Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Anistia, do grego “amnestia”. Esquecimento.

É difícil esquecer quando se sabe quem fez o quê no verão passado.

Não, não estou falando dos bolsonaristas e da extrema direita. Falo da direita limpinha, dessa gente fina, elegante e sincera. Falo dessa massa cheirosa que acredita que seus perfumes caros podem disfarçar o mau cheiro das coisas fétidas que vem produzindo ao longo da história brasileira. Então, quando no mesmo dia os editoriais de Folha de São Paulo, O Globo e O Estado de São Paulo dizem que não aceitam que o candidato do mercado trabalhe pela anistia dos golpistas, acabo lembrando de tantas coisas…

É difícil esquecer que a bolsa e o dólar não se abalaram com o segredo de liquidificador de que há uma simbiose entre o coração financeiro do país e a maior organização criminosa que já cresceu por essas bandas. Haveria de haver alguma turbulência? “Claro que não”, assim como já havia acontecido antes, quando por 19 anos (entre 1831 e 1850) o fato de o tráfico transatlântico de escravizados continuar em franca operação apesar de ser legalmente proibido não gerava qualquer constrangimento. Esses traficantes eram marginais mesmo para as leis de um país que permitia a escravidão. No entanto, os salões políticos, culturais ou comerciais lhes estavam franqueados para que flanassem como se cidadãos comuns fossem. (E eram né? Quem não era cidadão comum eram os assenzalados.)

Os abolicionistas já vaticinaram: a escravidão deixará mazelas que persistirão por séculos após seu fim. Os indicadores socioeconômicos da população negra e os números da violência policial indicam o acerto da previsão.

Poderíamos dizer o mesmo em relação ao latifúndio, outro pilar do sistema produtivo do Brasil colonial e imperial. Quanto tempo até que as pequenas propriedades agrárias possam gerar frutos não apenas em termos agrícolas, mas também sociais, econômicos e políticos?

Não sei dizer. Mas o que sei, o que não esqueço, é que quando o Brasil ficou urbano, à necessidade de uma reforma agrária se somou a da reforma urbana. O que não posso olvidar é que o presidente que decidiu enfrentar esse problema foi golpeado.

“Ah, mas isso tudo é muito antigo, precisamos pacificar o país e não o podemos fazer com todo esse rancor”, poderão dizer alguns. Passemos, pois, adiante.

Durante a Constituinte, as forças liberais se opuseram a todos os direitos econômicos e sociais. Disseram que o país quebraria, que geraria desemprego. Desde então vêm tentando a todo custo desmontar o sistema público de saúde e a educação pública. Daí, veio a pandemia. Todos vestiram o jaleco do SUS e enalteceram os centros públicos que pesquisaram e desenvolveram tecnologias e vacinas que mitigaram os planos genocidas do presidente que os liberais colocaram no Planalto.

Bolsonaro é fruto legítimo de 2013, e o que fizeram esses liberais em 2013 e em toda a crise que sucedeu aqueles protestos? Vamos relembrar.

A mídia oligopolista que esses dias, em uníssono, condenou as manobras de Tarcísio em favor da anistia dos golpistas, é a mesma que insuflou a revolução colorida de 2013. “O Brasil acordou”, teriam dito os principais veículos de comunicação. Depois, foram cúmplices do golpe de 2016. Apoiaram a agenda ultraliberal de Temer, agenda essa que em todos os lugares e em todas as épocas sempre foi o prelúdio da ascensão das hordas fascistas.

Verdade seja dita, em 2018, a Globo – que depois de 50 anos pediu desculpas por ter confundido um golpe militar com o ressurgimento da democracia – e a Folha – aquela da “ditabranda” – não foram entusiastas da candidatura de Bolsonaro. O mesmo não se pode dizer do Estadão, para quem o Brasil estava diante de “uma escolha muito difícil”. Verdade seja dita, o jornal estava afinado com o grande capital brasileiro.

É bom que se lembre. Em 2018 a Confederação Nacional da Indústria promoveu um debate entre os presidenciáveis. Na plateia, metade do PIB. O capitão reformado foi ovacionado. Ao final, Robson Andrade, à época presidente da CNI, disse que o empresariado não teria nenhuma razão para temer Bolsonaro. (Depois das 700 mil mortes e de pedido por sanções às exportações brasileiras, será que ele se arrepende da frase?)

Mas tudo bem, vamos passar uma borracha sobre isso. Vamos esquecer isso. Tratemos do presente.

Supremo Tribunal Federal iluminado em homenagem à Semana da Pátria, em setembro de 2024
Antonio Augusto/STF

O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Visando diminuir as desigualdades, o governo Lula propôs uma reforma no imposto de renda: isentar quem ganha até 5 mil reais mensais e tributar quem ganha mais de 50 mil mensais. Impedidos de simplesmente gritar contra subir o teto da isenção, os liberais – com raríssimas exceções – defendem que isso seja feito às custas de programas sociais, desvinculações e outros eufemismos e malabarismo retóricos que, no fim do dia, significam jogar nas costas dos pobres a isenção dos não tão pobres.

Outra pauta que poderia contribuir para que o Brasil não seja tão hostil aos trabalhadores é o fim da jornada 6×1. Embora já uma realidade em diversos países e encampada por setores ilustrados do empresariado nacional, novamente, a velha cantilena de que isso vai quebrar o país, isso vai gerar desemprego blá, blá, blá.

Essas três pautas – isenção dos mais pobres, taxação dos mais ricos e fim da escala 6×1 – são as principais bandeiras minimante de esquerdas presentes hoje no cenário político e econômico. Mais do que isso: são o ponto de partida para pensarmos em combater a desigualdade e darmos à base da pirâmide condições viver, e não só trabalhar. Apesar disso, essas pautas enfrentam séria oposição do patronato e da mídia.

Para além da questão civilizacional, para os que se apresentam como liberais de esquerda (sic) ou como uma direita ilustrada (sic) – ou seja, esses setores que adoram criticar a tal da polarização, que estão entre o bolsonarismo e o petismo –, há duas razões para apoiarem essas três pautas. Uma razão é estratégica: a extrema direita se alimenta da precarização. A outra é tática: como já foi provado, apenas Lula tem musculatura eleitoral para vencer o bolsonarismo.

E aqui caem os véus. Aqueles que se dizem incomodados com a polarização desejariam com todas as forças um bolsonarismo moderado (sic). Tudo o que mais desejam Faria Lima, CNI, Febraban e mídia oligopolista é alguém que defenda sua agenda ultraliberal e que tenha competitividade eleitoral e capilaridade social, mas que tome vacina, saiba segurar talheres e não fique hora sim, hora também dizendo que vai fechar o Supremo. Embora poucos sejam os que, como certo articulista, têm a coragem de anunciar isso em voz alta, esse é o desejo desses setores. O fato é que isso inexiste, afinal, Bolsonaro conseguiu a proeza de dar competitividade eleitoral a uma pauta que, apresentada por outros personagens, não chega a dois pontos em nenhuma pesquisa.

Esse é o dilema de Sofia que a cúpula do empresariado e a mídia oligopolista enfrentam: tolerar a extrema direita como único remédio contra a esquerda ou tolerar a esquerda como único remédio contra a extrema direita? Não sabendo como se decidir, batem no governo quando esse encapa propostas de esquerda e batem nos candidatos de direita que buscam se apoiar nos votos do bolsonarismo. Não aceitam que a esquerda combata as desigualdades e não aceitam que o bolsonarismo tente salvar os golpistas da condenação. Em ambos os casos, querem impedir que a esquerda e extrema direita sejam o que elas são. Na falta de votos, querem impedir que esquerda e extrema direita realizem os projetos delas para realizarem o da direita limpinha. E qual é esse projeto? Se bem me lembro do governo Temer é entregar o sangue do trabalhador brasileiro na bacia das almas contando, para tal, com o apoio do Parlamento, dos militares, do Supremo, com tudo.

Não sei se pelo fato de o personagem principal da extrema direta ser um capitão ou se pelo utilitarismo desavergonhado desses setores, mas o fato é que lembrei de uma cena do filme Tropa de Elite. Quando o coronel Fábio (Milhem Cortaz) ficou sabendo que o sargento Edivan (Sandro Rocha) assassinou o traficante que alimentava um de seus esquemas, Fábio disse mais ou menos assim: quer me fornicar, me beija.

Tá na hora de a direita limpinha começar a beijar. Mas pelas minhas lembranças, pelas coisas que não esqueci, que não anistiei, fico na dúvida: qual lado será beijado?