Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Costuma-se falar de uma “vocação natural” dos países e dos povos, que estaria determinada pela sua geografia, pela sua história e pelos seus interesses econômicos. Mas, ao mesmo tempo, sempre existiram países ou povos que se atribuem um “destino manifesto” com o direito de ultrapassar os seus limites geográficos e históricos e projetar poder para além das suas fronteiras, com o objetivo de converter, civilizar ou governar os demais povos do mundo.

Entretanto, quando se estuda a história mundial, o que se descobre é que nunca existiram povos com vocações inapeláveis, nem países com destinos revelados. Descobre-se também que todos os países que projetaram seu poder para fora de si mesmos e conseguiram se transformar em “grandes potências” foram, em algum momento, países periféricos e insignificantes dentro do sistema mundial. E se constata, além disto, que em todos estes casos de sucesso existiu um momento em que havia uma distância muito grande entre a capacidade imediata de que o país dispunha e a vontade ou decisão política de mudar seu lugar dentro da hierarquia internacional.

Essa distância objetiva foi superada sem voluntarismos extemporâneos por uma estratégia de poder competente que soube avaliar, em cada momento, o potencial expansivo do país, dos pontos de vista político, econômico e militar. Daí se deduz que existe uma “vontade de potência” mais universal do que se imagina, e que de fato o que ocorre é que a própria natureza competitiva e hierárquica do sistema impede que todos tenham o mesmo sucesso, criando a impressão equivocada de que só alguns possuem o “destino superior” de supervisionar o resto do mundo.

Por imposição geográfica, histórica e constitucional, a prioridade número 1 da política externa brasileira sempre foi a América do Sul. Mas, hoje, é impossível o Brasil sustentar os seus objetivos e compromissos sul-americanos, sem pensar e atuar simultaneamente em escala global. Parte-se do pressuposto de que acabou o tempo dos “pequenos países” conquistadores (como Portugal e Inglaterra, por exemplo) e de que o futuro do sistema mundial dependerá, daqui para frente, de um “jogo de poder” entre os grandes “países continentais” (como é o caso pioneiro dos EUA, e agora será também, o caso da China, da Rússia, da Índia e do Brasil, excluída a União Europeia enquanto não for um estado único).

Neste jogo, os EUA já ocupam o epicentro e lideram a expansão do sistema mundial, mas os outros quatro países, juntos, possuem cerca de um quarto do território e quase um terço da população mundial. E todos os quatro estão disputando hegemonias regionais e já projetam – em alguma medida – seu poder econômico ou diplomático para fora de suas próprias regiões.

Vantagens do Brasil

O que se deve esperar, na próxima década, é que a Rússia se concentre na reconquista do seu antigo território e de sua zona de influência imediata; que a expansão global da China se mantenha no campo econômico e diplomático; e que a Índia continue envolvida com a construção de barreiras e alianças que protejam suas fronteiras ao norte (onde se sente ameaçada pelo Paquistão e pelo Afeganistão) e ao sul (onde se sente ameaçada pelo novo poder naval da própria China).

Deste ponto de vista, comparado com estes três “países continentais”, o Brasil tem menor importância econômica do que a China e muito menor poder militar do que a Rússia e a Índia. Mas, ao mesmo tempo, o Brasil é o único destes países que está situado numa região onde não enfrenta disputas territoriais com os vizinhos. Por isso, é o país com maior potencial de expansão pacífica dentro da sua própria região. Além disto, é o único que contou – até agora – com uma dupla vantagem com relação aos outros três, do ponto de vista da presença fora do próprio continente: em primeiro lugar, usufruiu da condição de “potência desarmada”, porque está situado na zona de proteção militar incondicional dos EUA; em segundo, o Brasil usufruiu da condição de “candidato-herdeiro” a potência, porque é o único que pertence inteiramente à “matriz civilizatória” dos EUA.

A expansão da influência brasileira tem seguido até aqui a trilha já percorrida pelos EUA e pelos seus antepassados europeus. Além disso, é fundamental destacar que o Brasil contou neste período recente com a liderança política de um presidente que transcendeu seu país e projetou mundialmente sua imagem e influência carismática. É um processo análogo ao que já acontecera com a liderança mundial de Nelson Mandela, que foi muito além do poder real e da influência internacional da África do Sul.

Duas escolhas

Neste sentido, o primeiro cálculo que se deve fazer em relação ao futuro brasileiro é que o fim do mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva representará, inevitavelmente, uma perda no cenário internacional, como aconteceu também com a saída de Mandela. A diferença é que o Brasil já está objetivamente muito à frente da África do Sul. Mesmo assim, para seguir adiante pelo caminho já traçado, o Brasil terá de fazer pelo menos duas opções fundamentais e de longo prazo.

Em primeiro lugar, o país terá de decidir se aceita ou não a condição de “aliado estratégico” dos EUA, do Reino Unido e da França, com direito de acesso à tecnologia de ponta mas mantendo-se na zona de influência e decisão militar norte-americana. Caso contrário, terá de decidir se quer ou não construir uma capacidade autônoma de sustentar suas posições internacionais, com seu próprio poder militar.

Em seguida, o Brasil terá de definir a sua visão (ou utopia) e o seu projeto de transformação do sistema mundial, sem negar sua “matriz originária” europeia, mas sem contar com nenhum “mandato” ou “destino”, revelado por Deus ou quem quer que seja, para converter, civilizar ou conquistar os povos mais fracos do sistema.

De qualquer forma, uma coisa é certa: o Brasil já se mobilizou internamente e estabeleceu nexos, dependências e expectativas internacionais muito extensas, num jogo de poder que não admite recuos. A esta altura, qualquer retrocesso terá um custo muito alto para a história brasileira.

Brasil: vocação natural e vontade de potência

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