Sábado, 6 de dezembro de 2025
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O major Rafael Rozenszajn, porta-voz do Exército de Ocupação Israelense, chega ao Brasil nesta semana para promover o livro Guerra de Narrativas – uma peça de propaganda travestida de reflexão moral. A turnê foi pensada para atingir brasileiros leigos, que confundem o Estado moderno de Israel com a “Israel bíblica”. É a esse público, de boa-fé e sem formação em Direito Internacional, que o major pretende vender a sua “verdade”.

Essa “verdade” se apoia em omissões calculadas. Logo na introdução, Rozenszajn chama o 7 de outubro de “o maior massacre de judeus desde o Holocausto”, deslocando o debate do campo político para o religioso. Com isso, apaga décadas de bloqueio, apartheid e massacres anteriores. Assim, o que deveria ser analisado como ocupação vira tragédia espiritual – o que prepara o terreno para o esquecimento.

Enterrar o passado, omitindo o terror dos olhos do brasileiro leigo é também legitimar o presente. <br> (Foto: Pixabay)

Enterrar o passado, omitindo o terror dos olhos do brasileiro leigo é também legitimar o presente.
(Foto: Pixabay)

O porta-voz da hasbara israelense fala em “milhares de terroristas” e “atrocidades sem precedentes”, mas silencia sobre a Nakba de 1948, quando 750 mil palestinos foram expulsos por milícias sionistas como Irgun e Haganah. Esses grupos, classificados como terroristas pelo Reino Unido, que atuavam violentamente na Palestina antes mesmo da Nakba, apagando vilarejos inteiros do mapa, formaram depois a base do Exército israelense. Seus líderes se tornaram primeiros-ministros de Israel. Admitir essa origem sangrenta seria reconhecer que o terror original não foi palestino, mas sionista – e esse é o tipo de lembrança que a propaganda precisa enterrar.

Enterrar o passado, omitindo o terror dos olhos do brasileiro leigo é também legitimar o presente. O autor encena triunfalismo militar, sugerindo vitórias de Israel sobre Hezbollah, Irã e Síria – pura ficção geopolítica. Enquanto isso, Gaza foi devastada, com dezenas de milhares de civis mortos e hospitais destruídos, fatos reconhecidos pela ONU e pela Corte Internacional de Justiça. Ao converter destruição em “sucesso”, Rozenszajn troca realidade por narrativa.

Essa inversão é a essência da hasbara, a máquina estratégica de desinformação israelense. Em vez de discutir crimes de guerra, o major é remunerado para alegar que Israel trava apenas uma “batalha comunicacional”, fingindo que as denúncias documentadas – fome em Gaza, escolas bombardeadas, assassinatos de civis – são “fake news”. O truque é vitimizar o opressor, transformando provas em boatos, e criminalizar as vítimas. 

Quem poderia reverter o mundo fantasioso do “ventríloquo” de Israel – a grande imprensa brasileira –, em vez disso, compactua com ele. A estratégia ganha as redações de alcance nacional. Enquanto especialistas e vozes palestinas são ignorados, Rozenszajn é recebido com tapete vermelho. Sem contrapontos, suas falas viram “verdades” repetidas em horário nobre. Grandes veículos que se dizem neutros reproduzem a propaganda israelense, sem confrontar dados da ONU ou da organização humanitária israelense B’Tselem. Assim, o jornalismo deixa de esclarecer e passa a servir de caixa de ressonância da ocupação. Obviamente, existe razão para isso. Não se trata de desconhecimento dos muito bem pagos jornalistas desses canais.

No livro, o major ainda descreve Israel como “Estado democrático comprometido com a verdade”, omitindo que mais de 250 jornalistas palestinos foram mortos desde 2023. A imprensa independente foi silenciada; a que sobreviveu, perseguida. O livro não cita um só nome dessas vítimas – porque reconhecê-las seria admitir que o verdadeiro alvo da “guerra de narrativas” é a própria verdade, que ele busca camuflar e esconder.

A manipulação se repete quando tenta justificar o bloqueio de Gaza como “medida de segurança”. A IV Convenção de Genebra proíbe punições coletivas, mas Israel impõe desde 2007 restrições a combustível e alimentos, gerando fome e colapso hospitalar. Vangloria-se de que “Israel deixou Gaza desde 2007”, mas omite essas restrições da entrada de itens que garantiriam o mínimo existencial dos palestinos. Quando o major chama esse crime de política legítima, veste o extermínio de legalidade – e a mentira, repetida, vira, mais uma vez, rotina. A normalização da barbárie é o ápice da estratégia. 

Ao confundir antissionismo com ódio, o autor apaga que há judeus antissionistas e que organizações como a B’Tselem e a Human Rights Watch já classificaram Israel como regime de apartheid. Fingir que esses relatórios não existem é apagar a verdade. Nesse ponto, Rozenszajn se apresenta como “porta-voz da verdade” para disfarçar o que é: porta-voz da propaganda de guerra, porta-voz da mentira lavada. 

O objetivo não é informar, mas doutrinar. O público brasileiro, emocionalmente suscetível e distante da realidade palestina, torna-se alvo fácil. Trata-se de colonizar consciências e legitimar um massacre com a retórica da autodefesa. Por isso, o Brasil – uma democracia plural e consciente – não pode se prestar ao papel de plateia ingênua. Como se não bastasse falar ao público em geral, escolheu os espaços de sua doutrinação a dedo: irá a templos evangélicos pelo Brasil divulgar seu panfleto a mando de Israel.

A liberdade de expressão não é salvo-conduto para mentiras de Estado. Permitir que o porta-voz de um exército acusado de genocídio percorra o país apresentando propaganda como análise é insulto à inteligência nacional e à memória das vítimas e um escárnio aos poderes constituídos da República. Se há uma “guerra de narrativas”, que ela se faça com fatos, não com fardas travestidas de mensageiros da verdade, de um Estado genocida.

É por isso que os movimentos de solidariedade à Palestina precisam estar presentes nos eventos do major, com serenidade e firmeza, exigindo que ele desminta suas falsidades – dos “bebês decapitados” às justificativas do bloqueio a Gaza. A guerra de narrativas só cessará quando a verdade ocupar o lugar da propaganda maldita israelense. E é justamente essa verdade que o major teme encontrar no Brasil. 

(*) Claudia Assaf é diplomata e internacionalista. As opiniões da autora não refletem as opiniões do Itamaraty.