Sábado, 6 de dezembro de 2025
APOIE
Menu

Desde o anúncio do acordo de cessação de hostilidades, descontinuando a fase mais robusta da política social genocida contra o povo palestino realizada pelo Estado sionista, em 13 de outubro de 2025, foi iniciada na mídia main stream e nos canais independentes da rede mundial de computadores uma discussão acerbada. Esta tem como ponto central a polêmica sobre a possibilidade desta nova pactuação ser efetiva ou simplesmente mais um passo na longa caminhada pela sobrevivência dos habitantes originais da Palestina. A falsa sensação de que foi criado um mecanismo de paz duradouro se deu devido ao fato de que no encontro que selou o acordo, no balneário de Sharm el Sheik, Egito, Donald Trump, Abdul Fatah al-Sisi, Recep Tayyip Erdogan e o emir do Catar, Tamim bin Hamad Al Thani, assinaram um documento que segundo o presidente norte-americano abriria uma “nova” fase da História do Oriente Médio e poria fim a mais de três mil anos de conflitos. A cerimônia foi presenciada por outros cerca de vinte governantes e, bizarramente, as partes diretamente envolvidas não estiveram presentes.

Tal situação nos obriga à reflexão dentro do quadro analítico que estamos avaliando desde outubro de 2023 em 25 artigos publicados anteriormente neste Opera Mundi. Nestes tomamos como pressuposto que o que ocorre na Faixa de Gaza, na Cisjordânia, no Estado sionista, nos Estados Unidos da América, Europa Ocidental e no Oriente Médio em geral, é produto de um processo de execução de uma política social genocida e que esta deve ser vista como um “sistema” de relações econômicas, políticas, ideológico-culturais e sociais. Por este ângulo, não faz sentido considerar apenas que após dois anos exatos (coincidência?), desde o início da política social genocida até a pactuação, a destruição da Faixa de Gaza e a ocupação brutal dos colonos sionistas na Cisjordânia estaria encerrada. O que o acordo assinado no Egito trouxe foi apenas a diminuição da intensidade da aplicação da política social genocida contra o povo palestino na Faixa de Gaza, mas não na Cisjordânia. O Líbano e a Síria também sofrem impactos diretos desta ação dos sionistas após fevereiro de 2025.

Palestinos deslocados durante sua jornada de volta a Gaza e ao norte pela Rua Al-Rasheed, atravessando a ponte sobre o estuário do Wadi Gaza. <br> (Foto: Ashraf Amra / United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugees in the Near East)

Palestinos deslocados durante sua jornada de volta a Gaza e ao norte pela Rua Al-Rasheed, atravessando a ponte sobre o estuário do Wadi Gaza.
(Foto: Ashraf Amra / United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugees in the Near East)

Esta paralisação da fase mais aguda de agressões poderia ter ocorrido em janeiro deste ano, e de fato o Estado sionista cessou (temporariamente) os bombardeios, principal manifestação àquela altura da política social genocida. Isto produziu cenas memoráveis da população da cidade de Gaza retornando em massa do sul do enclave, onde estava temporariamente abrigada. Este episódio ocorreu devido ao fato de uma nova administração ter iniciado nos Estados Unidos da América e o Estado sionista ter sido obrigado a respeitar uma espécie de ritual de aguardo do início dos comandos que seriam emitidos pelos novos governantes e administradores norte-americanos sobre o que fazer na Palestina. O que não está claro é o porquê dos bombardeios e a nova tentativa de ocupação selvagem da Faixa de Gaza terem reiniciado em março de 2025. A primeira fase do acordo firmado sob a chancela do presidente Donald Trump, em 4 de fevereiro de 2025, foi cumprido: libertação dos cativos sionistas e dos cidadãos palestinos presos de forma ilegal. A segunda fase do plano, que previa o início de um processo de gentrificação da Faixa de Gaza e a formação de um governo no enclave sem a participação dos habitantes locais, jamais foi posta em prática. O projeto elaborado e divulgado histrionicamente era voltado principalmente para a cidade de Gaza, destinada para a construção de zonas residenciais e comerciais, além da infra-estrutura para processamento da produção off shore de gás que pertence ao povo palestino. Parecia que o plano de transformar o enclave numa zona de habitações de luxo, de atividades econômico-financeiras e de lazer para consumidores com alto poder de compra seria um devaneio a mais na coleção de análises e propostas hilárias que o governante máximo norte-americano não se cansa de produzir.

Por algum motivo não esclarecido, mas plenamente inscrito no interior da correlação de forças de todos os países envolvidos, foram reiniciados os bombardeios aéreos contra a população civil indefesa e sem abrigo. Os sionistas também retornaram a agressão contra a população da Cisjordânia com mais força, desrespeitaram o acordo com o Líbano firmado em novembro de 2024 bombardeando o sul do país e matando cidadãos libaneses a esmo, iniciaram a invasão do território sírio após 8 de dezembro do ano passado, declararam (e perderam) a guerra de doze dias contra o Irã foi (entre 13 e 24 de junho) com pleno apoio externo e, finalmente, por várias vezes o Iêmen foi bombardeado.

No início do corrente ano também houve uma espécie de parada estratégica do Estado sionista para recompor a correlação de forças internas para fins de reencontrar o caminho do “macro-genocídio” a que fora obrigado a interromper pelo governo norte-americano. O intervalo de cerca de dois meses na aplicação da política social genocida contra o povo palestino recarregou as baterias desgastadas do Estado sionista, o que ajudou a cumprir várias funções de ajuste na correlação de forças e na capacidade narrativa dos que governam o país agressor. Este interregno foi uma espécie de preparo para o retorno do “macro-genocídio” pois: a) contentou e amenizou a oposição interna ao liberar um número razoável de cativos; b) permitiu ao Estado sionista apurar sua inteligência no campo e tentar determinar com precisão os locais onde os túneis estavam localizados no sub-solo de Gaza; c) ajudou a recompor logísticas no fornecimento de bens e serviços e reforçou fontes de financiamento; d) testou a coalização de poder que sustenta o atual governo sionista (esta foi rompida após o acordo de paz de fevereiro, provocando a saída de ministros de extrema-direita do governo mas a coalizão não deixou de dar sustentação ao primeiro-ministro sionista); e) localizou com melhor precisão a natureza da orientação do novo governo norte-americano, informando aos governantes do Estado sionista quais pontos e grupos de pressão que ainda estariam à disposição para defender seus interesses.

Assim, passados oito meses desde o reinício do “macro-genocídio” as negociações indiretas entre o Estado sionista e a resistência palestina alcançaram um novo acordo. Seus termos não são diferentes dos vários que foram colocados anteriormente sobre a mesa de negociação em outras oportunidades. A posição refratária do Estado sionista a qualquer tipo de compromisso com a cessação da sua orientação genocida chegou mesmo a atentar contra a vida dos negociadores da resistência palestina que estavam a postos para realizar as negociações em Doha, Catar, em 9 de setembro de 2025. Esta ação, conjugada entre o Estado sionista e seu principal mantenedor, os Estados Unidos da América, ocorreu poucas semanas antes da assinatura do acordo que atualmente vige. O ataque sofisticado com mísseis lançados em direção ao sítio onde os negociadores se localizavam criou uma crise sem precedentes na percepção dos países do Oriente Médio sobre o papel do Estado sionista, já que o Catar é um país tão alinhado com a orientação norte-americana para o Oriente Médio tanto quanto o próprio Estado sionista. O mal-estar e a decepção dos países árabes que suportam a ação norte-americana e a de seu preposto ainda não podem ser mensurados. De qualquer forma, o episódio demonstrou (mais uma vez) que existe uma consorciação figadal entre os atacantes, já que os EUA tinham condições de intervir no ataque já que possui no Catar a sua maior base militar do Oriente Médio, contando com equipamentos de defesa contra ataques aéreos. Esta disposição para o ataque (do Estado sionista com apoio dos EUA) junto com a indisposição de defesa dos EUA é a prova de que os dois países possuem posição firmada contra todos os países árabes/muçulmanos do Oriente Médio, não importando qual a posição que estes assumam.

A oposição a qualquer tipo de acordo (e o não cumprimento dos que foram firmados) é a regra da conduta do Estado sionista; a exceção foi a aceitação deste procedimento. Isto faz com que tenhamos que analisar o complexo contexto que se abriu com o novo acordo considerando que a regra foi e está (ao menos no momento) dominada no momento pela exceção.

Por que a resistência em cessar a política social genocida? Da mesma forma, por que repentinamente esta foi estancada? Os elementos que explicam estas duas situações estão longe de estarem claros no presente momento e talvez nunca sejam totalmente elucidados quais motivos levaram à mudança repentina de posição tanto do mentor imperialista quanto do preposto sub-imperialista. Alguns termos podem ser alinhados para dar luz ao novo contexto. O primeiro foi o grave esgotamento e divisão política da sociedade civil sionista; esta não deixou, em sua maioria, de apoiar o que se passava em Gaza, ignorando solenemente o sofrimento do povo palestino. Seu primeiro e quase exclusivo objetivo era fazer a extração dos reféns do cativeiro. Tal stress foi metabolizado de forma direta, pelos parentes e amigos dos cativos, e indireta, pela sociedade civil sionista laica. Ela tentava evitar a formação de um ethos de fraqueza de suas convicções fantasiosas que os sionistas alimentam desde sempre sobre a legitimidade do processo de ocupação de um território que não lhes pertence. A longa permanência dos cativos sionistas da Faixa de Gaza ensejou um sentimento desconfortável nos sionistas laicos: introduziu uma impotência, a sensação de perda do controle da situação e insegurança que incidem nas convicções sobre a natureza da sua sociedade. Este desconforto emocional dificultava lidar com suas dúvidas e fraquezas – ocultadas por décadas de massacre contra o povo palestino convivendo com o ocultamento socialmente legitimado desta situação -, em meio a uma situação que não era nova (lembremos que o soldado Gilad Shalit foi cativo entre 2006 e 2011) mas inusitada pelo número e extensão social dos envolvidos. Todos os cativos pertenciam aos judeus laicos, daí a sensação de isolamento e insegurança ter sido amplificada, por medo de que os judeus religiosos que ocupam o poder há décadas terem abandonado a sua causa. Esta situação de debilidade foi captada e construída brilhantemente pelo governo sionista no imediato 7 de setembro de 2023, quando elaborou a palavra de ordem de que os episódios daquele dia punham o Estado sionista sob uma “ameaça existencial”. Mesmo não concordando com as orientações do seu governo, a oposição política da sociedade civil laica incorporou esta palavra de ordem numa dimensão emocional crucial para justificar seu apoio ao projeto sionista. Por outro lado, o desinteresse do governo em colocar a libertação dos cativos que estavam na Faixa de Gaza catapultou os cidadãos laicos para uma crise existencial ainda maior: a sua crise tornou-se dupla, em relação a situação dos cativos e em relação ao posicionamento da política governamental. Daí a pressão sobre o governo para reverter esta situação, priorizar o fim do conflito e criar as condições do retorno dos cativos, tornou-se a única agenda possível para aplacar suas mágoas!

Não acreditamos que quaisquer empecilhos materiais (economia em crise por fuga de investimentos, destruição da infra-estrutura, escassez de bens e serviços, dificuldades logísticas de importação ou exportação de mercadorias) ou inibição grave da reprodução da vida social tenham influenciado a decisão do governo. O acordo de fevereiro de 2025 foi imposto de fora para dentro e tem sido reelaborado internamente como meio de mais uma vez ser um restart para recolocar a máquina opressiva do sionismo a um nível de operação máximo. Agora o sionismo já conta com os resultados catastróficos sobre a vida social da Faixa de Gaza que a destruição da sua infra-estrutura e de parte significativa da sua demografia causou. Nesta nova conjuntura, a da prevalência do “micro-genocídio”, os empecilhos a serem criados para evitar a reconstrução física da infra-estrutura será a forma material da continuidade da política social genocida.

Além do visto acima, devemos considerar que os planos megalômanos do presidente norte-americano, tornados públicos por meios de divulgação utilizando inteligência artificial em fevereiro de 2025, podem em alguma medida serem implementados. Em outubro de 2025 mais de cinquenta por cento do território do enclave quedavam sob controle direto do poder militar sionista. Esta situação de vantagem no terreno dá ao sionismo interno a possibilidade de fazer com maestria algo que sempre praticaram: administrar o tempo para que melhores condições surjam para executar algum plano de ação, seja ele qual for. Ocupar a Faixa de Gaza com interesses norte-americanos ou com novas colônias de fanáticos sionistas religiosos, ocupar o sul da Síria ou do Líbano com a mesma intenção colonizadora, ameaçar todos os países ao seu alcance com retaliações caso não se alinhem aos interesses do Estado sionista, etc., são objetivos que não são incompatíveis uns com os outros e até se alimentam mutuamente. Esta é, enfim, a execução do sionismo externo, uma projeção para o mundo exterior do sionismo interno e com ele interagindo dinamicamente.

Externamente vários fatores também contribuíram para o fim de bombardeios. Um deles é a política interna norte-americana. Além das posições absolutamente randômicas que o chefe de Estado não se cansa de pronunciar, o consenso interno sobre o apoio que o país fornece ao Estado sionista está sendo questionado em escala ascendente. O mesmo pode ser dito entre os demais países desenvolvidos, dos quais cinco deles (Grã-Bretanha, Austrália, Canadá, França e Portugal) reconheceram a Palestina como Estado independente em 21 e 22 de setembro de 2025. Mesmo que não sejam implementadas medidas para viabilizar materialmente o reconhecimento público e oficial deste ente nacional, a aceitação da existência de um Estado da Palestina representa uma forma de expressar que parcela da população destes países pode estar perigosamente se desengajando da versão sionista. Os movimentos sociais que ocuparam as ruas de diversas cidades durante toda a fase do “macro-genocídio” mantiveram e até fortaleceram suas palavras de ordem. Mesmo com a aplicação de medidas repressivas brutais pela polícia, os manifestantes foram desenvolvendo cada vez mais convicções, ampliando o número de cidadãos que passaram a se manifestar sobre o assunto e formulando análises e slogans que em muito superaram a plasticidade argumentativa dos sionistas e seus defensores. Ou seja, as manifestações estavam literalmente ganhando corações e mentes e vencendo a batalha cognitiva sobre o que se passa (e o mais importante, o que se passou, a História) na ocupação da Palestina pelos sionistas.

O assassinato do ativista de extrema direita norte-americano, Charles Kirk, em 10 de setembro de 2025, dias antes do fechamento do acordo sobre Gaza, também deve ser considerado como fator de escalada de formação de opiniões contrárias à continuidade do apoio ao Estado sionista e da sua política social genocida. Neste caso, uma eventual perda de eficiência do lobby sionista e sua narrativa carente de comprovação nos fatos históricos é grave. A anunciada dissensão do ativista e formador de opinião de direita, alvejado aparentemente sem motivação objetiva ocorreu, no entanto, após ficar claro que ele estava se afastando e induzindo parcelas da juventude a rever o papel do seu país em relação à dependência dos interesses exclusivos do Estado sionista no deep state norte-americano. Este movimento indicava que ele estava comprometendo o apoio futuro ao projeto de ocupação estrangeira da Palestina. Sua mensagem se dirigia aos jovens, futuros cidadãos com poder e influência no Estado e na sociedade. Com pouco mais de trinta anos de idade, Charles Kirk tornou-se referência crítica do apoio irrestrito ao lobby sionista, obtido por influência política e métodos suspeitos de conduta na obtenção de apoio nas instituições internacionais e recursos financeiros e militares que são drenados para o Estado sionista. Tornou-se público que algumas semanas antes da sua morte que ele recusou o financiamento direto do Estado sionista para suas atividades de proselitismo político. O primeiro-ministro sionista foi questionado pela imprensa sobre uma eventual participação dos seus serviços de espionagem internacional no atentado que matou o jovem militante político. Não existem bases objetivas para esta especulação, mas o simples fato deste questionamento existir já aponta a corrosão do Estado sionista junto aos formadores de opinião no país que é seu principal suporte político e financiador.

Um outro fator que indicamos para compreender a decisão de pôr fim ao “macro-genocídio” é o fato de que vários sindicatos italianos decidiram pela paralisação das atividades laborais em protesto contra a prisão dos membros da frota de barcos civis de solidariedade com Gaza, a Sumud Global Flotilha. Em 22 de setembro de 2025 as manifestações paredistas alcançavam escala considerável na Itália. Sob o lema “Bloqueemos tudo”, uma chamada para estancar o envio de produtos para o Estado sionista, centenas de milhares de manifestantes de várias atividades econômicas em cidades europeias se manifestaram. A greve geral italiana, cuja profundidade e extensão não temos condições de analisar no momento, poderia ter sido o início de uma insurgência da classe trabalhadora contra a política social genocida contra o povo palestino pelo Estado sionista. Dissemos “poderia”, já que o acordo assinado em 13 de outubro mas divulgado anteriormente, fez refluir as manifestações de protesto da classe trabalhadora. Não temos condições de afirmar positivamente se esta manifestação do mundo do trabalho influenciou ou não o estancamento do “macro-genocídio”, mas a greve geral italiana aponta para a única barreira que separa a civilização da barbárie: a insurgência da classe trabalhadora. Também não temos no momento condições de estabelecer se o que ocorreu poderia ter iniciado uma ação mais ampla (tanto na pauta quanto no número de trabalhadores, atividades e países envolvidos) alcançando um questionamento das estruturas das relações sociais de produção capitalistas como a base da implementação da política social genocida contra o povo palestino. Esta incerteza existe por que a decisão de participar passivamente do acordo foi imposta ao Estado sionista pelo presidente Donald Trump, e este governante possui uma ação política tipicamente bonapartista. Tal situação nubla a percepção real da expressão dos interesses das classes sociais.

De qualquer forma, o acordo não trouxe a paz definitiva. Apenas transformou o que era explícito e exposto (o “macro-genocidio”) em uma ação menos intensa que remete a conduta do Estado sionista contra o povo palestino aos parâmetros existentes no pré-7 de outubro de 2023 (o “micro-genocidio”). O acordo não produziu mudanças fundamentais e estruturais na condição de espoliação física, social e moral do povo palestino já que todo o cenário para uma ação contundente tanto do sionismo interno quanto do sionismo externo apenas se colocaram num compasso de espera para que numa conjuntura propícia possam formar o que em artigos anteriores chamamos de pax israelensis.

Antes da terceirização da assinatura do acordo que dizia respeito às suas ações, o sionismo meticulosamente acelerou a eliminação de atores e meios materiais relevantes para a defesa e elaboração de propostas para a sociedade palestina, o que poderia constituir uma nação palestina enquanto uma dimensão simbólica. Atualmente está em curso, em meio a um cenário criado pela instauração do “micro-genocídio”, o meticuloso apagamento visual do que foi registrado pela população palestina durante o “macro-genocídio”. Notícias estão sendo veiculadas pela rede mundial de computadores de que as plataformas de exibição de vídeos curtos estão apagando esta auto-produção de filmagens que comprovam que o que estava em curso era a aplicação de uma política social genocida. Isto indica que nesta nova fase uma batalha cognitiva está em marcha. O sionismo administra com habilidade e meios materiais e políticos a memória coletiva para que no futuro esta possa ser dissolvida. Nesta ação deliberada de ocultamento do que já foi demonstrado publicamente devemos considerar que uma luta pelo controle da narrativa é significativo, o que influenciará no médio prazo a produção de análises sobre o que tem ocorrido na Palestina desde 7 de outubro de 2023. Se esta tendência se confirmar, o conhecimento a ser produzido pelas próximas gerações ficará restrito a poucos filmes disponíveis e, portanto, mais difícil de provocar engajamento da sociedade civil. O apagamento proposital dos registros de imagens produziria no futuro o desconhecimento, o ceticismo e a dúvida sobre o que está acontecendo na Palestina. Algo similar ocorreu quando os sionistas expulsaram o povo nativo e legítimo habitante da Palestina no Nakba (“catástrofe”) palestino entre 1947 e 1951, e no Naksa (“revés”) em 1967. Eles não deixaram à mostra senão resíduos do que havia ocorrido, baseando sua ilegitimidade enquanto governantes do seu Estado contando com uma verdade que não se explicitava em documentos ou na memória coletiva. Esta perda de referencial factual só foi rompido quando Historiadores israelenses conhecidos como os “Novos Historiadores” pesquisaram na década de 1980 os documentos tornados públicos pelo Estado sionista e existentes em arquivos ingleses. Estas fontes de pesquisa demonstram a intenção da expulsão da população palestina de seu país contradizendo totalmente as parvoíces que os sionistas insistem em tornarem públicas e cujo conteúdo não nos prestaremos a reproduzir neste artigo.

A nova visão sobre o ocorrido nas décadas anteriores só foi possível quando da eclosão da primeira Intifada em 1987. Ela tanto valorizou as descobertas dos “Novos Historiadores” quanto mais uma vez obscureceu a importância destas mesmas descobertas, já que o Estado sionista e sua sociedade preferiram acreditar que também havia naquele momento uma ameaça existencial. Nem mesmo os Acordos de Oslo (consequência direta da Primeira Intifada) construiu na sociedade civil sionista a legitimidade e aceitação plena da pesquisa acadêmica que os próprios historiadores israelenses deram vida. Acrescente-se que Historiadores palestinos (Arif al-Arif, Elias Khouri e Walid Khalidi que já vinham escrevendo sobre esta mesma situação, questionando que a questão palestina foi iniciada com o êxodo voluntário dos próprios que seguiam ordens emanadas pelos seus líderes), mas não alcançaram a repercussão devida entre o grande público do que havia se passado na Palestina.

O mais significativo apagamento seletivo da memória socialmente construída sobre a política social genocida contra o povo palestino foi o apagamento da página do Instagram do jornalista Saleh Aljafarawi, morto em 12 de outubro de 2025, um dia antes da assinatura do acordo em Sharm el Sheik. Ele foi atingido mortalmente ao cobrir confronto entre o Hamas e as milícias criminosas financiadas pelo Estado sionista com o fim de dividir e infligir caos e desordem na sociedade palestina para enfraquecer a resistência à ocupação. Não duvidamos que este assassinato possa ter sido uma encomenda dos sionistas aos seus aliados. Ao longo dos dois anos da aplicação da política social genocida contra o povo palestino Saleh Aljafarawi tornou-se uma voz presente, crítica, afetuosa e ativa ao registrar e analisar jornalisticamente o martírio de seu povo. Indiscutivelmente suas convicções políticas, religiosas e profissionais representaram unidade e esperança de dias melhores. Ele lutou com seus meios de vida contra a política social genocida e sua orientação de cancelamento simbólico e memorial da História da Palestina e seu povo.

Este artigo é a 25ª parte da série “Gaza, ano zero: as raízes do Holocausto do povo palestino”.

(*) Bernardo Kocher é Professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense