Da guerra às drogas ao capitalismo canábico: estudo analisa mercado da maconha
Pesquisador Paulo Pereira analisa processo inédito de legalização da planta
A guerra às drogas está em alta no debate internacional desde que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, a retomou em sua retórica agressiva para justificar a escalada de ameaças contra a Venezuela e agora a Colômbia. Segundo o professor de Relações Internacionais da PUC-SP Paulo Pereira, o que estamos vendo é a retomada de uma estratégia histórica dos Estados Unidos de usar essa justificativa como instrumento de deslegitimação de seus adversários políticos, visando a ingerência em países considerados inimigos.
A retórica repressiva, no entanto, convive com um processo global de legalização e mercantilização da cannabis, levantando questões que expõem a fragilidade do discurso bélico de Trump. Por mais de um século criminalizada, a cannabis é hoje um dos mercados de maior expansão no mundo, com diferentes graus de regulação em diversos países.
A Opera Mundi, Pereira conta as conclusões do seu estudo Cannabis Global CO: Conselho Fissurado (Educ/Fapesp, 2025), no qual observa o movimento de legalização da planta e a tentativa de apropriação do controle da droga pelas grandes corporações internacionais. “Queremos uma Ambev da maconha?”, questiona.
Em sua avaliação, o desafio central é evitar que a planta passe das mãos do tráfico, embasada pela retórica proibicionista, para as mãos de poderosas corporações com capacidade de pressionar governos contra regulações, aos moldes do que vemos com as chamadas big farmas. A legalização, para ele, deve ser uma oportunidade para transformarmos toda sorte de violências que sustentaram um século de repressão, em justiça social e reparação, incluindo as comunidades mais afetadas pelo encarceramento, violência policial e criminalização da planta.
Leia a entrevista de Opera Mundi com Paulo Pereira na íntegra:
Opera Mundi: Paulo, a questão do narcotráfico vem sendo usada como pretexto por Donald Trump para ameaçar a Venezuela e agora a Colômbia. Como você avalia o quadro na região?
Paulo Pereira: as declarações de Trump parecem caricatas porque é o estilo dele ‘forçar a mão’. Mas, observando o histórico do tratamento dos Estados Unidos em relação às drogas na América Latina, o que ele está fazendo é retomar um antigo relacionamento do país com a região, contrapondo uma postura mais diplomática de outros governos. Nos 40 anos, as drogas foram utilizadas pelos Estados Unidos para caracterizar de forma pejorativa e problemática os seus adversários políticos, tanto no âmbito doméstico, como no exterior. A inovação que eles trouxeram à geopolítica das drogas ocorreu na década de 1970 e 1980, quando encamparam a ideia do ‘inimigo estrangeiro’ na questão das drogas que, até então, era vista como um problema doméstico.
A partir daí, os Estados Unidos começaram a olhar os países como fontes de ameaças ligadas a grupos narcotraficantes e às substâncias em si, passando a rotular os adversários políticos como traficantes responsáveis por corromper a sociedade norte-americana, com base na ideia de que ela naturalmente ética e moralmente irretocável. A visão ideológica de que a ameaça vem de fora é uma construção ao longo de todo o século 20. Quando os Estados Unidos dizem que os governos venezuelano e colombiano são terroristas, o que está por trás é uma tentativa de deslegitimação dos seus adversários políticos para abrir as portas para uma ingerência. Trump está dando um recado político a adversários de governos eleitos na região, ao mesmo tempo, ele está mostrando a capacidade que os Estados Unidos têm, tanto em termos militares quanto de inteligência, para fazer valer seus interesses.
Esse processo tem um histórico na América Central, onde a Agência Central de Inteligência (CIA) atuou de forma recorrente em diferentes países, inclusive apoiando grupos de traficantes que davam sustentação a aliados do governo Reagan. Então, não importa muito quem é o traficante de drogas para os Estados Unidos, mas sim quem pode ajudar ou atrapalhar o seu projeto na região.
Não é um paradoxo esse discurso diante da mudança de status da cannabis no mundo, como mostra o seu livro, em que até o uso recreativo vem sendo admitido em várias regiões dos Estados Unidos?
Mais da metade dos estados norte-americanos contam com autorização do uso recreativo de cannabis. Certamente, o debate em relação a cannabis e ao tratamento ao longo da história desta planta evidencia a fragilidade do discurso preto no branco de Trump. É preciso mandar um caça explodir uma embarcação que supostamente está carregando maconha para os Estados Unidos?
O debate sobre a maconha é outro dentro das grandes corporações. O próprio Trump mencionou o reescalonamento da cannabis para retirá-la da lista de maior periculosidade da Agência Federal de Alimentos e Medicamentos (FDA). Naquela ideia de vamos pensar uma nova forma de lidar com essa droga e ganhar dinheiro com ela. No entanto, no mar do Caribe, o que vigora é ‘vamos mandar um míssil contra a embarcação’.
Como funciona a regulamentação internacional da cannabis?
Antes de ser uma guerra contra as drogas, houve uma tentativa de organização da economia internacional das drogas. No começo do século 20, os países, inclusive os Estados Unidos, criaram mecanismos de controle internacional das drogas, visando garantir um comércio estruturado, uma economia das drogas, capaz de definir quem poderia produzir ou não, como iria consumir e assim monopolizar o controle das drogas.
Depois da Segunda Guerra Mundial, as grandes potências fizeram um esforço gigantesco para criar as principais convenções internacionais hoje vigentes: as convenções de 1961, 1971 e 1988. Esse debate, no entanto, foi deixado de lado com a guerra às drogas, que se tornou uma orientação política devastadora no mundo como um todo e na América Latina, em particular, devido ao encarceramento em massa, a violência estatal e dos grupos organizados, a violência social. E a discussão das drogas, inclusive nas relações internacionais, por motivos óbvios, voltou-se à questão da guerra às drogas.
O estudo traz uma outra perspectiva, contando o que está ocorrendo neste momento com o mercado de cannabis, ou seja, como uma planta historicamente criminalizada e reprimida, por mais de um século – a cannabis é certamente uma das drogas mais reprimidas da história contemporânea – vem se tornando uma mercadoria legal e lícita.
O livro foca neste movimento que nos permite repensar processos sociais que foram esquecidos. É fundamental observar a violência e a injustiça social da guerra às drogas, mas também precisamos olhar isso em conexão com os interesses do capital e das grandes corporações para entender como funciona esse controle sobre as drogas.
Quando esse movimento começa? E como são as experiências internacionais de legalização da maconha?
Isso começa em 2012, quando dois estados norte-americanos, Colorado e Washington, legalizaram a cannabis para fins recreativos. Nessas experiências o que predomina é uma orientação muito mais pró-lucro. Há um processo corporativo se expandindo em todos os âmbitos: tipo de consumo, produção, propaganda autorizada e tudo o mais.
Na Alemanha, a situação de regulação é diversa. O país permitiu o uso recreativo de cannabis, mas não se pode haver lucro com a venda. As empresas não são permitidas. Você pode ter uma produção doméstica e a partir de cooperativas, basicamente são associações de pessoas que se unem em torno de cultivar maconha e compartilham essa produção entre os seus membros. As pessoas podem se filiar a essas associações e obter a cannabis, mas não podem vender para pessoas de fora.
Um outro modelo é o uruguaio. A legalização e regulação da cannabis para fins recreativos no Uruguai foi aprovada em 2013 e se constituiu a primeira experiência nacional na região de regulação. O Estado uruguaio assume a responsabilidade pelo controle da produção, com a abertura de editais direcionados a empresas para o cultivo com fins recreativos. Quem controla essa produção, definindo quantidade e características e gere essa distribuição é o Estado, a partir de um órgão criado com este fim.
O Canadá legalizou em 2018 e há as experiências recentes da África do Sul, Alemanha, Malta, para citar exemplos de flexibilização do uso recreativo, além de vários estados norte-americanos. E existem vários graus de permissão em outros países, alguns liberam apenas para o uso com fins medicinais, outros para os industriais. É o caso da China, que é extremamente proibicionista e violenta na repressão às drogas para o uso recreativo, mas é hoje a maior produtora de cânhamo do mundo.
O cânhamo detém baixíssimo efeito psicoativo e uma plasticidade incrível para o uso industrial na produção de têxteis, papéis, cosméticos, alimentação de animais. A França também produz cânhamo e aqui, no Brasil, ainda estamos discutindo se vamos autorizar o plantio do cânhamo. São, portanto, situações muito díspares. Poucos países proíbem totalmente, as gradações variam.
Qual é o maior uso da cannabis hoje?
O uso medicinal é o mais relevante no mundo em termos de disseminação. É o que tem evoluído e ganhado mais regulações. A cannabis é recomendada no tratamento de diversas enfermidades, como epilepsia, na mitigação dos efeitos da quimioterapia em casos de câncer, em algumas doenças relacionadas à formação neurológica, Parkinson etc. Há também uma expansão em casos de depressão, ansiedade, insônia.
Esses são os usos mais conhecidos, com pesquisas mais consolidadas, mas existe uma fronteira ainda meio indefinida. Como a cannabis foi proibida praticamente durante um século, as pesquisas médicas sobre a planta ainda engatinham. Isso gera muito questionamento, porque existem poucos medicamentos e testes em comparação com outras drogas já usadas e testadas na área médica.
Um dos primeiros usos foi na cura do glaucoma, que estava aparecendo muito nos EUA, nos anos 90. E paciente dizia no consultório que usava maconha e isso o ajudava. E os médicos passaram a pesquisar para entender o que acontecia. Muito da pesquisa científica parte desse tipo de experiência empírica que começa nos consultórios, com a percepção dos pacientes, e hoje a ciência está correndo atrás disso.
A cannabis, obviamente, não serve para tudo e é perigoso apostar nessa ideia, por outro lado, dizer “não pode usar de jeito nenhum” não faz sentido. É preciso mais pesquisas que deem uma margem de segurança sobre possíveis usos dessa planta.
Você trabalha com o conceito de “capitalismo canábico”, o que é isso?
A maconha está passando do proibicionismo ao capitalismo canábico, é um conceito que uso para demarcar a transformação da planta em uma mercadoria legal, submetida a todas as pressões neoliberais em torno da regulação. A redefinição da cannabis no circuito legal levou à criação de uma série de novos atores extremamente poderosos, as corporações de cannabis, e de novas dinâmicas de articulação entre Estado e capital na expansão dos interesses capitalistas e do lucro.
O grande dilema posto é: o que nós queremos, uma Ambev da maconha? As experiências com o lobby dessas corporações, que são gigantescas, mostram que elas detêm uma imensa capacidade de pressionar os países para não serem reguladas e, assim, estabelecer as próprias regras sobre os usos da planta. Nós queremos uma “Big Cannabis” como temos as “Big Farms”?

Paulo Pereira é autor de ‘Cannabis Global CO: Conselho Fissurado’ (Educ/Fapesp, 2025)
Arquivo Pessoal
Estamos falando de um mercado, por baixo, de 60 bilhões de dólares. É um mercado pequeno, mas apenas a ponta do iceberg porque a cannabis é um mercado não explorado, que não chega a 10% e está em expansão frente às políticas de legalização em todo o mundo. Não é à toa que você tem bolhas especulativas gigantescas. Em 2018, houve um aumento gigantesco das ações das empresas que atuam com a maconha, em particular as canadenses. Elas investiram fortunas, em um clima de muita expectativa, mas as regulações não aconteceram no ritmo desejado e o mercado consumidor não respondeu à bolha especulativa, então, ela estourou.
Empresas como Aurora Cannabis e a Canopy Growth – a principal corporação transnacional com atuação na América Latina – foram prejudicadas. O ano 2020 foi trágico para elas, com queda de 70% dos valores das ações, em curtíssimo tempo. Elas sofreram uma retração do mercado internacional e se voltaram às demandas domésticas, com mais clareza em termos de consumo. Com a queda das canadenses, quem hoje domina o mercado são as empresas norte-americanas.
Se realmente houver uma expansão da regulação para fins recreativos e o contínuo uso medicinal, que é consistente, nós veremos a expansão de um dos maiores mercados do mundo em termos agrícolas. A Embrapa, inclusive, soltou uma nota afirmando que se acontecer a regulação da cannabis para fins industriais no Brasil, em uma década, ela poderia chegar ao mesmo patamar da importância da soja hoje no país.
As consultorias dessas empresas criam um mundo idílico da maconha, dizendo que ela será a coisa mais rentável do mundo. Óbvio que há uma estratégia econômica nisso, de você incentivar novos investidores a botarem dinheiro neste mercado. Não é bem o que o mercado pode ser, mas o que elas querem que ele seja.
Quais os riscos em deixar o capital tomar conta da maconha?
É preciso tomar cuidado com a captura corporativa. Estamos falando de uma planta que detém substâncias que podem ter muitos usos médicos, que as pessoas utilizam para ter prazer e que tem vários usos industriais, mas ela é uma droga e como toda droga existem efeitos problemáticos. Se você autoriza as corporações a fazerem o que bem quiserem com esse mercado, deixando as pessoas à mercê da propaganda, sem conhecimento sobre o uso, você pode incentivar um problema de saúde pública.
As drogas precisam de informação sobre o cuidado que precisamos ter na forma como lidamos com elas; preocupação com saúde pública e com a educação, inclusive, compreendendo que as pessoas irão usar a maconha de qualquer jeito. Então, é melhor haver um controle e muita informação sobre este uso. É tão pernicioso deixar a drogas na mão do tráfico, cuja produção não temos nenhum controle, quanto na mão das corporações, que sem regras e sem controle do Estado, poderão fazer o que quiserem.
Na sua avaliação, qual a saída neste caso?
As regulações da cannabis vieram em grande parte por uma pressão muito grande dos mais variados movimentos sociais, como a Marcha da Maconha, organizações de cultivadores, país que utilizam a cannabis para tratar o problema de saúde de seus filhos, grupos e pessoas que batalham pelo fim da guerra às drogas, da violência policial e do Estado, contra o encarceramento em massa e o racismo. Essas forças criaram um movimento muito forte que foi a base de todo esse processo de regulação da cannabis no seu início.
Esses movimentos continuam pressionando para que essas regulações incorporem leis e normas voltados à orientação da justiça social. Ou seja, se você vai fazer a regulação, é preciso garantir a reparação das pessoas e comunidades atingidas com a guerra das drogas, e que viveram a exclusão social ao longo do tempo.
Você tem que dar a elas o direito ao acesso à planta, criando mecanismos institucionais para que fundos criados a partir da venda de cannabis e de impostos sejam revertidos em saúde, educação e inserção nesse mercado, seja em termos de licença ou cotas de cultivo, por exemplo, para os pequenos agricultores. Em suma: é preciso criar mecanismos que reflitam o histórico dessa planta. Não pode ser, simplesmente, “a partir de agora a cannabis é legal”.
Até porque existe toda uma questão da violência. A cannabis foi utilizada para reprimir e violentar comunidades, particularmente comunidades negra, latina e indígena ao longo de sua história. Portanto, simplesmente mercantilizar a planta e fazer com que ela faça parte do mercado legal, e possa ser comprada em um coffee shop qualquer, sem levar em conta essa história pregressa, é uma maneira da reforçar estigmas e violências criados em torno da maconha.
Se a transformação da cannabis para uma mercadoria legal for acompanhada de programas de justiça social, educação, preocupação com a saúde, reparação de comunidades, nós teremos construído um modelo absolutamente incrível, revolucionário e teremos nos melhorado enquanto sociedade. E mais: se conseguirmos fazer isso com a cannabis, teremos a oportunidade de repensar as dinâmicas de outros mercados agrícolas, que seguiram uma mesma lógica da violência ao longo do tempo, como o café, o tabaco, a cana de açúcar.
Nós precisamos de um modelo de regulação que seja responsável para os que vão consumir e para os que sofreram essas violências ao longo da história. Esse é o debate de fundo na discussão sobre a regulação. E, curiosamente, os Estados Unidos são um dos maiores protagonistas nessa discussão e na incorporação das drogas na questão da justiça social.
Há uma grande quantidade de experiências nos estados americanos, leis que foram incorporadas na dinâmica da reparação. Não é mais algo que “precisamos ver se dar certo”. As ações estão acontecendo nos Estados Unidos e já estão dando certo. Precisamos estar atentos a elas.























