Sábado, 6 de dezembro de 2025
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A violência policial nas periferias brasileiras, a repressão contra manifestantes nos Estados Unidos e a violência em Gaza não são episódios isolados, mas parte de uma mesma lógica global de controle e exclusão. Para o pesquisador norte-americano Chenjerai Kumanyika, há elos materiais entre esses contextos, que vão desde a circulação de tecnologias de segurança até programas de treinamento entre polícias norte-americanas e forças israelenses.

Professor assistente da Universidade de Nova York e host do programa Empire City, Kumanyika disse a Opera Mundi que o investimento massivo em policiamento, em detrimento de políticas sociais, culturais e de proteção trabalhista, fortalece práticas autoritárias e põe em risco a democracia em diferentes partes do mundo.

A polícia é sobre o uso da força. Seus integrantes não são treinados para compreender as causas dos problemas, mas para aplicar mecanismos coercitivos e violentos. Se nos importamos com a democracia, precisamos reconhecer essa contradição”, afirmou.

Kumanyika descreve as conexões materiais e ideológicas entre esses contextos, argumentando que o investimento massivo em aparatos policiais representa uma visão antidemocrática da sociedade. 

Leia a entrevista de Opera Mundi com Chenjerai Kumanyika na íntegra:

Opera Mundi: considerando as estruturas de poder e opressão, como o senhor analisa os paralelos entre a violência policial nos EUA e a violência de Estado em contextos como o Brasil, com operações em comunidades?

Chenjerai Kumanyika: é complexo comparar os EUA com o Brasil, pois a escala da violência policial em São Paulo é avassaladora. As pessoas aqui ficam chocadas com a situação local, que é inaceitável, mas quando cito que seis mil pessoas são mortas por ano, o espaço é ainda maior. Quero ser respeitoso com essa diferença de dimensão. Apesar disso, vejo semelhanças, mas não desejo utilizar esse contraste da maneira como alguns nos EUA poderiam fazer.

Um ponto que conecta os dois países é o investimento no policiamento como solução para problemas sociais. Quando se desvia verba de áreas como programas culturais, segurança social e proteções trabalhistas para armamentos e diferentes corporações policiais, está-se optando por uma visão específica do que constitui uma sociedade boa. Tanto nos EUA quanto no Brasil, houve investimentos tremendos no policiamento. No entanto, o que se financia é, em sua essência, antidemocrático.

A polícia é sobre o uso da força. Seus integrantes não são treinados para compreender as causas dos problemas, mas para aplicar mecanismos coercitivos e violentos. Se nos importamos com a democracia, precisamos reconhecer essa contradição. O Brasil é muito instrutivo a esse respeito. O país saiu de um período fascista e foi inspirador ver Jair Bolsonaro ser condenado, apesar das ameaças de Donald Trump. Esse fato foi importante porque demonstra como Bolsonaro foi capaz de utilizar a polícia a seu favor, assim como Trump faz atualmente.

Mesmo para quem acredita que a polícia garante segurança ou gera empregos, é preciso reconhecer que, nas mãos de líderes com visões fascistas, ela se torna uma força terrível, perversa e violenta. É isso que estamos vivendo agora.

E em relação à Palestina, especialmente no que tange à racialização e à militarização da segurança pública, quais são os paralelos entre a polícia dos EUA e a militarização em Gaza?

Desde o início deste genocídio em Gaza, algumas pessoas compararam a atuação do Exército de Israel com a repressão dos EUA a manifestantes pró-Palestina e outros grupos desumanizados e chamados de terroristas. No entanto, essas conexões não são meramente metafóricas, são materiais. A polícia norte-americana realiza treinamentos intensivos em Israel. O NYPD [Departamento de Polícia de Nova Iorque], por exemplo, tinha integrantes presentes no país no dia 7 de outubro para esse fim.

O ex-prefeito Eric Adams declarou que traria para Nova York a tecnologia utilizada em Israel. A questão é que essa mesma tecnologia é empregada pelo Exército israelense para sustentar uma ocupação, um genocídio e um regime de apartheid amplamente reconhecido. Ao importá-la para bairros, como Brooklyn, Bronx e Queens, essa estrutura é direcionada não apenas contra palestinos, mas também contra sudaneses, congoleses e brasileiros. Dessa forma, as instituições estão materialmente embutidas umas nas outras.

Se observarmos os investimentos e orçamentos, por que ainda enviamos financiamento, armas e treinamento? É crucial reconhecer esses elos materiais. Os recursos destinados às Forças de Defesa de Israel são, na verdade, retirados da população local, que luta pelo necessário para sobreviver.

Apesar do avanço do autoritarismo, Chenjerai Kumanyika vê na coragem dos protestos atuais um caminho para desmontar o poder policial

Apesar do avanço do autoritarismo, Chenjerai Kumanyika vê na coragem dos protestos atuais um caminho para desmontar o poder policial
Eino Sierpe / Flickr

Como você vê a atuação policial durante o governo Trump, principalmente com o envio de tropas para cumprir seus desejos?

É importante notar que Trump, assim como Bolsonaro e [Viktor] Orbán, ataca conquistas alcançadas por lutas por direitos humanos. Uma de suas ações foi eliminar os decretos de consentimento federais, que submetiam departamentos de polícia com histórico de violência e má conduta à revisão do governo federal. Muitos argumentavam que esse mecanismo era ineficaz, pois os problemas persistiam mesmo após as revisões. No entanto, era uma forma de prestação de contas. Trump encerrou todos eles, eliminando qualquer processo de responsabilização.

Além disso, ele está ativando e expandindo o poder policial em Washington D.C. e criando novos tipos de forças, como a ameaçada em Memphis. Também está emitindo ordens executivas que visam protestos e rotulam grupos como antissemitas, criando uma estrutura para classificar qualquer oposição, como o movimento pela Palestina, como terrorista.

A longo prazo, o desfecho depende da capacidade de organização das pessoas. Recentemente, estive em um protesto contra Netanyahu na ONU, com milhares de pessoas nas ruas. Fiquei impressionado com a coragem daqueles imigrantes e indivíduos vulneráveis. Trump esperava que a população recuasse e ficasse aterrorizada, mas sua repressão excessiva está unindo e indignando as pessoas. Até mesmo quem estava descontente com o Partido Democrata começa a perceber o perigo da repressão policial.

Como mostramos em Empire City, os EUA nem sempre foram um país que amava a polícia. No início de sua história, as pessoas rejeitavam a ideia de forças uniformizadas por terem acabado de sair da ocupação britânica. Os próprios policiais protestaram contra o uso de uniformes baseados nos dos britânicos. Como disse Miriam Kaba, “as coisas nem sempre foram assim e as coisas nem sempre serão assim”. Precisamos aprender com os líderes brasileiros.

Nova York está passando por eleições para prefeito. Há possibilidades de mudanças nas forças da NYPD?

Isso será um verdadeiro desafio. Zohran Mamdani, um candidato com raízes no Partido Socialista Democrático, lidera uma campanha inspiradora com uma crítica clara à polícia. No entanto, caso se torne prefeito, estará no comando da instituição. A perspectiva interessante é focar nas propostas de Zohran para uma segurança pública que redistribua o poder da polícia e observar quem resiste a essas mudanças.

Há uma diferença na polícia norte-americana comparando o antes e depois do movimento Black Lives Matter?

Sim, o Black Lives Matter teve um papel crucial na educação política do país. A triste notícia é que a polícia, com recursos tremendos — como 86 profissionais de relações públicas apenas em Nova York — e o poder dos sindicatos, respondeu aos protestos de uma forma que, no final, a fortaleceu.

Precisamos de movimentos organizados e sustentados que possam exercer influência. O que aprendemos ao longo da década do Black Lives Matter é que estar nas ruas é necessário, mas não é suficiente. É preciso ter formas organizadas de poder dentro e ao redor do governo, além de uma visão de futuro. Em 2020, o grito de “cortar a verba da polícia” foi eficaz por direcionar a atenção para o financiamento, o que antes não acontecia.

Em relação aos paralelos entre o ICE [Serviço de Imigração e Alfândega], o NYPD ou outra polícia?

O ICE é uma instituição nova, que não existia há 30 anos. Vemos seus agentes mascarados sequestrando pessoas, espancando e separando famílias. Após décadas de retórica que desumaniza os imigrantes, criou-se uma sede por punição e violência. Trump está, de forma perversa, saciando essa sede. Agora, felizmente, começamos a ver uma resistência real contra o ICE. As pessoas estão, lentamente, revidando.