Genocídio e racismo: livro revela origens da hegemonia política e econômica de São Paulo
Em 'Holocausto Paulista', Leonardo Sacramento fala do genocídio dos kaingang, etnia indígena que ocupou até 40% do estado até ser dizimada no começo do século 20
Holocausto Paulista: o genocídio dos kaingang sob o mito da paulistanidade (Telha, 2025), do pedagogo e professor Leonardo Sacramento, é uma daquelas leituras que viram a chave da nossa percepção sobre a realidade, sobretudo para aqueles que cresceram ouvindo que São Paulo é a “locomotiva do país”. A partir do genocídio dos kaingang, etnia indígena que ocupou entre 30% e 40% do estado paulista até ser dizimada no começo do século 20, o autor mostra como a elite paulista construiu um projeto de hegemonia política e econômica ancorada em uma teoria racial e um arcabouço jurídico que justificava práticas genocidas.
“Não é possível compreender a acumulação de capitais no Brasil desvinculado de processo de genocídio. E isso se dá em qualquer estado, porque São Paulo, de certa forma, construiu o paradigma para o processo de ocupação do solo ao longo do século 20”, afirmou o professor da EMEF Paulo Freire e pedagogo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo.
A Opera Mundi, ele contou que o tema surgiu ao ler uma nota de rodapé, que mencionava as chacinas no Noroeste paulista durante as pesquisas sobre a classe dominante brasileira enquanto escrevia seu outro livro O Nascimento da Nação: como o liberalismo produziu o pro-fascismo brasileiro.
Ao buscar um mapa da Província de São Paulo de 1868, Sacramento encontrou uma extensa região denominada “territórios habitados por indígenas ferozes”. Em outro mapa, publicado 10 anos depois, o mesmo território era classificado como “terrenos despovoados”. “Isso chamou a minha atenção, porque o grosso dos ataques contra os povos indígenas ocorreram no começo do século 20, e a informação do mapa demarcava um apagamento epistemológico prévio ao genocídio”.
Leia a entrevista na íntegra:
Opera Mundi: quem eram os kaingang?
Leonardo Sacramento: há uma longa discussão sobre a origem dos kaingang, porque no final do século 19 e começo do 20 havia uma classificação que dividia os indígenas entre tupis e tapuias. Os tupis seriam os civilizáveis e uma das gêneses da formação do verdadeiro brasileiro; já os tapuias eram considerados selvagens, os que não se deixaram ser catequizados e fugiram para o sertão. Essa ideia era hegemônica e sustentada, não só pelos paulistas, mas pela intelectualidade que se organizava em torno do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB).
Os kaingang, também chamados de “coroados” em função do ornamento que usavam, foram aleatoriamente classificados como tapuias, embora fossem do ponto de vista antropológico descendentes dos tupis. Eles habitavam uma extensa região que passa por Bauru, Presidente Prudente até Araçatuba e viviam basicamente em ranchos, com 140 a 230 pessoas reunidas.
Foi essa classificação racial que permitiu que eles fossem exterminados a partir de um ordenamento jurídico construído pelos próprios fazendeiros e pelas principais famílias do estado de São Paulo que obtiveram a posse na regulamentação das terras indígenas.
O interesse era a terra roxa, o café?
Na visão da época, a terra que não fosse utilizada economicamente não tinha função social e a única forma de utilizar economicamente era plantando, produzindo e comercializando, no caso, o café. No entanto, há um problema político mais importante do que isso.
A classe dominante paulista construiu um conjunto muito significativo de instituições com o objetivo de rivalizar com as instituições nacionais. Como existia o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ela criou o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Havia a Academia Brasileira de Letras, então criou a Academia Paulista de Letra e assim por diante.
Isso porque a classe dominante paulista tinha uma teoria racial sobre si. Segundo essa teoria, os paulistas seriam superiores porque eles seriam descendentes exclusivamente da mãe tupi, sempre da mulher, com o pai português. Assim, eles se diferenciavam dos demais brasileiros, sobretudo os nordestinos, descendentes dos tapuias e dos africanos.
Sob essa perspectiva, os paulistas estariam fadados a construir uma sociedade desenvolvida nos moldes europeus e, neste sentido, os territórios do estado de São Paulo se tornavam vitais nessa empreitada adotada pelo governo de Vicente Azevedo (1888-1889). Os paulistas entendiam que não havia possibilidades de construir o estado de São Paulo e se portar como uma elite pioneira da classe dominante brasileira, enquanto não dominassem esse espaço vital da paulistanidade em seu próprio território.
Como se davam essas perseguições?
Havia um método. Os chamados “caçadores de indígenas” visavam eliminar a maior quantidade possível de pessoas e criavam, para isso, a ideia de que as kaingang eram os criadores do conflito, o que é característico de uma visão supremacista que pretende eliminar um grupo social. Em geral, eles iam em caçada, em grupo e procuravam atacar à noite, porque teriam menos resistência, embora ela fosse nula. Pouquíssimos matadores eram atingidos ou morriam. Eles entravam nos ranchos nas primeiras horas da manhã e procuravam matar a maior quantidade possível de pessoas, depois queimavam os corpos.
O memorialista Amador Cobra tem um relato que merece a leitura. Ele diz assim:
“Encontrando-se com as índias, a umas aprisionam, a outras matam, bem como os indiozinhos, aos quais conta-se que chegavam a levantar do chão ou da cama e atirá-los para o ar e espetá-los em ponta de faca. Outra vez, tomavam-nos pelos pés e davam com as suas cabecinhas nos paus, partindo-as. As índias grávidas, rasgavam-lhes o ventre e depois de finda a carnificina, amontoavam os cadáveres sobre os quais lançam fogo, bem como aos ranchos. Variando de tática de quando em vez, nem sempre impunham o fogo; mas deixavam substâncias venenosas nos utensílios de cozinha e nos alimentos ali guardados para que fosse vitimado quem porventura sobrevivesse. Feito isso, retiravam-se com os prisioneiros, geralmente só mulheres, um outro rapazinho que o chefe conduzia para a fazenda na situação de sendo escravizados”.
Esse é um ponto importante porque eles viviam disso, fazia parte da economia da região o processo de escravização. Normalmente as sobreviventes eram mulheres fadadas à violência sexual e ao casamento forçado com algum homem “dito civilizado”, naquela noção de “índia pega no laço”.
Havia alguma reação contra essas mortes na época?
Não, havia uma imputabilidade sobre assassinatos dos tapuias. Não era considerado crime matá-los. Aliás, pelo contrário, há um decreto de 1905 que autoriza a própria Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo a matar tapuias ou a utilizar armas contra eles. Existe um ordenamento jurídico do ponto de vista da matança, outro ordenamento jurídico em termos de posse e regulamentação das terras enquanto propriedade privada e uma teoria racial na construção de uma ideia de paulistanidade. É um genocídio.

Em ‘Holocausto Paulista’, Leonardo Sacramento fala do genocídio dos kaingang, etnia indígena que ocupou 40% do estado até ser dizimada no começo do século 20
Arquivo pessoal
Quando acontece a Independência do Brasil, o José Bonifácio escreve dois textos, um sobre a emancipação dos escravos africanos e outra sobre os indígenas. No caso da escravização, ele defendia a abolição gradual e uma espécie de reforma agrária entendendo a questão do povoamento de um país com as dimensões continentais do país. No caso dos indígenas, ele vai classificá-los como preguiçosos que deveriam ser educados, inclusive, ele defendia a criação de uma política em que homens brancos se casassem e tivessem filhos com mulheres indígenas. Na verdade, é um texto sobre eliminação. Isso criou um arcabouço jurídico no Império que instituiu a noção jurídica sobre o indígena como incapaz.
No Código Civil de 1916, o incapaz não podia ter propriedade privada. O indígena, assim como o escravo e o liberto, não podia ter terras. Ele sempre foi considerado incapaz juridicamente e não tinha um estatuto próprio, dependendo exclusivamente da decisão dos fazendeiros. Mesmo que se tivesse feito dinheiro para comprar terras, não ia nunca conseguir comprá-las. Era considerado “ingênuo” e essa noção de ingenuidade, do ponto de vista cognitivo racial, mediava as noções jurídicas para o africano e os povos originários brasileiros.
Aí chegam os imigrantes europeus e houve uma grande promoção de distribuição de lotes de terras dentro da política de embranquecimento da população. A noção jurídica brasileira de propriedade privada sempre foi restrita a brancos. Isso chama-se segregação. Quando a gente analisa detidamente os dados e o ordenamento jurídico, você percebe literalmente a estruturação segregacionista.
E a Igreja na época?
Naquele momento, não eram mais os aldeamentos jesuíticos, mas aldeamentos religiosos que permaneceram ao longo de todo o século 19. No entanto, com a Proclamação da República, houve uma perspectiva bastante anticlerical. A Constituição de 1891 deu todas as prerrogativas para que as províncias arbitrassem como quisessem sobre as terras. Então, com a retirada dos religiosos abriu-se uma conjuntura ideal para o avanço militarizado sobre as terras indígenas.
Paradoxalmente, quem controlava o Sistema de Proteção dos Índios (SPI) eram os tenentistas e positivistas que receberam um apoio implícito dos religiosos para a criação dos aldeamentos que passaram a ser controlados pela classe dominante por décadas. Aí, eles literalmente “passaram o rodo”. Assassinaram o quanto puderam e se apossaram das terras fundando as cidades.
Vale lembrar que, no século 19, o Estado de São Paulo era econômica e politicamente insignificante e com poucos municípios. São Paulo passou a ter importância em função do ciclo de café a partir de 1870, culminando no auge em 1880, quando de fato assumiu a hegemonia econômica. Aí vemos a disputa pela hegemonia política com os republicanos cariocas, que os paulistas chamavam de “jacobinos”, por serem populares e revolucionários. Dessa disputa ganhou o republicanismo escravista, digamos assim, porque São Paulo foi o último que abandonou a escravidão. Eles defenderam o quanto puderam.
É essa elite paulista que vai se autoproclamar o suprassumo da modernidade, até porque ela se via como europeia. Mas, vale lembrar que tudo isso é uma lenda. Havia escravo africano no estado de São Paulo; escravo de tradição indígena em outras províncias. É tudo uma grande falsificação.
E a imprensa, como isso era noticiado na época?
O jornal mais importante era A Província de São Paulo, depois chamada O Estado de São Paulo, um veículo muito envolvido na economia da escravidão que passou a se portar, sobretudo no final do século 19, como uma instituição acadêmica. Lembre-se que não havia academia.
O Estado de São Paulo financiava campanhas como a do Sertões do Euclides da Cunha que, por sua vez, era do conselho do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Foi lá que ele leu pela primeira vez parte dos Sertões, em1898. O Estado de São Paulo se portava como uma instituição política, intelectual e acadêmica.
Ele é parte dessa construção, então, não era apenas normal, mas o jornal era um dos promotores da ideologia de naturalização do genocídio dos kaingang. Hoje a gente debate na rede social, revista científica, blogs. Na época, a discussão acontecia no jornal. O Estado de São Paulo foi um instrumento ideológico muito importante para naturalização dos kaingang como tapuias e, portanto, como “genocidáveis”, digamos assim.
Essa cultura genocida está no cerne da formação de ideia de São Paulo?
Sim. Não é possível compreender a acumulação de capitais no Brasil desvinculado de processo de genocídio. E isso se dá em qualquer estado, porque aí chegamos ao segundo ponto: São Paulo, de certa forma, construiu o paradigma para o processo de ocupação do solo ao longo do século 20.
Genocídio é uma ação deliberada de destruir um grupo nacional, étnico, religioso. Mas, esse conceito é a metade da verdade, porque para que a coisa ocorra é necessário a existência de uma teoria sobre raças. É inexorável. O que a elite paulista fez foi um genocídio porque ela deliberadamente construiu um arcabouço cabo jurídico e militar para matar povos indígenas, sobretudo a etnia específica dos kaingangs, em uma região extensa.
Havia o objetivo de construir e de dominar esse território para construir o que eles chamavam de uma nacionalidade paulista, ou seja, um território submetido aos verdadeiros brasileiros, aos paulistas. E fizeram isso dando função econômica à terra que, na visão dessa elite paulista, só poderia se dar por meio da produção e exportação de café.
Então, houve um genocídio paradigmático do ponto de vista das outras elites brasileiras, porque ele foi replicado em diferentes graus ao longo do século XX e ainda é replicado neste século, como vemos o genocídio dos guarani-kaiowás.
Seu livro nos permite localizar as origens fascistas que se expressam no bolsonarismo, por exemplo.
Nas décadas de 1910 a 1930, as elites se entregam ao fascismo. Em 1936, o governador de São Paulo, Armando Sales Oliveira, afirma que “devemos mirar no exemplo de Portugal, Espanha, Alemanha e Itália”. Há estudos que mostram que São Paulo teve uma grande organização nazista, o Clube Pinheiros era o Clube Germânia e teve importância na formação de células nazistas.
Quando Bolsonaro vai no Clube Hebraica, ele compara os quilombolas a gado e diz em seguida que “imigrante bom é o japonês, o italiano e o alemão”. É a tese, é a defesa, é o ideário, o mantra dessa elite paulista. O que vemos agora, no entanto, é uma radicalização popular. O bolsonarismo é o primeiro movimento de extrema direita a se popularizar.
Mesmo na ditadura civil militar (1964-1985), com os aparelhos todos, não havia um movimento de extrema direita popular. Agora ela é voluntária e orgânica. Isso é mérito do Bolsonaro. Ele criou um movimento popular de extrema direita capilarizado na sociedade.























