A rebelião homossexual de Stonewall aconteceu em 1969, no epicentro de um período histórico de ampla reivindicação de direitos civis nos Estados Unidos. Desde então, passaram-se mais de 40 anos até que o país que venera a Estátua da Liberdade aceitasse assimilar completamente um artista como Ricky Martin e um videoclipe como “The Best Thing About Me Is You”.
Artista pop de origem porto-riquenha, nascido dois anos depois de Stonewall, ex-integrante da boy band Menudo, Ricky demorou, ele próprio, 38 anos de vida até sair publicamente do armário e se revelar gay diante de uma multidão planetária de fãs. Fez isso no ano passado, num lance combinado com a publicação de Eu, sua autobiografia. Neste ano, lançou o CD Música + Alma + Sexo, seu primeiro de músicas inéditas em seis anos e o primeiro trabalho musical como homem artista homossexual assumido (e pai de dois filhos pequenos).
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“The Best Thing About Me Is You” é uma balada pop ligeira, interpretada no disco em dueto com a cantora branca loura de soul Joss Stone, e no vídeo apenas por Ricky. A prumada é de reivindicação de direitos civis à moda dos anos 1960, com origem nitidamente fincada na questão gay, mas indo bem além dela.
Começa com a proclamação embaralhada de uma série de valores narrados por uma voz em off e simultaneamente manuscritos na tela – amor, igualdade, injustiça, inocência, malícia, refúgio, opressão, liberdade. Sincronizado com o termo “liberdade”, Ricky
arranca uma mordaça que tapava desde o início sua boca. Alude evidentemente ao poder libertador de se exibir em público sob identidade inteira, verdadeira, completa. “Você e eu somos iguais”, diz a seguir a voz narradora, desejosa de manter e fortalecer os laços entre o ídolo e cada um de seus fãs.
Embaralham-se, vídeo adentro, imagens de casais gays e heterossexuais, crianças, negros, louros, bebês, muçulmanos, judeus, rastafáris, jovens cobertos de tatuagens e piercings, japoneses, grávidas, góticos, e assim por diante. Em 2011, tempo de revoluções populares no Oriente Médio e marchas da liberdade na América Latina, direitos civis são o tema da hora mais uma vez, 40 ou 50 anos após Stonewall e hippies, feministas e Martin Luther King.
É engraçado, e algo trágico, perceber o contragosto norte-americano na adesão ao espírito do tempo e à temática: até trios sexuais são sugeridos no vídeo (duas mulheres e um homem, dois homens e uma mulher, três homens…), mas a estética geral é limpa, pasteurizada, forçosamente jovem. Gays, mulheres e negros conquistam seus direitos, mas não, ainda, gente idosa ou de meia-idade.
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É difícil dimensionar o tamanho da rota de colisão entre Ricky e o sistema hollywoodiano-republicano de valores que sempre o embalou. Por um lado, diz-se que o ex-Menudo não está mais no auge de sua carreira, e que a própria decadência permite amolecer cadeados antes bem azeitados. Por outro lado, Ricky impõe seu próprio idioma à sempre protecionista cultura ianque – somente “The Best Thing…” e mais duas das 12 canções do disco são cantadas em inglês (o espanhol prevalece, soberano, e o português brasileiro aparece em “Samba”, levada em duo com a loura baiana Claudia Leitte).
Entre adições e subtrações, as imagens domesticadas e pasteurizadas do vídeo correspondem às que o “decadente” Ricky Martin vive em sua intimidade e impõe profissionalmente à multinacional Sony, entre porto-riquenhos, muçulmanos e brasileiros. Quem é mesmo que está decadente?
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