A utilidade das guerras dos EUA para a Al-Qaeda
A utilidade das guerras dos EUA para a Al-Qaeda
Os estrategistas da Al-Qaeda têm ajudado os talibãs em suas lutas contra as forças dos EUA e da OTAN no Afeganistão porque acreditam que a ocupação estrangeira constitui o fator mais importante na hora de criar apoio muçulmano aos levantes contra seus governos, segundo o recém-publicado livro de Syed Saleem Shahzad, o jornalista paquistanês cujo corpo foi encontrado em um canal na periferia de Islamabad com sinais de tortura.
Esse ponto de vista da Al-Qaeda sobre a guerra dos EUA e da OTAN no Afeganistão, sobre o qual Shahzad escreve em um livro elaborado a partir de conversas com vários comandantes de alto escalão da rede terrorista, representa o testemunho mais autorizado do pensamento da organização já divulgado ao público.
O livro, Inside Al-Qaeda and the Taliban (Por dentro da Al-Qaeda e do Talibã), foi publicado em 24 de maio, apenas três dias antes de o autor desaparecer quando se dirigia a uma emissora de televisão em Islamabad para dar uma entrevista. Seu corpo foi encontrado em 31 de maio.
Divulgação

Shahzad, chefe da sucursal no Paquistão do Asia Times Online, com sede em Hong Kong, tinha canais exclusivos para chegar aos altos comandantes e quadros da Al-Qaeda, assim como às organizações de talibãs afegãos e paquistaneses. Seus relatos sobre a Al-Qaeda são especialmente valiosos por conta do pensamento estratégico e do sistema ideológico que surgiam dos muitos encontros que Shahzad manteve com membros de alto escalão ao longo de vários anos.
Os relatos de Shahzad revelam que Osama bin Laden era uma “figura de proa” para consumo público, enquanto o Dr. Ayman Zawahiri era quem formulava a linha ideológica da organização ou idealizava os planos operacionais.
Shahzad resume que a estratégia da Al-Qaeda consistia em “vencer a guerra contra o Ocidente no Afeganistão” antes de passar a lutar na Ásia Central e Bangladesh. Ele acredita que a Al-Qaeda e seus aliados militantes no norte e no sul do Waziristão transformaram as zonas tribais do Paquistão na principal base estratégica da resistência talibã às forças dos EUA e da OTAN.
Mas o relato de Shahzad deixa claro que o objetivo real da Al-Qaeda de reforçar a luta dos talibãs contra as forças dos EUA e da OTAN no Afeganistão resultava da ideia de que a ocupação era condição indispensável para o êxito da estratégia global da Al-Qaeda de polarizar o mundo islâmico.
Shahzad escreve que os estrategistas da Al-Qaeda estavam convencidos de que seus ataques terroristas do 11 de Setembro provocariam uma invasão norte-americana do Afeganistão, o que por sua vez causaria uma “firme reação muçulmana” de âmbito mundial. Essa “firme reação” era especialmente importante para aquilo que, no relato de Shahzad, aparece como o objetivo primordial da Al-Qaeda: estimular as revoltas contra os regimes dos países árabes.
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Shahzad revela que a estragégia pós-ataques terroristas do 11/9 e as grandes ambições da Al-Qaeda de reestruturar o mundo muçulmano vinham do “campo egípcio” de Zawahiri, dentro da organização. Este grupo, sob a liderança de Zawahiri, já havia estabelecido uma visão estratégica em meados de 1990, segundo Shahzad.
A estratégia do grupo de Zawahiri, de acordo com Shahzad, era “falar claro contra os corruptos e despóticos governos muçulmanos e transformá-los em alvos para destruir sua imagem aos olhos das pessoas comuns”. Eles pretendiam, contudo, alcançar esse objetivo vinculando esses regimes aos Estados Unidos.
Em uma entrevista de 2004 citada por Shahzad, um dos colaboradores de Bin Laden, o dirigente opositor saudita Saad al-Faqih, afirmou que, no final dos anos 1990, Zawahiri havia convencido Bin Laden a aproveitar a mentalidade de “caubói” dos EUA colocando-se na condição de inimigo implacável e “fazendo com que os muçulmanos desejassem um líder que pudesse desafiar o Ocidente com sucesso”.
Shahzad deixa claro que as ocupações norte-americanas do Afeganistão e do Iraque representavam o principal marco que a Al-Qaeda podia obter. Os eruditos religiosos muçulmanos haviam emitido decretos para a defesa das terras muçulmanas frente a ocupantes não-muçulmanos em muitas ocasiões antes da guerra dos EUA e da OTAN no Afeganistão, observa Shahzad.
No entanto, uma vez que esses decretos religiosos se estenderam ao Afeganistão, Zawahiri pode explorar o tema da ocupação norte-americana dos territórios muçulmanos para organizar uma “insurgência muçulmana” de alcance mundial. Essa estratégia dependia do poder de provocar a discórdia dentro das sociedades, desacreditando seus regimes em todo o mungo muçulmano a partir da ideia de que não eram realmente muçulmanos.
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Shahzad escreve que os estrategistas da Al-Qaeda tinham consciência de que os regimes muçulmanos – especialmente o da Arábia Saudita – haviam tentado ativamente pôr fim em 2007 às guerras no Iraque e no Afeganisão, por temer que, se elas continuassem, “não haveria como deter as revoltas e revoluções islâmicas nos países muçulmanos”.
O que os dirigentes da Al-Qaeda mais temiam, segundo o relato de Shahzad, era qualquer movimento dos talibãs em direção a um possível acordo negociado, ainda que se baseasse em uma retirada total das tropas norte-americanas. Os estrategistas da Al-Qaeda avaliaram o primeiro “diálogo” com os talibãs afegãos patrocinado pelo rei saudita em 2008 como um complô norte-americano extremamente perigoso, algo sem nenhuma prova por parte dos EUA.
O livro de Shahzad confirma evidências anteriores de divergêncais estratégicas fundamentais entre os líderes talibãs e a Al-Qaeda.
Essas diferenças surgiram em 2005, quando o mulá Omar enviou uma mensagem a todas as facções no norte e no sul do Waziristão para que abandonassem outras atividades e unissem suas forças às dos talibãs no Afeganistão. E quando a Al-Qaeda declarou o “juruj” (levante popular contra um governante muçulmano por seu governo contrário ao Islã) contra o Estado paquistanês em 2007, Omar opôs-se à essa estratégia, embora buscasse ostensivamente impedir os ataques norte-americanos contra os talibãs.
Shahzad informa que um dos objetivos da Al-Qaeda ao criar os talibãs paquistaneses no início de 2008 era “tirar os talibãs afegãos da influência do mulá Omar”.
O relato de Shahzad rechaça as razões oficiais do exército norte-americano para a guerra no Afeganistão, baseadas na suposição de que a Al-Qaeda estava fundamentalmente interessada em fazer com que as forças dos EUA e da OTAN saíssem do Afeganistão e de que os talibãs e a Al-Qaeda estavam intimamente ligados em termos ideológicos e estratégicos.
O livro de Shahzad mostra que, apesar das relações de cooperação com o ISI paquistanês no passado, os dirigentes da Al-Qaeda concluíram depois do 11/9 que o exército paquistanês se transformaria inevitavelmente em um sócio incondicional dos EUA na “guerra contra o terror” e se voltaria contra a Al-Qaeda.
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A relação não se desfez imediatamente depois dos ataques terroristas, segundo Shahzad. Ele escreve que o chefe do ISI, Mehmud Ahmed, garantiu à Al-Qaeda, quando visitou Kandahar em setembro de 2001, que o exército paquistanês não atacaria a organização enquanto esta não atacasse o exército.
Ele também informa que o presidente paquistanês Pervez Musharraf manteve uma série de encontros com vários líderes de alto escalão jihadistas e religiosos e lhes pediu que mantivessem um perfil discreto durante cinco anos, garantindo-lhes que a situação mudaria depois desse período. Segundo o relato de Shahzad, no início, a Al-Qaeda não tentou lançar uma jihad no Paquistão contra o exército, mas não teve outra opção quando o exército paquistanês posicionou-se ao lado dos EUA contra os jihadistas.
O ponto de inflexão mais importante ocorreu em outubro de 2003, quando um helicóptero militar paquistanês atacou o norte do Waziristão, matando vários combatentes. Em dezembro de 2003, em uma aparente vingança, houve dois atentados contra Musharraf, ambos organizados por um militante que, segundo Shahzad, colaborava intimamente com a Al-Qaeda.
No entanto, em sua última entrevista com The Real News Network, Shahzad pareceu contradizer esse relato, afirmando que o ISI havia informado erroneamente a Musharraf que a Al-Qaeda estava por trás dos atentados, e inclusive que houve algum envolvimento no complô por parte da Força Aérea paquistanesa.
*Gareth Porter é historiador e jornalista do Inter-Press Service, especializado em temas de política de segurança nacional dos EUA. A edição em brochura de seu último livro, Perils of Dominance: Imbalance of Power and the Road to War in Vietnam, foi publicada em 2006. Artigo originalmente publicado no Rebelión.
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