Sábado, 6 de dezembro de 2025
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O primeiro turno da eleição presidencial na Bolívia está marcado para este domingo (17/08). Dois candidatos conservadores lideram as pesquisas, o empresário e ex-ministro do Planejamento Samuel Doria Medina e o ex-presidente liberal Jorge “Tuto” Quiroga, levando à possibilidade da esquerda deixar o poder pela primeira vez em 20 anos. Diante do cenário, a doutoranda em Economia Política Mundial Tatiane Watanabe alerta para os perigos do retorno da direita na Bolívia.

Em entrevista a Opera Mundi, a pesquisadora do golpe que derrubou o governo de Evo Morales em 2019 lembra que apesar do racha no partido Movimento ao Socialismo (MAS) entre Morales e o atual presidente, Luis Arce, que levou a um mandado de prisão contra o líder indígena, “não há muitas tentativas” de deter o ex-mandatário, que está em seu reduto político em Cochabamba.

“Mas se a direita vencer, esse cenário muda completamente. Tuto Quiroga e Samuel Medina têm sinalizado em seus discursos que é preciso agir para prender Morales e usar da força policial ou militar para reprimir os protestos populares em Cochabamba”, analisa.

A mestre em Relações Internacionais pela UFABC adverte contra “um cenário violento” caso a direita chegue ao poder, relembrando o golpe de 2019 que instituiu o governo de Jeanine Añez — responsável pela repressão contra manifestações a favor de Morales, que deixou mais de 30 mortos.

Watanabe também prevê o aprofundamento da crise econômica no país caso algum dos candidatos de direita chegue à Presidência com suas “velhas lógicas neoliberais de aumento da participação do setor privado na economia”.

“A pauta da direita é fazer o contrário do que foi feito nos governos do MAS, então há riscos de reversão dos avanços do processo de mudança caso além da Presidência eles ganhem também o Legislativo, que darão à direita poder de alterar a Constituição [que entre muitas conquistas, estabeleceu a Bolívia como um Estado Plurinacional reconhecendo a diversidade étnica e cultural do país]’, afirmou.

Além das análises sobre um possível governo neoliberal na Bolívia, Watanabe e Opera Mundi conversaram sobre todo o contexto político que explica a eleição deste domingo e o racha entre Morales e Arce. Leia a entrevista completa:

Opera Mundi: Qual é o contexto político que explica esta eleição presidencial na Bolívia? O que está em jogo?

Tatiane Watanabe: Há uma eleição presidencial em que os dois candidatos que estão liderando as pesquisas eleitorais são de direita, algo inédito no país desde o início do proceso de mudança com a vitória de Evo Morales à Presidência em 2005.

Isso se dá por diversos motivos. O primeiro é a crise econômica do governo Arce, em que há alta nos preços dos alimentos e falta de combustíveis provocado pela falta de dólares, considerando que as reservas internacionais caíram de U$ 15 bilhões (R$82,5 bilhões) em 2014 para um pouco mais de U$ 2 bilhões (R$11 bilhões) agora em 2025. Isso vem causando uma insatisfação muito grande da população boliviana, que culpa a esquerda pela crise.

O segundo motivo é a crise política do principal movimento popular do país, que é o MAS (Movimento ao Socialismo), havendo um racha entre o ex-presidente Evo Morales e o presidente Luis Arce. O MAS é um partido-movimento, isso significa que é um partido formado pelos movimentos sociais do país, então um racha no partido é um racha nos movimentos também. O que se observa diante a baixa capacidade de mobilização popular de Arce, em comparação com Evo, é que enquanto Arce ficou com a direção do partido, com o aparelho partidário, boa parte da base saiu com Evo e o está apoiando no voto nulo. Outra parte pequena foi com Andrónico Rodríguez [presidente do Senado da Bolívia e candidato independente da esquerda]. Além disso, deve haver uma parte que não apoia mais nenhuma liderança.

Essas são as duas principais razões para explicar o fortalecimento da direita nas eleições e o enfraquecimento da esquerda, apesar de haver uma direita que também está rachada por enquanto. E o que está em jogo é o próprio processo de mudança, os avanços que garantiram a nacionalização dos recursos naturais e o reconhecimento da plurinacionalidade do país. Isso porque se a direita conseguir dois terços das cadeiras no Legislativo, tem a capacidade de alterar a Constituição com o apoio de um presidente de direita — na qual seus principais candidatos se posicionam contra tudo que foi feito nos governos do MAS.

Levando em consideração as pesquisas, o que podemos esperar dos resultados deste primeiro turno?

O que consigo visualizar é que haverá um segundo turno pela primeira vez na história do país. Isso porque o segundo turno foi inaugurado na nova Constituição Política de 2009, e desde então o MAS conseguiu garantir suas vitórias nos primeiros turnos, por meio da maioria absoluta ou mais de 10% de vantagem com o segundo colocado, como foi o caso da eleição de 2019.

Evo Morales, impedido de disputar a eleição, tem incentivado movimentos populares ao voto nulo
Evo Morales Ayma/X

Agora se vamos ter dois candidatos de direita no segundo turno, tudo indica que serão Samuel Doria Medina e Tuto Quiroga. Não consigo afirmar se Andrónico Rodríguez vai conseguir chegar ao segundo turno. Sua base está contando com os votos do campo, como já ocorreu em ocasiões no passado, em que a direita parecia que iria levar a Presidência, mas então os votos do campo, que demoram mais para serem contabilizados por conta da logística, chegaram e Evo ganhou. No entanto, a configuração campo-cidade tem sofrido alteração com o aumento da classe média urbana. E também não é fácil essa transferência de votos do campo que ia pro Morales para o Rodríguez, em especial porque o ex-presidente não está o apoiando.

Ademais, há um alto número de votos indecisos, nulos e brancos, que não sabemos identificar para qual candidato vai. Podem haver votos tímidos da base de Morales que votarão calados em Rodríguez para tentar garantir um candidato de esquerda no segundo turno, ou votos  que não veem mais esperança na esquerda e caíram no discurso de renovação da velha direita, que se mascara de nova.

A esquerda se fragmentou e a direita pode alavancar. Como você avalia a atual correlação de forças no país? Por que Andrónico Rodríguez não conseguiu ocupar espaço nesta corrida eleitoral?

Rodríguez não é Evo Morales. No governo Morales, Rodríguez era apontado como o futuro do MAS, uma possível figura para substituir o líder indígena na Presidência. Ele era considerado pupilo do Evo pelo seu passado comum, como dirigente cocalero [movimento social e político] de Cochabamba, de origem campesina e indígena. No entanto, o Evo Morales parecia não dar muito espaço para outros quadros crescerem, tudo era muito centralizado em sua figura.

Estou na Bolívia faz quase um mês e participei de uma das últimas atividades de campanha de Rodríguez em El Alto, região com alta concentração de população indígena e forte tradição de luta social no país. Foi lá que explodiu a Guerra do Gás em 2003 [protestos contra a decisão do governo liberal de Gonzalo Sánchez de Lozada em exportar o gás natural do país sem antes atender sua demanda interna] que fez parte das jornadas de mobilização antineoliberal que possibilitaram a chegada de Morales à Presidência.

Contudo, vi uma base social que não se empolgava muito com o discurso longo de Rodríguez. Os gritos políticos de “Andrónico presidente” não tinham forte aderência. Isso pode ser por conta da desesperança de vitória diante dos resultados das pesquisas, mas me pareceu que era algo além. Rodríguez não tem o carisma de Evo, e seu programa político não está claro. E o que vi no debate eleitoral em que participou, é uma figura que não conseguia sair dos slogans e apresentar de forma clara o que pretende fazer para tirar o país da crise.

A Bolívia chega nesta eleição com o MAS rachado. Evo Morales denuncia perseguição de Luis Arce, mesmo este não indo para a reeleição. O que deu errado?

Considero que existam alguns fatores relacionados à falta de formação e fortalecimento de outras lideranças, que ficou muito centralizada em Morales, mas também com um afastamento de Arce das bases sociais que além de terem sustentado o processo de mudança no país, também sustentaram em última medida um governo de esquerda no poder.

Como você avalia o governo de Luis Arce?

Luís Arce foi eleito com 55% dos votos. Enxergo que um governo de esquerda precisa sempre estar atento às necessidades e reivindicações do povo que o elegeu, e não foi isso que Arce fez. Ele não considerou a importância da base social para a manutenção da esquerda no poder. Evo Morales conseguiu governar durante 14 anos e avançar nas pautas populares porque ele tinha uma base social forte para garantir sua Presidência. Em 2019 ele sofreu um golpe mas a base social mobilizada conseguiu garantir o retorno do seu partido menos de 1 ano depois.

A Bolívia tem uma esquerda mobilizada, mas também tem uma direita mobilizada, então para um governo de esquerda governar é necessário ter contato com essa base, agir de acordo para não perdê-la. Se você prioriza a relação com os dirigentes dos movimentos, que também já perderam o respeito dessa base, você perde a base inteira. Avalio que foi justamente isso que aconteceu com Arce, e a pesquisa eleitoral que demonstrava que ele teria somente 1% das intenções de votos dão certo respaldo a isso. Com a saída de Morales, Arce ficou com um partido que já não tinha base.

Essa crise econômica que a Bolívia está vivendo não aconteceu do nada, a economia boliviana já demonstrava uma desaceleração desde o último governo Morales. Arce tendo sido o ministro da Economia desse governo sabia que tinha que se preparar para uma possível crise, uma crise que não seria somente econômica, mas também política, considerando o golpe de 2019. Mas no seu governo ele priorizou mais colocar pessoas de sua própria confiança nos cargos do que pessoas com competências técnicas para eles.

Na sua avaliação, a decisão do Tribunal Constitucional da Bolívia de impedir Evo de disputar essas eleições foi política?

Eu considero que sim. Isso porque na Constituição o que consta é que uma pessoa não pode se reeleger mais de uma vez de forma contínua, no entanto a candidatura de Evo Morales seria igual a do Lula no Brasil, já que houve o período de 2020-2025 que ele não ocupou o cargo de presidente. Apesar de também concordar com as análises que apontam para uma recusa de Morales de deixar o poder, acho que as questões que levaram à crise do maior partido de esquerda do país são maiores que isso. Houve medidas arbitrárias e persecutórias do governo Arce, como a questão do lítio — em que o projeto de industrialização em voga desde o governo Morales foi considerado falido sem qualquer tipo de transparência e os principais idealizadores do projeto foram acusados de corrupção, um deles, Carlos Montenegro, se suicidou neste processo e o outro, Luis Alberto Echazú encontra-se em prisão domiciliar.

Neste semana, Evo concedeu uma entrevista à AFP falando sobre a continuidade de sua militância caso a direita vença. O que podemos esperar dele e de seus apoiadores se a esquerda perder o poder?

Evo Morales encontra-se na região do Chapare, em Cochabamba, para evitar ser preso, já que ele há um mandado de prisão contra ele. Agora no governo Arce não está havendo muitas tentativas de efetuar este mandado porque sabem que isso gerará violência contra sua base, que está protegendo-o, e também porque uma prisão de Morales faria dele um mártir.

Se a direita vencer, esse cenário muda completamente. Tuto Quiroga e Samuel Medina têm sinalizado em seus discursos que é preciso agir para prender Morales e usar da força policial ou militar para reprimir os bloqueios de estradas em favor de Morales que têm ocorrido em Cochabamba. Espera-se então um cenário violento caso a direita ganhe, como ocorreu no golpe em 2019 em que o governo Añez foi responsável por mais de 30 mortes nas manifestações a favor de Morales.

Caso a direita vença, o que pode ocorrer na Bolívia? Quais são as principais pautas que o neoliberalismo quer avançar?

Além de maior violência contra mobilizações populares, é esperado um aprofundamento da crise econômica no país. Isso porque as propostas dos dois principais candidatos da direita são a velha lógica neoliberal de aumento da participação do setor privado na economia, seja interno ou externo, políticas de austeridade e pedido de empréstimo para órgãos internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI). Além do mais, há defesas de aproximação aos Estados Unidos, e um distanciamento de países considerados “antidemocráticos” como Venezuela e Cuba.

A pauta da direita é fazer o contrário do que foi feito nos governos do MAS, então há riscos de reversão dos avanços do processo de mudança caso além da Presidência eles ganhem também dois terços do Legislativo, que darão à direita poder de alterar a Constituição.