China ganha Índia e Rússia, e Trump acusa o golpe
Parada militar de 80 anos da vitória chinesa na Segunda Guerra Mundial impressiona o mundo pelo poderio militar e pela capacidade diplomática de Pequim
Após o desfile da vitória chinesa, o presidente americano Donald Trump declarou, sem rodeios, que “parece que perdemos a Índia e a Rússia para a China”. Pouco antes, ele já havia mostrado frustração com o fato de os Estados Unidos terem sido esquecidos no evento – e de que os presidentes da Rússia, Vladimir Putin, e Coreia Popular, Kim Jong-un, estariam conspirando contra ele em Pequim.

Xi Jinping e Vladimir Putin confraternizam durante a parada militar de 80 anos da vitória da China na Segunda Guerra Mundial e Donald Trump lamenta: “Parece que perdemos a Índia e a Rússia para a China” (Foto: Presidência da Rússia/WikiCommons)
Essas duas declarações seguidas se somaram ao reconhecimento, meses antes, de que a inteligência artificial chinesa superou a americana, e isso era um problema. Levando em consideração a roupagem ufanista e manipuladora de Trump, realmente os chineses tiveram vitórias táticas incontestáveis – e foi melhor para o presidente admitir isso do que simplesmente criar um factoide.
Certamente, o movimento da Índia surpreendeu os estrategistas de Washington. Supondo que o premiê indiano Narendra Modi seria um aliado subserviente, Trump buscou dobrá-lo, mediante um tarifaço, no único assunto em que ele fugia ao script, isto é, a política indiana de ser a grande intermediadora comercial da sancionada Rússia para o Ocidente.
O tiro americano saiu completamente pela culatra, com os indianos não recuando a respeito da Rússia como, ainda, dando um giro completo em relação à China – Modi foi à Cúpula da Organização para Cooperação de Xangai (OCX) em Tianjin para aclamar a unidade eurasiática e prestar homenagens ao presidente chinês Xi Jinping, o anfitrião. Na tentativa de mostra a importância de sua ausência, Trump acabou provando a ausência de sua importância.
Narrativas, mitos e folclore sobre a Segunda Guerra Mundial
Grande parte do empenho americano na Segunda Guerra Mundial foi, realmente, no teatro de operações da Ásia-Pacífico, uma vez que o Japão, outrora aliado americano, se tornou seu grande nêmesis. A partir de 1936, Tóquio repentinamente resolveu ameaçar a hegemonia americana no Pacífico, para onde desde 1850 se deslocou o centro de gravidade mundial, como perceberam tanto Karl Marx quanto Washington.
Esse apagamento proposital se deve a alguns fatores nada triviais. Por um lado, convinha aos americanos passar uma borracha no papel genocida do Japão, o qual, uma vez derrotado, se tornou seu obediente servo na Ásia. Mais ainda, convinha falar pouco sobre a guerra no Pacífico, pois essa mesma derrota japonesa foi antecipada usando métodos espúrios: a detonação das bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki.
Mas o pior de tudo é que a aliada China se tornou, rapidamente, em 1949, o primeiro grande entrave ao plano global americano, como observou o economista grego Yanis Varoufakis. Não é que os chineses se tornaram o novo grande adversário americano, cargo que obviamente pertenceu à União Soviética, mas que o triunfo de Mao Zedong sobre o continente chinês fugiu ao script – e não tinha sido precificado.
De repente, a narrativa sobre o papel americano na vitória dos Aliados sobre as forças do Eixo na Segunda Guerra se tornou o Dia D, o famoso desembarque na Normandia, quando as tropas soviéticas já haviam posto os nazistas para correr – causando as maiores perdas aos alemães enquanto, simultaneamente, arcaram com as piores perdas, tanto de civis quanto de militares, no teatro de operações europeu.
Daí a incógnita de plateias ocidentais e ocidentalizadas sobre o porquê de a China estar comemorando uma vitória na guerra, já que, segundo Hollywood, o conflito teria sido um fenômeno centralmente europeu. Isso tornou mais enigmática a frustração de Trump pela ausência de convite por parte dos chineses – o que, contudo, é justo diante do devir histórico, embora não por um historicismo.
Em um sentido literal, faria pleno sentido que os americanos estivessem na bancada chinesa, mas isso seria antagônico ao sentido histórico: uma vez agredindo e ameaçando a China a todo momento, enquanto assume para si o fascismo mais desavergonhado, que justificativa teria Xi para convidar Trump à parada da vitória em Pequim? Não seria o presidente americano representante, precisamente, dos derrotados em 1945?
O continente indiano, o subcontinente europeu – ou Eurásia, o coração do mundo
Os europeus mapearam o mundo com o pior dos propósitos, a simples e pornográfica rapina colonial. De repente, o planeta foi rachado em continentes antes dos próprios países. Quem os nomeou foram os europeus. Os que chamamos hoje de asiáticos não se percebiam como pertencentes de uma mesma unidade, mas o mais curioso são os limites arbitrários, posto que geopolíticos, dessas faixas de terras.
Por que a Europa é um continente e não parte da Ásia? Em sentido geográfico físico, a existência da Europa, justamente o continente que nomeou o mundo, não faz sentido – tampouco no sentido da política, pois o que separa a “Ásia” da “Europa”, incialmente duas pequenas regiões em lados opostos do atual Mar Negro, não é nenhuma barreira física relevante – nem migratória nem cultural, mas geopolítica.
Pelos mesmos fundamentos pelos quais falamos em continente europeu, poderíamos muito bem considerar a grande civilização indo-gangética um “continente”. Inclusive pelo fato do que hoje chamamos de Índia ter sido, na maior parte do tempo, não uma unidade política, mas um conjunto de reinos e cidades-Estado. Mas isso vale para outras regiões, como a Ásia Oriental e sua expressão como parte da esfera chinesa.
Quando chineses e russos iniciaram a OCX, em 1997, em uma antevisão de que o mundo globalizado e sob liderança americana logo encontraria limites, eles se uniram à maior parte das velhas repúblicas soviéticas na Ásia Central – que se tornaram um problema para ambas as potências, o que só poderia ser resolvido com um acordo estratégico comum.
Décadas depois, novos membros se juntaram ao bloco, além de uma boa quantidade de observadores e parceiros – enquanto chineses e russos, finalmente, resolveram seus problemas e rivalidades com seu Tratado de Cooperação de 2001. Indianos e paquistaneses já haviam entrado no bloco, que, no entanto, se expandiu demais e, em alguma medida, se diluiu também. Mas só até o segundo governo de Trump.
A visita de Modi à última cúpula, revertendo a linha leal a Washington com o retorno de Trump à Casa Branca, teve um significado. Nova Dehli aceitou fustigar a China, inclusive com provocações perigosas ao Paquistão, mas não renunciar a uma aliança com a Rússia, o que lhe rendeu muito dinheiro no contexto da guerra na Ucrânia. O que Modi não esperava é que tomaria uma enorme pressão por isso.
O grande não de Modi
Depois de uma traição enorme, Modi simplesmente provou que era possível escapar a uma ordem imperial, punitiva e mandonista de Washington. Nem a China nem a Rússia precisam, exatamente, da Índia para atingir seus objetivos, mas elas precisam não ter o atual maior país do mundo, em termos populacionais, como inimigo. E esse sempre foi o sonho erótico das elites imperialistas do Ocidente.
Com o coração do continente asiático relativamente garantido, e uma postura amistosa de Nova Dehli, Moscou e Pequim podem construir pontes de comércio e infraestrutura terrestre, contornando o único desafio real à sua ascensão: o cerco naval que os americanos podem realizar à longa distância, uma vez que ainda detêm a hegemonia dos mares, colapsando redes de comércio vitais.
Portanto, ter paz entre os vizinhos com quem se tem fronteiras terrestres é fundamental para suportar a dureza que poderia ser esse cerco, seja em um cenário guerra fria ou morna. A grande variável para viabilizar um plano radical americano de contenção, pela força, dos chineses seria uma traição indiana. Assim como as sanções só seriam eficazes contra a Rússia na mesma circunstância. Agora, isso parece distante.
Para Trump foi melhor expressar essa derrota ao invés de se mostrar inabalável, parecendo delirante. Ainda mais em tempos em que a imprensa do Ocidente condena o tarifaço contra o relativamente inofensivo Brasil – cujas consequências parecem não apenas ser ineficazes como desastrosas, com o país sul-americano aumentando seu comércio, enquanto isso gera pressões inflacionárias nos Estados Unidos.
Enquanto isso, os efeitos dos tarifaços nem geraram o supercrescimento que Trump esperava, nem uma inflação galopante como suposto pelo mainstream democrata: ao contrário, com más perspectivas de crescimento, os mercados de petróleo veem o barril perder valor, compensando a inflação de outros insumos causada pelo tarifaço burramente aplicado. É uma sangria a conta-gotas.
Ainda com um enorme poder nas mãos, Trump tem descoberto o significado técnico do carma, isto é, produzir efeitos colaterais piores do que os ganhos que se pode obter com ações inconsequentes e oportunistas. Xi Jinping, ao contrário, colhe os frutos disso, enquanto contorna anos difíceis nos quais a China transita do grande ciclo da construção civil para a economia de alta tecnologia.
(*) Hugo Albuquerque é jurista e editor da Autonomia Literária.























