Sábado, 6 de dezembro de 2025
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William Shakespeare imortalizou o general romano Coriolano na peça de mesmo nome. Nela, Coriolano trai Roma e se alia à nação rival dos volscos, uma vez que se enfureceu com os crescentes direitos da plebe e as concessões da elite da qual fazia parte. O recente episódio de Bolsonaro e o tarifaço de Trump, guardadas as incontornáveis características brasileiras, relembra o tema geral da peça.

Por ironia, talvez tenhamos inventado uma terceira “repetição” histórica, além da farsa aventada por Marx, no sempre recorrente 18 de Brumário: a pornochanchada. Nas últimas semanas, o descarado complô da família Bolsonaro com Donald Trump para livrar Bolsonaro pai do cárcere, passou de uma eventual tragicomédia para alcançar outra dimensão, pornográfica e cômica ao mesmo tempo.

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, durante evento de comemoração do 250º aniversário do Exército dos EUA. <br> (Foto: White House / Daniel Torok)

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, durante evento de comemoração do 250º aniversário do Exército dos EUA.
(Foto: White House / Daniel Torok)

A pornochanchada, gênero consagrado no cinema brasileiro, trazia o humor popularesco com um soft porn tropical – no entanto, ainda que a nudez ou o sexo explicitado sejam a forma de expressão recorrente da pornografia, ela certamente não se limita a isso: o pornográfico, antes de tudo, se baseia na explicitação do que, por pudor ou hipocrisia, se deve manter em reservado. E a pornochanchada nos faz rir desse despudor.

A História do Brasil, ora pois, vem da colonização portuguesa e segue sob constante intervenção anglo-americana, no contexto de um sistema dependente. Mas isso manteve os ritos da decência por meio de conspirações razoavelmente escondidas, tramoias subterrâneas e uma diplomacia de alcova, exaltando um inexistente respeito mútuo – como é a praxe de casamentos arranjados e sem amor.

Eis que dessa vez Trump avança na sua política de chantagem tarifária, mostrando que quer mesmo é que sua vontade seja cumprida pelo sistema brasileiro, enquanto Bolsonaro se utiliza disso para se safar da justiça de seu país. Por ora, ambos perderam o primeiro round, e Lula recupera sua popularidade enquanto mesmo parte da base eleitoral bolsonarista rejeita o complô. Mas essa luta ainda não acabou.

Trump e o imperialismo além da alcova

Novamente na presidência, após derrotar um governo impopular como o de Biden, Trump se beneficiou de um raciocínio muito simples do eleitorado: se nos tempos do seu primeiro governo a economia seguia melhor, então seria de bom tom trazê-lo de volta. Que não se subestime as perdas dos trabalhadores americanos durante o governo Biden, seja com a inflação ou endividamento, ao contrário do que se dizia.

Só que hoje a administração Trump perde cada vez mais a popularidade, enquanto sua atuação em políticas específicas – como a gestão da economia, o controle do custo de vida e a imigração – estão piores que a média da própria administração. Quase sem lua de mel com o eleitorado, Trump bateu na lona em relação ao tarifaço de abril, se recuperou um pouco, mas agora volta a cair, enquanto o escândalo Epstein volta à tona.

Ainda pior do que a avaliação de Trump nos Estados Unidos é sua percepção atual no Brasil, onde é vendido pela extrema direita como patrono e modelo. O tarifaço interventivo no Brasil, por sinal, além de ofender os pudores patrióticos da massa, atingiu o bolso de setores tradicionais da oligarquia. A supremacia americana sobre o Brasil, antes devidamente exercida na alcova, ganhou a praça pública.

Se Trump consegue entreter a massa como estrela de televisão que é, mantendo os olhos fixos de todos na tela, por outro lado, ele se desgasta. Isso já lhe custou a derrota de 2020. Trump, é claro, não é um pobre volsco como na peça de Shakespeare, mas um bilionário herdeiro e forjado em meio a negócios escusos em Nova Iorque – servindo agora a interesses piores e muito maiores no Império.

Bolsonaro, por outro lado, é menos que um protagonista aristocrata e elitista, mas uma versão pornográfica e cômica, cuja patente o liga aos velhos capitães do mato da colônia. Sua aposta desesperada, entretanto, produz um desgaste mesmo na sua âncora. Uma vez que a natureza das relações americano-brasileiras se torna pública, e pornograficamente se escancara, como esse domínio pode se sustentar?

Um tarifaço “totalmente insano”

Com alguma razão, foi assim que o ex-vice-presidente americano Al Gore descreveu o tarifaço contra o Brasil. O comércio entre os países é amplamente favorável a Washington, que tem superávit comercial e ainda importa produtos como laranja, café e carne, que são essenciais na dieta cotidiana dos americanos – com a industrialização deles quase toda feita nos Estados Unidos.

O Brasil já era o “país modelo” do delírio trumpista de como deveria ser o comércio global – e que não é precisamente porque incorporar o chão de fábrica do mundo nos Estados Unidos não parece ser sequer fisicamente possível. Nesse sentido, Trump quer mais, determinando quem será o presidente, e quer a garantia das terras raras brasileiras, isto é, controlar o mercado de mineração do país.

Não há limites para o presidente americano e, nesse sentido, Bolsonaro é perfeito para o papel de “presidente”: um típico capitão de exército colonial, ainda disposto a figurar como títere e assim obter suas vantagens econômicas e políticas como uma tirania qualquer. Bolsonaro é um Coriolano na sua versão colonial, e de pornochanchada, que não terá sua esposa para lhe servir como consciência externa.

Enquanto isso, o senso comum liberal do Brasil, que alimenta o imaginário progressista, entra em colapso como Roma, mas não a salva pelo arrependimento tardio de Coriolano. Os liberais fracassam com os neofascistas como os senadores romanos com os bárbaros – e os que se aviltam, tratando com eles, terminam como o filósofo Boécio, executado a mando de Teodorico, o segundo rei bárbaro de Roma.

Talvez sem o sagrado e o segredo, o poder não persevera, mas os bárbaros que tomaram o Império Romano do Ocidente, assim como os fascistas – dos anos 1920 e de agora – almejaram quebrar esse tabu, tornando a política um exercício pornográfico da força. Em certa medida, eles fracassaram, mas não o suficiente para que seus herdeiros voltassem a atacar. Por isso, Lula terá de ouvir menos, ou nada, seus liberais.

(*) Hugo Albuquerque é jurista e editor da Autonomia Literária.