Sábado, 6 de dezembro de 2025
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O governador carioca, Cláudio Castro, ordenou o maior massacre da história recente do Brasil. Impopular, sem espaço para concorrer à reeleição e mostrando pouca força para se eleger senador, Castro seguiu o script da família Bolsonaro, que endossa a retórica americana de justificar intervenções armadas na América Latina: a cortina de fumaça é o “narcoterrorismo” – que naturalmente, não inclui milícias do Brasil ou paramilitares.

Castro compartilhou informações sobre o Comando Vermelho com os americanos meses atrás e, agora, volta à carga com execuções extrajudiciais sumárias, com a ação acompanhada, de forma imediata e quase automática, por presidentes de direita do continente, como Milei na Argentina, Santiago Peña do Paraguai e o recém-eleito Rodrigo Paz da Bolívia – que prometeram mobilizar tropas ou endurecer o policiamento na fronteira brasileira.

O secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio. <br> (Foto: Michael Vadon / Flickr)

O secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio.
(Foto: Michael Vadon / Flickr)

Nada é por acaso. O cerco naval à Venezuela, que parece arrefecer somente agora, foi estabelecido para combater cartéis locais, o que também tem sido usado para fazer ameaças a México e Colômbia – que sofreu ataques duros, com a inclusão do presidente Gustavo Petro e de sua família na Lei Magnitsky, enquanto agora Trump acena com ações militares no território mexicano. O gesto do governador carioca está nesse contexto.

Por trás disso, mais do que um projeto do governo de Donald Trump, parece estar a doutrina de seu secretário de Estado, Marco Rubio – ele vem de uma família de expatriados da direita cubana na Flórida –, que opera dentro e contra a atual presidência americana, mirando as eleições presidenciais de 2028 – até as pedrinhas da rua sabem que Trump tenta mudar o entendimento legal para se candidatar à reeleição, mas Rubio, dentre outros, quer a vaga.

Enquanto o próprio Trump ora autoriza, ora desautoriza Rubio – como no caso das tarifas sobre o Brasil, que foram um verdadeiro fracasso –, ele acaba dando vazão ao seu secretário, uma vez que poucos lugares ainda admitem essa projeção do poder americano – e manter o que muitos americanos consideram seu quintal parece ser uma medida urgente. A narrativa do narcoterrorismo aparece aí.

O tarifaço contra o Brasil como tiro na água, mas não há um minuto de paz

Donald Trump comprou a tese de que um tarifaço contra o Brasil poderia servir para impor sua vontade ao maior país da América Latina. O plano, é claro, foi comprado pelo Departamento de Estado de Rubio, por mais que a família Bolsonaro tenha acessado contatos no trumpismo tradicional e não, inicialmente, os neoconservadores como Rubio. O plano mirabolante e desesperado de Eduardo Bolsonaro foi, ao final, aceito e racionalizado.

O que o staff de Rubio não calculou bem é que o tarifaço uniu o Brasil e não gerou consenso nos Estados Unidos, uma vez que o vantajoso comércio com o nosso país, seja em termos de saldo da balança ou da natureza das compras – pela qual as empresas americanas agregam valor a produtos como café, laranja e carne exportados quase em estado bruto. Trump enfrentou uma rebelião interna, enquanto Lula sedimentou apoio em torno de si.

Sinal disso é Trump ter topado uma reunião em casa neutra com o Brasil, dando um giro de 180 graus na retórica inicial. Antes, tudo começou com um degelo na Assembleia Geral das Nações Unidas, mas toda a encenação havia sido construída nos bastidores, com meses de negociação, nas quais o antípoda de Rubio, Richard Grenell, foi empoderado para falar em nome de Trump com autoridades brasileiras e resolver a celeuma.

O presidente americano apenas antecipou os humores do seu país, onde poucos dias depois o Senado votou contra as tarifas sobre o Brasil – e isso só foi possível com o levante de senadores republicanos, que votaram com os democratas, inclusive o figurão Mitch McConnell. Isso abriu espaço para mais derrotas sobre as tarifas, que podem até ser revertidas na Câmara, mas o quadro geral é de revés para Trump.

No caso brasileiro, os eventos do massacre carioca e sua exploração pelo Bolsonarismo e a direita do continente dão a entender que uma nova estratégia foi posta em prática contra nosso país – mas se Trump buscou diferenciar o Brasil da Venezuela em sua fala de distensão após a reunião com Lula, algum outro fator entrou em cena para justamente fazer parecer o contrário, e esso alguém muito provavelmente é Rubio.

A corrida para as presidenciais do Estados Unidos de 2028

Durante seu primeiro mandato, ainda que seu movimento, o MAGA, tenha sido posto também na berlinda, a administração Trump cumpriu em grande medida a proposta isolacionista. John Bolton, um dos raros neoconservadores a ocupar um cargo importante no Trump I, caiu, inclusive, depois de rufar tambores de guerra contra a Venezuela. O que teria mudado de 2019 para cá, então?

Basicamente, que um Trump aparentemente superforte é, na verdade, um presidente mais fraco do que aquele que ocupou a Casa Branca entre 2017 e 2020, dando mais espaço para neoconservadores – que são seus adversários na extrema-direita, e defendem o exato oposto da promessa trumpista, isto é, uma agenda de guerras e intervenção externa, exatamente como na gestão de George Bush, que Trump sempre criticou.

Depois de admitir um vice de outra ala, JD Vance, que é organicamente ligado às Big Techs e a um certo projeto isolacionista, mas não se confunde exatamente com o trumpismo raíz, o presidente americano parece se equilibrar em duas canoas – tudo para se salvar e permanecer no poder, jogando com dois polos de poder bastante ciosos de que ele pretende descartar assim que puder.

No caso venezuelano, Trump autorizou inicialmente Grenell, alguém que lhe é certamente muito mais orgânico, a negociar com o presidente Nicolás Maduro, e tudo caminhava para algum acordo. No meio do caminho, a agenda de Rubio apareceu, mas não parece ter sido à toa: isso aconteceu imediatamente após Trump perceber que não tinha como convencer Vladimir Putin a aceitar um mau acordo sobre a Ucrânia.

Se Putin poderia acelerar e vencer na Ucrânia sem fazer um acordo com Trump, pareceu razoável apontar uma arma para a Venezuela, que embora cercada e duramente atingida por anos de sanções brutais, ainda é uma reserva petrolífera e tanto – e é uma das maiores aliadas de Moscou, e também da China, na América Latina. Para isso, Trump fez a aposta ousada de autorizar Rubio, que só tem a falácia do narcoterrorismo para justificar seus atos.

Uma ação para evitar uma distensão com o Brasil

Com uma população francamente favorável ao populismo penal, uma vez traumatizada com a violência urbana e suas chagas, é cômodo para a direita deslocar o debate para isso. Mas não só; setores criminosos como as milícias não são interpeladas pela extrema-direita, muitíssimo pelo contrário – e a duras penas não entendemos muito bem porquê. Mas o cenário atual engloba não só a disputa brasileira, mas também a americana.

Todos os sinais apontam para uma distensão entre Brasil e Estados Unidos, inclusive porque Trump precisa disso e é muito mais fácil, rápido e barato para Trump construir um diálogo com Lula. Isso é péssimo para a extrema-direita brasileira, é claro, mas também é ruim para Marco Rubio, cujo foco de atuação é a América Latina – um projeto que estava quase dando certo, com o Brasil gradualmente cercado por governos de direita.

Enquanto Trump buscou diferenciar Brasil de Venezuela, e Lula conseguiu na cúpula da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) fazer o que sabe melhor – vender a imagem do Brasil lá fora –, rapidamente, a ação do governo carioca, alinhada a governos de extrema-direita da América do Sul, ameaçou isso – e jogar a sombra do narcoterrorismo para dentro de um país que não é sequer visto dessa forma, mesmo por conservadores americanos.

Boa parte da esquerda brasileira, que passou os últimos anos caluniando ou abandonado a Venezuela, se vê em xeque, com nosso país correndo riscos externos pelas mesmas falácias que serviram ao brutal cerco ao país vizinho – mas que sempre foi ignorado ou mitigado, como se a Venezuela, um corajoso combatente ferido, fosse já um cadáver que sequer merecesse ser conduzido a uma cova rasa. Hoje, somos nós no papel, contudo.

Os neoconservadores querem mais do que ninguém tocar fogo nesse paiol, enquanto gente que faz parte ou simpatiza com o MAGA como Grenell ou o jornalista Tucker Carlson vão num sentido oposto. Isso não é apenas uma aposta do imperialismo americano, mas uma mostra do racha e da desarticulação no atual governo americano, o que não deixa de ser suscetível às paixões menores, motivado por inconfessáveis interesses eleitorais.

(*) Hugo Albuquerque é jurista e editor da Autonomia Literária.