Chile: Daniel Jadue e o 'pecado' popular
Caso de Jadue não é apenas um problema local, é um aviso com sotaque continental: não basta vencer eleições, é preciso blindar a democracia contra a manipulação judicial
Quando eu era criança, ensinaram-me que a justiça era uma balança: dois pratos perfeitamente equilibrados, um símbolo de que, se alguém agisse corretamente, nada de mal poderia acontecer. Aprendi isso nos livros de história, nas aulas de educação cívica e, é claro, nos discursos na escola, onde algum professor, com solenidade de mármore, recitava que “ninguém está acima da lei”. Hoje, vendo o que está acontecendo no Chile com Daniel Jadue, me pergunto se a balança não se quebrou há muito tempo… ou se, ao contrário, alguém a está inclinando com um dedo invisível, mas perfeitamente treinado para isso.
Não nos iludamos: a Promotoria pediu prisão preventiva e inelegibilidade política para Jadue, somando acusações que, se prosperarem em sua máxima expressão, poderiam se traduzir em penas que chegam a 18 anos de prisão e inelegibilidade para cargos públicos. Uma punição desproporcional para um caso em que, segundo sua defesa, não há enriquecimento ilícito nem dano patrimonial pessoal, mas sim um debate sobre a gestão de recursos em iniciativas municipais populares. Em outras palavras: ele é perseguido como se fosse um criminoso perigoso, quando o que fez foi administrar um município incômodo para os poderes de sempre e multiplicar essa experiência em nível nacional.

O ex-prefeito de Recoleta, hoje alvo de lawfare, Daniel Jadue, em outubro de 2014.
(Foto: Vocería de Gobierno / Flickr)
A cena, mais do que um ato de justiça, parece um déjà vu. Já vimos isso antes, em 2009, em Honduras com Zelaya em 2012 no Paraguai com Lugo, em 2016 no Brasil com Dilma, em 2018 no Equador com Correa, em 2022 no Brasil com Lula, em 2024 até o momento, no Chile, com Daniel e agora também com Cristina na Argentina. Todos diferentes, todos com seus sotaques e formas, mas com uma coincidência tão clara que poderia passar por um padrão: líderes que impulsionaram políticas populares, que atingiram fortes interesses, que ousaram incomodar aqueles que estão acostumados a que o tabuleiro permaneça sempre igual… até que, misteriosamente, os tribunais se tornam protagonistas da política.
A esse roteiro deram um nome: lawfare. Uma guerra que não usa armas nem tanques, mas sim promotores, processos e primeiras páginas de jornais. E, como toda guerra, tem sua primeira vítima: a confiança do povo. Porque quando a justiça se sente como uma arma, o que se corrói não é apenas a reputação de um líder, mas a própria ideia de que as regras do jogo são justas.
Em Recoleta, Jadue fez algo que para alguns foi imperdoável: demonstrou que era possível governar pensando na maioria. Farmácias, óticas, livrarias, imobiliárias populares, preços acessíveis… políticas que não só melhoravam a vida das pessoas, mas questionavam diretamente os negócios daqueles que vivem do encarecimento dos produtos básicos. Foi aí que começou a dívida que hoje querem cobrar dele.
Existem alternativas para manter sua candidatura ao parlamento, mas elas estão contra o relógio. No âmbito judicial e, é claro, na esfera política: a pressão pública e o apoio de seu partido e aliados, que poderiam influenciar para que o processo não seja usado para privá-lo do direito de concorrer. Porque, embora a lei chilena impeça que se seja candidato quando condenado por crimes com pena aflitiva, a prisão preventiva sem sentença firme não é suficiente para retirá-lo automaticamente… embora já saibamos que, na prática, a imagem de um candidato atrás das grades pode ser tão devastadora quanto uma condenação.
Por isso, para os progressistas da América Latina, o caso de Jadue não é apenas um problema local. É um aviso com sotaque continental: não basta vencer eleições, é preciso blindar a democracia contra a manipulação judicial. É preciso olhar para o Brasil, para o Equador, para a Argentina, e entender que o que acontece hoje no Chile pode bater à porta amanhã em qualquer outra cidade, com outro nome e outra bandeira.
Apoiá-lo agora implica mais do que declarações: significa manter vivo o debate sobre o uso político da justiça, divulgar informações verificadas para contrariar a narrativa oficial, mobilizar redes de solidariedade que mantenham sua voz presente mesmo que tentem silenciá-la e manter a pressão social para que o processo seja justo e transparente. É entender que, nesses casos, o silêncio não é neutralidade, mas cumplicidade. Porque o que está em jogo não é apenas o futuro político de um líder, mas o direito dos povos de escolher sem que um processo judicial escrito com tinta política balize seu voto.
No final, talvez a balança da justiça ainda esteja lá, intacta, mas cercada por mãos que tentam empurrá-la. Nossa tarefa é simples e difícil ao mesmo tempo: não desviar o olhar, não aceitar o roteiro sem questionar e lembrar que hoje a democracia não se perde de um golpe… mas a partir de pequenas inclinações que parecem técnicas, mas são políticas.
(*) Diego Aguirre é Secretário Político da Regional Exterior do Partido Comunista do Chile























