'Tarifaço dos EUA é continuação do golpe de 2016', diz Sebastião Velasco
Professor da Unicamp analisa tentativa de ingerência norte-americana na política brasileira e capitulação europeia a Washington
Nesta semana, o presidente Donald Trump anunciou as novas taxas de sua guerra tarifária contra mais de 90 países. O Brasil está entre os mais taxados (50%) e a União Europeia foi alvo de uma tarifa de 15%, após concordar em transferir 5% do PIB de seus países-membros para a OTAN.
Em entrevista a Opera Mundi, o cientista político Sebastião Velasco e Cruz, professor de Ciências Políticas da Unicamp e de Relações Internacionais do San Tiago Dantas, analisou a ingerência norte-americana na política brasileira a partir da taxa abusiva, apresentada como retaliação ao julgamento do ex-presidente e réu no Supremo Tribunal Federal, Jair Bolsonaro.
Em sua avaliação, o ataque é “o segundo ato” de uma campanha contra o protagonismo brasileiro iniciada com o golpe 2016. “O governo Lula fará o possível para não escalar um conflito direto com os Estados Unidos, porque não se trata de um conflito binário. A nossa disputa é interna”, afirma.
Autor de “Os Estados Unidos e o Sistema Multilateral de Comércio” (UNESP, 2018), Velasco também analisou a capitulação europeia frente às novas taxas e o financiamento da OTAN. “Trata-se de uma imposição truculenta, pura e direta de Trump”, aponta.
Ele explica que a rendição europeia deve ser olhada sob o prisma da Guerra da Ucrânia. “Eles estão de mãos atadas”, afirma Velasco, ao trazer o panorama de como os aliados foram lançados em uma guerra contra a Rússia.
Coordenador do Instituto Nacional de Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) até 2024, sua entrevista elucida o subtexto de ambos os “acordos” e escancara a política de subjugação do governo Trump, apontando continuidades e mudanças em relação a seus antecessores na Casa Branca.
Leia a entrevista com Sebastião Velasco e Cruz na íntegra:
Opera Mundi: Velasco, para quem não acompanha as relações transatlânticas, de forma geral, como são as relações entre os Estados Unidos e a Europa?
Sebastião Velasco e Cruz: em relação aos Estados Unidos, a Europa segue uma trajetória que nos remete ao clássico A Servidão Voluntária, de La Boétie. Desde o final da Segunda Guerra, a atitude é de subordinação. No caso da Alemanha, não surpreende, foi um país derrotado e ocupado. A Inglaterra é um antigo império que se curvou ao sucessor. A França ainda manteve uma postura mais independente, especialmente com De Gaulle, desenvolvendo uma estratégia nuclear e saindo da OTAN.
A Europa nunca concretizou a ambição de estabelecer uma política externa e de defesa comum, uma discussão que existe desde a formação da União Europeia nos anos 90. Em 2017, após Trump consternar o mundo em seu discurso de posse, houve um movimento, embasado nessas discussões, visando uma maior autonomia. Os franceses especularam a criação de uma força nuclear europeia, mas nunca houve uma unidade estratégica política capaz de enfrentar o poder norte-americano.
Antes do conflito com a Ucrânia, eles estavam reagindo. A Alemanha se posicionou contra o veto norte-americano aos gasodutos Nord Stream com a Rússia. Naquele momento, o país pretendia exercer a liderança na UE, mas embora considerado a “locomotiva econômica” do bloco, era um anão político e sobretudo militar.
O governo Obama e Trump fizeram uma campanha fortíssima contra essa imbricação porque, do ponto de vista dos Estados Unidos, a integração Alemanha-Rússia poderia desequilibrar todo o sistema de relações de poder estabelecido desde o final da Guerra Fria.
A crise na Ucrânia em 2014 foi um golpe promovido pelos Estados Unidos. A França, Alemanha e Polônia haviam feito um acordo com o então presidente Viktor Yanukovich, mas assim que o Congresso se reuniu para aprová-lo, dando fim à crise, aconteceu um impeachment semelhante ao golpe no Brasil. E o governo Obama o reconheceu imediatamente, rasgando na marra o acordo das potências europeias.
A Guerra na Ucrânia acabou gerando um deslocamento político das elites europeias, lançadas no conflito contra a Rússia. Frente a isso, as pretensões anteriores de se criar as condições e pré-requisitos da autonomia se tornaram inviáveis, porque esses requisitos são produzidos num tempo longo; enquanto a guerra é o domínio da urgência.
A política de Trump é diferente de Joe Biden para a região?
Eles não se diferenciam no propósito da primazia dos Estados Unidos. A diferença é que Biden pretendeu gerir uma ordem internacional organizada por ele; enquanto Trump não quer saber de organização nenhuma. É a imposição truculenta, pura e direta da sua vontade. A ideia dos Estados Unidos como potência hegemônica, combinando coerção e consenso, foi jogada no lixo. É imposição, basicamente, e submissão por parte dos demais. Essa é uma diferença grande.
No entanto, há uma premissa compartilhada: a de que a hegemonia está ameaçada pela ascensão da China e pela dispersão do poder em escala mundial. Biden defendeu uma estratégia ideologizada, apresentando o conflito como um antagonismo entre democracias e autocracias. Além disso, ele e os neoconservadores acreditavam na capacidade norte-americana de responder simultaneamente a dois adversários desiguais, a China a longo prazo e a Rússia a curto prazo.
Com isso, ele provocou o conflito na Ucrânia e arrastou a Europa para a guerra com a Rússia, mantendo-a refém da política norte-americana. Os países europeus nunca estiveram preparados para lidar com uma guerra em suas fronteiras e a possibilidade de vitória só poderia se dar com a participação e o comando norte-americano, político e militar.
Neste governo — e não é só o Trump, é uma posição coletiva do governo —, a relação com os aliados europeus é de imposição.
Trump chegou a bravatear que terminaria a guerra.
O discurso do Trump de que resolveria o conflito em 24 horas, num “estalar de dedos”, não era simplesmente retórica. Ele fez movimentos nesse sentido e o núcleo duro em torno dele sempre defendeu essa posição. Há um debate estratégico em setores da direita republicana de que os Estados Unidos, ao contrário do que pensam os neoconservadores, não estão com essa bola toda. Os recursos são limitados e eles não têm condições de enfrentar simultaneamente a China e a Rússia. E, dentro desta concepção, a verdadeira ameaça é a China.
A figura-chave dessa visão é Elbridge Colby, principal formulador da Estratégia de Segurança Nacional dos EUA em 2017. Ele defende a concentração de recursos no teatro asiático para conter a China, e a delegação da questão da Ucrânia e da segurança europeia aos próprios europeus. Vem daí o discurso de que os europeus “são suckers, caronas” e que os Estados Unidos estão financiando uma guerra que não é deles.
Com isso, eles conquistaram a obrigação dos países da UE de gastar seus maravilhosos 5% de investimento militar na indústria norte-americana e não na própria indústria europeia, para não falar na chinesa ou de qualquer outro país. O que Trump fez agora foi dizer: “nós damos todo apoio, mas não vamos colocar dinheiro e nem armamentos. Vocês compram armamentos nossos”.

‘Governo fará o possível para não escalar um conflito direto com os Estados Unidos. A nossa disputa é interna’, aponta Velasco
Tatiana Carlotti / Carta Maior
Trump firmou um acordo com a UE resultando na cobrança de 15% dos produtos europeus. Como você avalia?
Não foi a melhor negociação, embora tomada como satisfatória pela Comissão Europeia. Eu li os comentários afirmando que se trata de uma rendição e não um acordo comercial. Na prática, é um acordo cujo sentido para os europeus foi manter os Estados Unidos na Europa e assegurar a proteção, com o sacrifício de suas pretensões.
O pesadelo dos europeus é lidar sozinhos com a Rússia nessa guerra. Eles se envolveram numa armadilha e não têm como romper as amarras da dessa servidão, salvo na hipótese de reconfigurarem completamente o quadro global. Ou seja, reorientar a sua política internacional de alianças. É a música do Cartola, eles se lançaram no precipício “que cavaram com seus pés”.
Em princípio, a Europa teria condições de fazer muito mais do que está fazendo. Mas, na prática, não consegue porque não existe unidade política na Europa, nem uma política estratégica, nem vontade coletiva. Não há um planejamento estratégico europeu. Existem núcleos que pensam a Europa, mas dispersamente — na Áustria, Alemanha, Itália, França.
Você tinha acordos e coletivos e regras estabelecidas e o Trump explodiu tudo isso. A prerrogativa da adesão europeia é de que o mundo é dos Estados Unidos. É como o dono da lojinha que se vê sem proteção diante da cobrança do PCC (Primeiro Comando da Capital) ou do mafioso em Nova York. Quem dita as regras é quem tem o revólver. Eles estão totalmente de mãos atadas.
A Europa aceitou e grande parte dos países não tem muitas alternativas diante da imposição de Trump. No caso brasileiro, por exemplo, o último degrau de uma escalada com os Estados Unidos, embora não fizesse o país deixar de existir – Cuba resiste há mais de 60 anos e a 50 milhas deles – transformaria o Brasil tal como o conhecemos, com Netflix, GPS… Tudo isso desapareceria porque são sistemas norte-americanos.
Os militares brasileiros perdem o sono com a possibilidade de ruptura dos contratos, porque dependem materialmente dos equipamentos, das doutrinas operacionais, eles são uma extensão do poder norte-americano. E servem para fazer o que têm feito: disciplinar e impor um certo conceito de ordem no país. É uma realidade diferente, por exemplo, do Exército venezuelano que tem outras doutrinas, outras alianças e outros armamentos. A nossa aliança é com os Estados Unidos. Trata-se de uma relação orgânica e nela estamos como subordinados, ponto. Essa é a situação.
Já os países europeus têm um grau de desenvolvimento tecnológico e tecnologia militar incomparáveis com o nosso. Mas, dado o conflito com a Rússia e a percepção do que ele produz, eles se colocam numa situação de dependência equivalente.
O senhor citou o Brasil. Como você avalia as taxas de 50% vinculadas à questão do Bolsonaro?
Nós estamos vivendo no Brasil o segundo ato de uma peça iniciada no golpe de 2016, e se formos mais longe no de 1964. Em 2016, o Brasil era a sexta economia mundial, líder de um projeto de integração regional na América do Sul e que tinha, embora tímida, uma dimensão de defesa militar com o Conselho de Segurança da América do Sul.
Isso foi considerado incompatível com os requisitos da preservação da ordem norte-americana. O protagonista do golpe, como sabemos, foi a Lava Jato – TV Globo, setores dominantes, Ministério Público –, mas já existiam indícios, que ficaram evidentes depois, de que a operação se deu em conexão com o Departamento de Justiça norte-americana. Eles atuaram para anular o risco de um avanço do Brasil nessa direção.
Um dos elementos importantes da engrenagem que se montava era o pré-sal, com seu regime de partilha, e o processo de reestruturação econômica ancorado na exploração do petróleo, incluindo o capital privado, em um projeto de capitalismo de Estado, em que o governo assumia o papel de promotor, regulador e investidor significativo. Isso tudo foi para o espaço.
Vimos um governo de ocupação com Temer, que promoveu uma reorientação total na política externa internacional brasileira, destruindo o setor chave da engenharia de grandes projetos. E entramos na trajetória que nos levou a Bolsonaro, com o consenso de setores nacionais e internacionais, e a prisão do Lula.
No entanto, a guerra não termina quando se destrói fisicamente o inimigo, mas sim com a deposição das armas. Isso aconteceu no Japão, mas não no Brasil. A vontade de emancipação brasileira manifestou-se na eleição de Lula e agora, embora seu governo esteja mais contido, o país continua promovendo iniciativas que a expressam.
Há interesses fortíssimos dos EUA em jogo – regulação das big techs, minerais críticos etc. – e, claro, a presença da China na economia brasileira. O problema para eles é que os protagonistas do golpe em 2016 foram massacrados e os herdeiros daquilo são os bolsonaristas, hoje na linha de frente como quinta coluna assumida.
O governo Lula fará o possível para não escalar um conflito direto com os Estados Unidos, porque não se trata de um conflito binário. A nossa disputa é interna. Há um setor que pretende preservar a todo custo o melhor relacionamento possível com os Estados Unidos e temos os bolsonaristas que operam como a encarnação não só de Trump, mas da direita norte-americana. Vivemos a conjunção de três questões por muito tempo dissociadas: a social, nacional e democrática.























