Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Cada vez mais percebemos a emergência de alguma “consciência preocupada” (na falta de termo melhor) à condição digital do nosso tempo. Ela se manifesta em diversos aspectos, mas alguns eventos a evocam e forçam com que se consolide. Por exemplo: a eleição de figuras da extrema direita, como Donald Trump nos EUA ou Bolsonaro no Brasil, com a participação e influência das mídias digitais sendo eixo central (desde a propaganda memética nas plataformas de vídeos curtos até a mobilização de redes em grupos no Whatsapp); o efeito das fakenews, mostrando-se nessas campanhas mas também pelo explícito negacionismo anti-vacina (e anti-ciências em geral) durante a pandemia; mais recentemente, o debate sobre bets e jogos de azar genéricos nas plataformas digitais; até o último episódio, exposto pelo youtuber e influencer Felipe Bressanim Pereira, conhecido como Felca, que chamou a atenção para a “adultização” de crianças buscando monetização na internet, e que se extende até a crimes de pedofilia realizados no meio digital.  

Esses acontecimentos levaram à urgência de um debate sobre os efeitos e riscos inerentes ao processo de digitalização tal qual ele vem ocorrendo. Essa consciência crítica, entretanto, não é tão crítica quanto o necessário. Boa parte dela é limitada por um grande moralismo que circula em temas anteriores à plataformização e, além disso, o próprio processo de digitalização intensifica problemas intrínsecos à lógica do capital, da acumulação e do valor – problemas dificilmente reconhecidos pelos críticos de ocasião. Soma-se a tudo isso uma dificuldade constante em formalizar as questões em jogo frente às tecnologias digitais, dada a magnitude inédita de seu alcance e as constantes mudanças aceleradas que promovem.

Assim como a urgência em adereçar o problema da “adultização” e exploração – sexual e do trabalho – infantil, é também fundamental abordarmos seu avesso: a infantilização dos adultos promovida pela digitalização. <br>(Foto: George Pak / Pexels)Assim como a urgência em adereçar o problema da “adultização” e exploração – sexual e do trabalho – infantil, é também fundamental abordarmos seu avesso: a infantilização dos adultos promovida pela digitalização. <br>(Foto: George Pak / Pexels)

Assim como a urgência em adereçar o problema da “adultização” e exploração – sexual e do trabalho – infantil, é também fundamental abordarmos seu avesso: a infantilização dos adultos promovida pela digitalização.
(Foto: George Pak / Pexels)

Ao considerarmos questões relativas à regulamentação de plataformas – questão central hoje – é preciso também levar em consideração a realidade do trabalho no contemporâneo: o apelo que determinadas plataformas possuem provém também de uma fragmentação extrema do tecido social, em uma sociedade com horizonte pós-salarial onde qualquer plano de carreira, segurança financeira e planejamento de futuro escoam-se pelo ralo do realismo neoliberal, inclusive com grande apoio das massas mais afetadas por tais políticas. A superexposição em plataformas digitais, inclusive de menores, o vício por jogos de azar, o sensacionalismo permeado por notícias falsas e o apelo ao absurdo e ao ridículo para gerar alcance e engajamento são efeitos da lógica de monetização que subjaz a arquitetura das plataformas. Em uma sociedade sem opções, o desespero revela os absurdos.

Assim como a urgência em adereçar o problema da “adultização” e exploração – sexual e do trabalho – infantil, é também fundamental abordarmos seu avesso: a infantilização dos adultos promovida pela digitalização. Hoje constantemente adultos são não só interpelados, mas subjetivados de modo paternalista, tutelados pelas tecnologias e infantilizados pela cultura. O próprio exercício do pensamento é delegado à máquina, gradativamente automatizam-se as tarefas cognitivas, criativas e, ao mesmo tempo, produzem-se plataformas que agem pelo condicionamento, pelo estímulo e resposta, pela recompensa imediata, tudo organizado por estruturas abstratas que são arquitetadas para maximizar o tempo de uso dos aparelhos expondo seus usuários ao conteúdo que for mais propício para esse fim – seja qual for o conteúdo. 

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Essa arquitetura incentiva conteúdos que apelam para o tipo de estímulo mais efetivo e rentável disponível, o que promove diferentes culturas em uma economia da atenção digital onde a publicidade e a propaganda informaram o próprio design das plataformas. Informação, inclusive, é um ponto fundamental nesse debate: as plataformas funcionam pelo processo de quantificação, armazenamento e processamento das informações que, digitalizadas, servem às finalidades dos oligopólios que às controlam. A constante produção de informações é organizada pela busca de redução da complexidade desde sua arquitetura abstrata, tendo a eficácia como princípio. A redução da complexidade, entretanto, não serve simplesmente à eficácia do processamento informacional: no momento em que esse princípio é aplicado socialmente de forma massiva, a cultura que desenvolve-se a partir dele tende também à redução de sua complexidade. 

  Com a fragmentação, a aceleração e o hiperestímulo fomentados pelas plataformas, emergem figuras que passam a compor um novo estrato social baseado na fama e na projeção possibilitadas pelas redes. Os chamados influenciadores digitais passam a não simplesmente informar, mas formam grupos, massas, identificações com um público frequentemente cultivado em discursos sobre bem-estar, autocuidado, estilo de vida, não raramente imbuídos também de uma ideologia empresarial, neoliberal, com amplos nichos voltados à exploração do mercado, desde a especulação em ações ou bitcoins, estratégias de dropshipping, ou mesmo voltado à produção de conteúdo monetizável – o mindset empresarial revela-se na junção entre o coach e o influencer. Existem, evidentemente, influenciadores de outras vertentes, com algum nível de crítica ou mínima preocupação social, e até mesmo influenciadores abertamente da esquerda radical. 

Em uma cultura de reacts e opiniões terceirizadas, onde frequentemente ganha-se espaço apelando à estímulos imediatos com um curto tempo para captura da atenção — e da reação —, forma-se uma esfera de engajamento à conteúdos que parecem conceber o público como se fosse o próprio cachorro de Pavlov. Esse tipo de condicionamento produz, todavia, dinâmicas de identificação, e assim opiniões, gostos, expectativas, referência moral, identidades, ao ponto da própria mediação entre mundo interno e mundo externo (aquilo que Freud chamou, em algum momento, de ideal do Eu), serem afetadas pela dinâmica da digitalização. Porque trata-se de identificar-se com um leque de influenciadores e conteúdos disponíveis através de uma curadoria automatizada por algoritmos, que dadificam os usuários com a finalidade não só de conhecer, mas de antecipar seus gostos, interesses e desejos. E, quantificando para antecipar, acabam também os produzindo.

Nos identificamos com influenciadores, memes, diversas postagens, mas nos identificamos também com a estrutura abstrata: não só fala-se do algoritmo com o pronome possessivo – “o meu algoritmo” –, como condiciona-se o mesmo, delegando a informação de bom grado sobre si mesmo para “educá-lo”. Esse processo de “exteriorizar-se” em uma plataforma plana, achatada, em uma tela digital, é cada vez mais formativo e já notam-se impactos desde a educação infantil até as universidades. A subjetivação promovida pela hegemonia digital fomenta tanto a adultização de crianças quanto a infantilização de adultos, na medida em que seguimos nos (des)orientando pelo automatismo algorítmico de Big Techs que sugerem mesmo uma tutela da constituição subjetiva de cada um. Percebe-se um recrudescimento de faculdades básicas, mesmo a leitura breve de informações simples ou a capacidade de prestar atenção por mais de 15 segundos é prejudicada; o regime da empiria, da experiência pessoal, da “vivência”, torna-se o limite da verdade, e a “consciência crítica”, frequentemente reduzida a um progressismo liberal ingênuo, é terceirizada pelo influencer da vez. 

Não pretendo com esse texto equivaler e condenar de antemão todo e qualquer influenciador ou persona online, menos ainda dizer que todos os usuários estão condenados à imbecilidade e infantilização – quero apenas indicar tendências que parecem já despontar e produzir efeitos reais sobre todos nós. A digitalização, ao que tudo indica, iniciou também um processo inédito na história e na escala das relações de identificação, na psicologia de massas e mesmo na constituição subjetiva das atuais gerações, o que demonstra a sua radicalidade e a capacidade que tem de integrar e afetar distintos campos. Compreendermos o papel e a dinâmica da nova economia de influência nas plataformas digitais requer um esforço interdisciplinar. E regulamentar as plataformas torna-se um debate urgente de soberania nacional e de dados, mas também de saúde e segurança pública. 

Todavia, não devemos esquecer que o espaço onde existe o mercado da influência digital são pseudo-ágoras em shopping centers, onde a autopromoção segue tendências estéticas condicionadas pelo design das plataformas e pela retroalimentação do algoritmo. Essa palavra, inclusive, tão falada hoje, deveria sempre fazer-nos atentar para a sua existência real, não enquanto abstração diabólica, mas como código orientado por uma diretriz; diretriz de mercado, efetivado pelo propósito de oligopólios e seus acionistas, em um momento onde cada vez mais a separação absoluta entre economia e política mostra-se fictícia, no mínimo. Sendo assim, é fundamental interpretar “os algoritmos” como efeitos, tendências e diretrizes dos senhores das telas e dos dados, oligarcas do espaço digital – que não só extraem informação, mas regem a própria estrutura e política das plataformas (como demonstrou-se recentemente com o caso de exclusão do perfil de Jones Manoel, influenciador, historiador e militante comunista, que teve por alguns dias sua página excluída do Instagram sem qualquer justificativa ou motivo aparente). 

Nunca antes estivemos tão condicionados ao relevo de um território inimigo, na medida em que esse próprio relevo é controlado inclusive por dinâmicas automatizadas, delegadas a processos abstratamente determinados dos quais somos não simplesmente alienados, mas fundamentalmente separados por uma opacidade específica – mesmo um programador não consegue nem pode prever todos os efeitos de uma automatização algorítmica em larga escala, por questões que perpassam a própria incomensurabilidade dos dados e da automação operando em mundo real, mas também por questões relativas ao próprio processo de programação enquanto a matematização de comandos, e também de diretrizes, vieses e opiniões. 

(*) Cian Barbosa é flamenguista e morador do Rio de Janeiro. Bacharel em sociologia (UFF), doutorando em filosofia (UNIFESP) e psicologia (UFRJ), pesquisa teoria do sujeito, crítica da cultura, violência, tecnologia, ideologia e digitalização; também é integrante da revista Zero à Esquerda, tradutor e ensaísta, além de professor e coordenador do Centro de Formação.