‘Era como videogame, qualquer um podia ser vítima’, diz autor de denúncia sobre ‘turismo do tiro’ na Bósnia
Ezio Gavazzeni afirma que turistas circulavam pelas colinas de Sarajevo como atiradores e critica promotorias que 'ignoraram o horror por décadas'
“Era como um videogame, qualquer um podia ser vítima.” A descrição é de Ezio Gavazzeni, escritor italiano que levou à Promotoria de Milão uma denúncia formal sobre o chamado “turismo do tiro” durante o cerco de Sarajevo, na Guerra da Bósnia.
Segundo sua investigação, civis europeus teriam pago milícias sérvio-bósnias para atirar contra habitantes da cidade — escolhidos ao acaso, vistos apenas pela mira telescópica, tratados como alvos distantes de um jogo. Três décadas depois do conflito, Gavazzeni apresentou um dossiê de 90 páginas com relatos, documentos e testemunhas que apontam para a participação de italianos entre os autores desses crimes.
A Opera Mundi, Gavazzeni revelou como o documentário Sarajevo Safari (2022) foi crucial para destravar o caso e cunhou a expressão “indiferença do mal” para definir a frieza com que civis eram alvejados como em um videogame.
“Eram pessoas ricas, empresários, profissionais bem inseridos, com alta reputação. O denominador comum é a paixão por armas e caça, inclusive safáris na África. O paralelo é o mesmo: assim como vou à África e atiro em leões, ia a Sarajevo e ‘caçava’ pessoas. O conceito é idêntico”, disse.
Leia na íntegra a entrevista de Opera Mundi com Ezio Gavazzeni:
Opera Mundi: O que te levou a apresentar essa denúncia agora, depois de tantos anos?
Ezio Gavazzeni: bom, eu soube dessa notícia em 1995. Tinham saído dois artigos na Itália, um no Corriere della Sera e um em La Stampa, que falavam desse fenômeno. Mas, estranhamente, e essa é uma pergunta que deveríamos nos fazer, apesar da notícia ter saído na primeira página do Corriere, nenhuma promotoria decidiu investigar mais a fundo. Essa notícia me marcou, não esqueci, mas não sabia como avançar.
O horizonte ficou mais claro em 2022, com o documentário Sarajevo Safari, do diretor esloveno Miran Zupanic. Lá, aparecem duas testemunhas que viram grupos de turistas circulando pelas colinas de Sarajevo e, definitivamente, não eram militares sérvio-bósnios. Escrevi para Zupanic, contei que a notícia me impressionara em 1995 e perguntei se poderia me dar conselhos para continuar a pesquisa. Ele foi muito gentil, colaborativo, trocamos e-mails e ele me deu as primeiras pistas. Depois, segui o caminho, encontrei novas fontes, testemunhas e montei a primeira parte da investigação.
Esses artigos de 1995 já falavam especificamente em italianos envolvidos?
Em 1995 não se falava de nacionalidades. Quem menciona os italianos é Zupanic no documentário, por meio das testemunhas. Isso era crucial porque a Promotoria de Milão só investiga crimes cometidos por italianos. Em fevereiro de 2025 — sete meses atrás — protocolei minha denúncia. Em 7 de outubro, o procurador Alessandro Gobbis abriu oficialmente as investigações e confiou o caso ao ROS dos Carabinieri (departamento investigativo especial da polícia italiana). Na mesma tarde, entreguei todos os documentos adicionais que havia descoberto entre fevereiro e setembro. Formamos um dossiê de cerca de 90 páginas.
E neste dossiê também consta o relatório da ex-prefeita de Sarajevo, Benjamina Karić?
Sim. Quando saiu o documentário, em 2022, ela era prefeita e apresentou denúncia à Promotoria de Sarajevo, pedindo investigação baseada nos testemunhos. Mas a Promotoria de Sarajevo arquivou tudo, pois a Bósnia é uma pólvora. Reabrir esse caso reabriria feridas profundas. Os sérvios continuam dizendo que é uma lenda urbana inventada pelos ocidentais para desacreditá-los. Mesmo com provas, sempre dirão que não é verdade.

Ezio Gavazzeni apresentou dossiê com provas sobre ‘safári humano’ na Guerra da Bósnia
Divulgação / ICTY staff (Wikimedia Commons)
De quantas pessoas estamos falando?
Não posso dar números exatos, mas, dos italianos envolvidos… não são algumas dezenas. São muitos, muitos mais.
O perfil era de pessoas muito ricas.
Sim, porque esses fins de semana custavam muito caro. Eram chamados de “atiradores de elite do fim de semana”, pois chegavam na sexta e voltavam no domingo. Eram pessoas ricas, empresários, profissionais bem inseridos, com alta reputação. O denominador comum era a paixão por armas e caça, inclusive safáris na África. Um elefante custa 100 mil euros (cerca de R$ 600 mil); um leão, 200 mil (cerca de R$ 1 milhão). O paralelo é o mesmo: assim como vou à África e atiro em leões, ia a Sarajevo e ‘caçava’ pessoas. O conceito é idêntico.
Havia tarifação diferente para crianças?
Não posso confirmar nem negar. Faz parte do que foi depositado. Posso dizer que um safári custava o equivalente a um apartamento de classe média em Milão — de 200 a 300 mil euros por pessoa (cerca de R$ 1 milhão a R$ 2 milhões).
Você cunhou a expressão “indiferença do mal”. Pode explicar o conceito?
Sim. Passamos da banalidade do mal de (Hannah) Arendt para a indiferença do mal. No alvo da mira telescópica podia passar qualquer pessoa: criança, mulher, idoso… Não era um mal direcionado como no Holocausto. Aqui, qualquer um podia ser vítima. Por isso chamo de indiferença do mal. É como um videogame: você atira em tudo que vê. Há indiferença total pela vítima, que está a 600-700 metros de distância. Você não participa da dor, do sofrimento. Para você, é algo distante que precisa acertar.
O que espera da investigação agora?
Não sei, pois o procurador não me atualiza. As investigações começaram há um mês. Ainda serei ouvido pelos Carabinieri, mas as investigações são sigilosas. Depois, haverá depoimentos, buscas e, então, entenderemos.























