brasil de Lula nos colocou em um patamar de liberal-realismo que dá voz, prestígio e margem de manobra em meio à crise da unipolaridade. No entanto, a lição da TMD é inegociável: soberania sem base material é retórica

A diplomacia sobe de patamar quando a economia sobe de grau, e a economia só sobe de grau quando o Estado planeja, investe e coordena. Para que a COP30 seja um sucesso estratégico, é preciso industrializar, tecnologizar e financiar a transição verde com comando público e controle social, sem restrições fiscais ideológicas. Essa deve ser a espinha dorsal de uma PEB que pretende falar alto no plenário sem falar baixo na produção.

(*) Samuel Braun é professor de políticas públicas na UERJ, doutorando em Economia Política Internacional (UFRJ), mestre em ciência política (UFRRJ) e cientista social (UERJ).