Sexta-feira, 12 de dezembro de 2025
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“Este é um álbum que sonhei gravar por muito tempo. Tenho cantado esses temas natalinos desde muito pequena. Eles têm acompanhado a minha vida. Canções natalinas contam histórias ancestrais. São atemporais e duradouras”. Aqui a cantora começa a justificar o disco natalino que acaba de lançar.

“Apesar de eu, pessoalmente, não me filiar a nenhuma religião específica, acredito que o coração de toda fé religiosa tem de estar ancorado no amor e na compaixão, ou não serve a nenhum propósito. Para mim, a palavra ‘Cristo’ representa a divindade sagrada e misteriosa da vida, que poderia ser igualmente chamada ‘Buda’ ou ‘Alá’. As palavras da Bíblia, do Torá ou do Corão são frequentemente mal usadas para justificar pontos de vista que oprimem, dividem ou criam discórdia, em vez de engendrar empatia, harmonia e respeito pelo outro”, prossegue a cantora, na página 2 do encarte do CD.

“Desejo que as pessoas descubram uma perspectiva nova ouvindo A Christmas Cornucopia”. E assim Annie Lennox finaliza todo o malabarismo para explicar a existência de seu álbum religioso-natalino nas prateleiras da festa coletiva mais rentável do ano.

Reprodução

A rigorosa cantora escocesa está longe de ser a primeira a fazê-lo, e certamente não será a última. De John Lennon & Yoko Ono a nossa Simone, uma ampla galeria de músicos já tirou sua casquinha das crenças em Papai Noel e em seus rentáveis negócios natalinos. As explicações da coinventora da influente dupla new wave oitentista Eurythmics (extinta em 1990) são convincentes e provocativas. Mas se diluem em parte diante de versos indeléveis como “Jesus Cristo, nosso salvador, nasceu no dia de Natal/ Para salvar a todos nós dos poderes do Satã/ Quando nos desencaminhamos”, de God Rest Ye Merry Gentlemen, uma das 12 canções tradicionais do disco.

Tal retórica não faz muito sentido (ou faz?), se cotejada com a de Sweet Dreams (Are Made of This) (1983), dos Eurythmics: “Todo mundo está procurando alguma coisa/ Alguns querem usar você/ Alguns querem ser usados por você/ Alguns querem abusar de você/ Alguns querem ser abusados”.

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A Christmas Cornucopia tenta se destacar da multidão de discos natalinos empilhados ao longo da história da música gravada, rebelando-se por vezes contra formatos sublimados, como na mesma God Rest Ye Merry Gentlemen, polvilhada por sonoridades árabes. Mas não se destaca, a não ser pelas pequenas rebeldias textuais e musicais e pela seleção pouco óbvia de hinos (mais ou menos à maneira praticada há um ano por Bob Dylan, em seu morno álbum Christmas in the Heart). A única faix a mais manjada na empreitada de Annie é Silent Night, conhecida por aqui como Noite Feliz. Mas, no todo, A Christmas Cornucopia é tão comportado e enfadonho quanto grande parte da curiosa galeria de devotos do pop natalino.

De Elvis a James Brown

O formato é tão velho quanto a história do próprio “long play” – um dos pioneiros na matéria foi o bom moço mau Elvis Presley, que fez seu Elvis’ Christmas Album no longínquo 1957. O “rei” rebelde do rock repetiria a jornada 14 anos mais tarde, no edulcorado (e tristonho) Elvis Sings the Wonderful World of Christmas.

 Corações e mentes foram conquistados para Papai Noel em 1963 por Phil Spector, que ganharia passaporte para a eternidade ao produzir o canto de cisne dos Beatles, Let It Be (1970). No disco coletivo A Christmas Gift for You from Phil Spector, temas como White Christmas eram interpretados por nomes da nascente cena soul music, como The Ronettes, The Crystals e Darlene Love.

A Motown, meca da música negra norte-americana mais afetuosa, viraria uma verdadeira fábrica de bolas natalinas em formato de bolachões de vinil. Visitariam o formato Diana Ross & The Supremes (em Merry Christmas, de 1965), Stevie Wonder (Someday at Christmas, 1967), The Temptations (The Temptations’ Christmas Card, 1970), Smokey Robinson & The Miracles (The Season for Miracles, 1970) e o Jackson Five de Michael Jackson (Jackson Five Christmas Album, 1970), entre outros. Todos tinham o suingue e a alma dolorida a seu favor, mas faziam uma espécie de rodízio, martelando hinos inescapáveis como Santa Claus Is Coming to Town, White Christmas, The Little Drummer Boy, Rudolph the Red-Nosed Reindeer, Silver Bells, Twinkle Twikle Little Me, Frosty the Snowman

Interessado em legitimar e positivar o funk e a dignidade afrodescendente na “terra da liberdade” branquinha como neve, James “sex machine” Brown desempenhou papel à parte, injetando agressividade e punch numa sequência de trenós musicais: James Brown and His Famous Flames Sing Christmas Songs (1966), A Soulful Christmas (1968) e Hey America – Christmas (1970). Curiosamente, foi no segundo volume da trilogia que apareceu, perdido ali pelo meio, um tema que não tinha nada a ver diretamente com o aniversário de Jesus Cristo, mas que desempenharia papel fundamental na construção do espírito “black power”/“black is beautiful”: Say It Loud (I’m Black and I’m Proud), ou seja, “diga alto, sou preto e tenho orgulho”.

Espírito conservador

Em 1971, John & Yoko tentaram fundir espírito natalino e pacifismo, no mantra “a guerra acabou” de Happy Xmas (War Is Over) (ou Então É Natal, ao gosto tropical de Simone, de 1995 para cá). “Sir” Paul McCartney só foi ficar ciumento oito anos depois, quando compôs Wonderful Christmastime e regravou, ao lado, a onipresente Rudolph the Red-Nosed Reindeer.

A essa altura, o pop de Natal se esparramava por todo lado, do glam rock e do heavy metal (como em Merry Xmas Everybody, 1973, da banda Slade) ao reggae-funk-soul-pop-caribenho-alemão-etc. do Boney M. (Feliz Navidad, 1982, assim mesmo, em espanhol).

Na entrada da segunda década do século XXI, o Natal parece ser valor em processo de recuperação pelo espírito conservador da “nobreza” anglo-saxã, representada pelas vozes hoje aristocráticas de Bob Dylan, Annie Lennox e… Lady Gaga. Pois essa última, egressa de colégio de freiras da elite nova-iorquina, lançou em 2008 Christmas Tree, um electropop de inspiração marcial/militar que alfineta: “O lugar onde você quer estar é debaixo da minha árvore de Natal (…)/ Vamos tirar nossas roupas (…)/ Minha árvore de Natal é deliciosa”.

*Pedro Alexandre Sanches é jornalista e crítico musical. Escreve no Opera Mundi e no seu blog pessoal.

Annie Lennox e a curiosa galeria do pop natalino

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