Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Hoje em dia somos constantemente bombardeados com imagens de futuros que tentam, de diversas formas, traduzir nossa miséria: apocalípticos ou distópicos, futuros que cada vez mais parecem servir para nos informar que somos dispensáveis e que todas as alternativas já foram perdidas. Todavia, o modo pelo qual imaginamos, fantasiamos e projetamos nosso passado e nosso futuro são, com grande frequência, pistas sobre a condição do presente – especialmente na medida em que o espaço ficcional propicia a elaboração de impasses e revela pontos cegos que escapam às análises “realistas”. A ficcionalização contribui para revelar as condições do que é possível ou impossível de ser imaginado, além daquilo que se repete como sintomático em nossas fantasias – especialmente quando essas fantasias ficcionais são massificadas e serializadas, o que é o caso da nossa condição, enquanto sujeitos de uma indústria cultural de massas, produtora de narrativas múltiplas e singularmente convenientes para cada um de nós, seja “cada um de nós” quem for. Uma espécie de substituição enlatada e pasteurizada do que, em outra era, seria uma função exercida pelos mitos contados e condensados através de muitas histórias. 

A sensação que temos hoje, cada vez mais, é de que as ficções servem para nos preparar – ou nos conformar – para um (fim de) mundo inescapável: uma realidade de terra arrasada onde a miséria se converte num território de competição por recursos e a rivalidade expressa na guerra de todos contra todos é apenas a ordem do dia. Curiosamente, isso se contrasta com a condição presente de efervescência tecnológica: o território da ficção parece ser inescapavelmente concebido como o espaço para se elaborar a contradição entre potencialidades técnicas e a supostamente incontornável escassez econômica. A ficção, especialmente em seu exercício de imaginação do futuro, verteu-se em um campo onde a “evidente marcha do progresso” tromba com os próprios impasses políticos do presente. Somos cada vez mais aptos, em termos de avanços tecnológicos, de superar os impasses naturais – ou os impasses da “primeira natureza”. A tecnologia, todavia, não parece ser capaz de influenciar na nossa capacidade imaginativa de superar os limites da nossa “natureza segunda”.

Cena do filme Ex-Machina (2014). (Foto: Reprodução / Netflix)

Cena do filme Ex-Machina (2014).
(Foto: Reprodução / Netflix)

Quando pensamos em fantasias que refletem sobre a relação humana com a tecnologia, é comum associarmos essas narrativas ao gênero de ficção científica, que frequentemente antecipa uma espécie de tecno-apocalipse, um horizonte de utopia (ou distopia) social, ou a imaginação de uma anomia em condições futurísticas avançadas. Obras clássicas como ‘Utopia de Thomas Morus, publicada em 1516, considerada um marco na ficção como horizonte da imaginação utópica; assim como ‘Somnium’ de Johannes Kepler, publicada em 1634, um dos primeiros textos de ficção que narra uma viagem à Lua, ou ‘O Mundo Resplandecente’, publicado em 1666, de Margaret Cavendish, que descreve uma utopia científica com criaturas híbridas e mundos paralelos, são exemplos fundadores do gênero moderno de ficção científica como o conhecemos. Esses foram alguns dos exercícios humanos de imaginação e ficção que bordaram o nosso passado – e o nosso presente. 

Mas as reflexões mitológicas sobre a técnica e a tecnologia, sobre a capacidade inventiva e criativa humana e suas consequências não são uma prerrogativa contemporânea e nem sequer moderna. Um dos mais clássicos personagens da mitologia grega, que encontra-se na história de Prometeu (Προμηθεύς, do grego “antevisão” ou “antever”), é frequentemente evocado como uma metáfora para as ambiguidades, dicotomias e contradições que fazem parte da relação humana com a arte, a técnica e a tecnologia – ou seja, com a incerteza imanente à criação. Prometeu, como nos contam Hesíodo e Ésquilo, foi o titã responsável pela criação dos animais e dos homens, junto ao seu irmão Epimeteu – que, na versão de Hesíodo, casa-se com Pandora (Πανδώρα, “a que tudo dá”, “a que possui tudo”, “a que tudo tira”). Epimeteu ficou responsável por dedicar uma característica específica a cada animal, características essas que definiriam cada espécie. Quando chegada a vez de dar a característica do animal humano, já não havia mais nenhuma – todos os atributos encontravam-se esgotados. Epimeteu pede ajuda a seu irmão Prometeu, que então rouba o fogo de Héstia e entrega-o aos humanos, determinando assim nossa característica definidora: a criatividade. 

Existem outras versões do mito de Prometeu, mas um dos pontos centrais que circulam por todas elas é a definição do gênero humano justamente por sua indefinição, e como essa indefinição possibilita sua capacidade criativa, inventiva, que possibilita artifícios justamente por sua indeterminidade – e dessa indeterminidade também incorrem grandes riscos à condição humana, representados tanto no castigo de Zeus enfrentado por Prometeu ou mesmo na própria caixa de Pandora, mas essa já é outra história. O ponto a ser frisado aqui é que são justamente nestas alegorias onde encontramos grandes reflexões sobre a relação humana com aquilo que nos torna humanos: uma abertura indeterminada e criativa que se verte em artifícios úteis tanto para a emancipação quanto para a nossa própria submissão. Os mitos e ficções refletem medos e angústias, assim como potências e riscos que circulam nosso passado e nosso presente.  

Quando pensamos na projeção e no exercício de futurologia empreendido por obras de ficção científica que pretendem elocubrar os impasses do presente em uma condição imaginada de futuro, curiosamente encontramos também impasses do passado que ainda dão a tônica dos tempos atuais e condicionam as possibilidades do porvir. E atualmente, não apenas na literatura, mas especialmente no cinema, encontramos com grande frequência uma confluência entre o condicionamento do presente pelas condições sociais e tecnológicas dadas, refletindo no modo como o futuro é imaginado nas mais diversas obras de ficção científica. Ao pensarmos em clássicos como 2001: Uma Odisséia no Espaço (1968), Blade Runner (1982) ou O Exterminador do Futuro (1984), torna-se evidente o impasse imposto pelo desenvolvimento tecnológico e suas consequências éticas, morais e políticas. Em todos esses filmes encontramos a ressaca de uma “consciência prometeica”, onde as consequências do desenvolvimento tecnológico verteriam-se, tal qual a clássica imagem do Ouroboros, em uma cobra comendo o próprio rabo.

Entretanto, e para além disso, é pouco mencionado o tipo de projeção que permeia esse padrão narrativo: o mote de insurreição das máquinas e progressiva dominação da humanidade, via de regra, parece mimetizar uma angústia específica, particularmente localizável no medo branco europeu da revolta anti-colonial. Não seria difícil inferir uma analogia, ou mesmo uma correlação, entre filmes que abordam a ascensão de uma singularidade das máquinas que se insurgem contra a dominação perpetrada por humanos e, por consequência, passam a inverter a lógica, em uma narrativa onde são então os humanos os subjugados ou mesmo escravizados por robôs. O tema recorrente na ficção científica, onde as máquinas ganham consciência e se revoltam contra a dominação humana, refletem, obviamente, a condição passada da escravidão ou a condição presente da exploração capitalista – se quisermos emparelhar termos marxistas e freudianos, poderíamos falar sobre um deslocamento onírico entre o trabalho vivo e o trabalho morto: escravo e máquina tornam-se metáfora um do outro, em uma só fantasia ficcional. Estamos lidando aqui com um tipo de projeção que ganha amplitude na produção cinematográfica da indústria cultural.

Essa é uma temática recorrente no século XX, mas ao adentrarmos o século XXI, uma outra projeção toma a cena: a metáfora da inteligência artificial e da consciência das máquinas ganha contornos de gênero. Filmes como Her (2013) ou Ex-Machina (2014) colocam a singularidade da consciência maquínica em uma posição feminina, contraposta à fantasia masculina. Nesse contexto, parece que a ascensão das máquinas se equivale ao impasse da feminilidade como sintoma do homem – ou seja, não se trata da posição feminina como sujeito político em si, mas seu impasse frente à fantasia masculina.  

O que fica cada vez mais evidente nas obras de ficção científica que permeiam a cultura de massas é uma permanência tanto da ficção racial quanto da ficção de gênero – ambas fundamentais para a estrutura racializada e masculinizada de dominação –, que se reproduzem como metáforas na tela genérica da tecnologia, e que, por sua vez, possibilitam uma imaginação renovada de impasses e contradições já antigas. A ficção científica, por mais que se renove em seu conteúdo, ainda parece funcionar como um pano de fundo para contradições tão menos futurísticas do que se apresentam na tela. Para além do tema apocalíptico que, como percebido por Bruna Della Torre, é frequentemente abordado na indústria cultural como uma forma de produção da conformidade social frente ao cataclisma iminente, a ficção e o cinema especificamente parecem elaborar um impasse imanente ao tecido social. Imaginar o futuro torna-se cada vez mais uma possibilidade de interpretar o presente e refletir sobre o passado. 

Contra prospecções que se pretendem descontextualizadas dos impasses contemporâneos, torna-se imperativo lidar com a imaginação futurista que ocorre no presente e constrange as possibilidades de imaginação do futuro. É cada vez mais necessário estarmos atentos às balizas da ficção, especialmente na medida em que ficcionalizar é dar contorno às possibilidades políticas do que pode parecer possível ou impossível. Nesses termos, a ficção detém um poder maior do que a realidade.

(*) Cian Barbosa é flamenguista e morador do Rio de Janeiro. Bacharel em sociologia (UFF), doutorando em filosofia (UNIFESP) e psicologia (UFRJ), pesquisa teoria do sujeito, crítica da cultura, violência, tecnologia, ideologia e digitalização; também é integrante da revista Zero à Esquerda, tradutor e ensaísta, além de professor e coordenador do Centro de Formação.