Sábado, 6 de dezembro de 2025
APOIE
Menu

O Brasil sedia, a partir da próxima semana, o maior evento global sobre as mudanças climáticas, a 30ª Conferência das Partes (COP) sobre Mudança Climática e inova nesta edição trazendo a Cúpula dos Povos, um espaço de articulação dos movimentos sociais.

Segundo a Coordenadora do Programa de Clima e Energia para a América Latina da Fundação Rosa Luxemburgo, Elisangela Soldatelli, se houver alguma novidade relevante durante a COP30, ela deverá surgir desse espaço. “É muito provável que a inovação venha muito mais da Cúpula dos Povos do que das cúpulas dos governos”, afirma.

Em entrevista a Opera Mundi, a cientista política avalia que as COPs têm funcionado como “instrumentos de adaptação do capitalismo à crise climática” e crítica as iniciativas em torno do mercado de carbono, como o REDD+ e o Fundo Florestas Tropicais para Sempre (TFFF).

Em sua avaliação, essas medidas acirram o processo de financeirização da natureza, transformando a floresta em ativo financeiro. “A COP não é um espaço para a promoção de mudanças estruturais profundas”, afirma, destacando que esses modelos reforçam desigualdades e ameaçam os modos de vida dos povos da floresta.

Ela também convida a todos a conhecerem a coleção “Politizando o clima: poder, territórios e resistências”, organizada pela Fundação Rosa Luxemburgo, que aborda questões como energia e neocolonialismo, mercado de carbono, mudanças climáticas entre outros temas.

Acompanhe a entrevista.

Opera Mundi: A COP 30 começa com a Conferência dos Líderes a partir desta sexta-feira (07/11) em Belém. O que nós podemos esperar deste evento?

Elisangela Soldatelli: É importante termos em conta para quem está lucrando com esta COP e quem pode ser silenciado nesse processo. As COPs têm sido um instrumento de adaptação do sistema capitalista às crises ambientais e à crise climática.

As Conferências têm promovido muitos conceitos e políticas como a questão do mercado de carbono, o REDD+ (Redução de Emissões provenientes de Desmatamento e Degradação Florestal) e agora esse Fundo global (Florestas Tropicais para Sempre – TFFF) apresentado pelo governo como a grande solução.

Na Amazônia, especialmente, isso se agrava em termos do avanço do neo-extrativismo que vem transformando a floresta em commodity e fortalecido a aliança entre governos, empresas e setores que violam os direitos das comunidades tradicionais.

A COP é um espaço limitado e temos de ter isso em mente. Por outro lado, é uma oportunidade de denúncia, mobilização e pressão social e temos no Brasil organizações sociais e ONGs bastante resistentes ao modelo hegemônico.

Além disso, teremos a presença da imprensa internacional em Belém, que poderá ampliar as reivindicações de pautas concretas e históricas, como a demarcação de terras indígenas, reforma agrária, regularização fundiária e políticas públicas de base que não entrarão nas discussões programadas.

O evento também será um momento de fortalecimento dos movimentos sociais e, em particular, dos movimentos amazônicos no sentido de organizar, reorganizar ou seguir organizando forças contra hegemônicas em direção a outros mundos possíveis que precisamos contemplar.

Como você avalia essas propostas em torno do mercado de carbono?

A COP não é um espaço para a promoção de mudanças estruturais profundas. Existem muitas limitações, disputas e interesses em jogo. Todas essas políticas em torno de mercado de carbono, o próprio Fundo, traz uma lógica em que tudo é apresentado como mensurável e negociável e a Amazônia vista como uma zona de sacrifício.

O REDD+, por exemplo, é apresentado como uma solução para conter e combater o desmatamento e as mudanças climáticas, mas, na prática, ele tem se mostrado uma ameaça aos territórios e aos modos de vida dos povos indígenas e das populações tradicionais.

A Fundação Rosa Luxemburgo acompanha esse processo. A maior crítica a esse processo é que ele promove uma financeirização da natureza, transformando as florestas, os territórios e os modos de vida dos povos tradicionais e comunidades indígenas em mercadoria.

Essas comunidades estão, simplesmente, deixando de praticar suas atividades tradicionais, como plantar, caçar, e de circular livremente por seus territórios frente ao controle e vigilância sobre as áreas onde esses projetos são implementados.

Isso representa uma forma estrutural e simbólica de violência, que não só ameaça a autonomia desses povos, mas também contribui para um genocídio cultural, apagando saberes, práticas ancestrais e s vínculos com a terra e o território.

São também mecanismos que reforçam as desigualdades, porque permitem que as grandes empresas continuem poluindo e comprando créditos de carbono, enquanto seguem desmatando, minerando e expandindo todo o processo vinculado com o agronegócio e as grandes monoculturas.

Belém sedia a COP 30, o maior evento global do clima, a partir da próxima semana
Ricardo Stuckert / PR

O Fundo global (TFFF) também entra nessa via?

O governo brasileiro está propondo um pagamento para os países tropicais pela preservação de suas florestas, a partir de um atendimento futuro dos investimentos internacionais. Eles apresentam como uma inovação um modelo que tem recebido muitas críticas de diversas organizações, que o acusam ser mais uma ferramenta de financeirização da natureza.

A proposta, basicamente, é transformar a floresta em um ativo financeiro, subordinando os direitos coletivos a critérios do mercado. Seria um mecanismo de financeirização da floresta, quando o que está em jogo não é apenas a preservação ambiental, mas o controle dos territórios e garantia da soberania dos povos que vivem nas florestas.

A proposta visa captar U$ 125 bilhões de dólares em recursos públicos e privados para pagar os países tropicais pela preservação por hectare conservado, com penalidades em caso de desmatamento nessas áreas. Os rendimentos dos investimentos desses fundos – os rendimentos, friso – serão repassados para os países, conforme critérios de desempenho ambiental segundo uma série de métricas.

Esse fundo apresentado como inovador ignora totalmente as causas do desmatamento, por exemplo, a grilagem de terras, o avanço do agronegócio sobre as áreas da floresta, a falta de demarcação de terras. É a lógica capitalista que enxerga a floresta como moeda de troca e não como um território vivo.

Além disso, com o Fundo, você vai precisar do mercado financeiro. Alguns países vão apresentar e aportar um valor desse Fundo, mas o resto ficará para o mercado financeiro, para o setor privado, que só irá entrar se a proposta for extremamente rentável.

O governo brasileiro não criou isso sozinho, existem muitos organismos por trás desse processo. Há também várias organizações internacionais que estão apoiando de alguma maneira, mas da mesma forma do REDD+, elas entram e aí descobrem que não é tudo isso.

Como você avalia escolha de Belém e as obras em curso?

Recentemente o governo assumiu as dificuldades, quando tivemos as greves dos trabalhadores da construção civil reivindicando direitos trabalhistas. No geral, são obras que de nenhuma forma respondem às necessidades reais da população que vive em Belém.

Houve um processo de asfaltamento de vias, principalmente no centro e entorno de onde vão acontecer as atividades, instalação de paisagismo em determinadas áreas. Mas, ficou visível que problemas graves da cidade de Belém, como saneamento, transporte precário, moradia, estão sendo ignorados.

Todos viram os valores dos hotéis e situações drásticas acontecendo, como a expulsão de locatários por proprietários que decidiram lucrar com o processo especulativo em curso. Para onde as pessoas vão nesse período? O que que vai acontecer em termos de especulação imobiliária, de aumento do custo de vida no geral, após o evento?

O que estamos vendo, mais uma vez, é a reorganização do espaço urbano a partir da lógica capitalista no marco de grandes eventos. Deveriam ser obras orientadas pelo direito à cidade, mas é um projeto para poucos, investidores ou visitante, em suma, para quem não é de Belém. O resultado é mais exclusão, mais desigualdades e provavelmente mais violência.

Você acha que a escolha de Belém foi um erro?

Não foi um erro. É um momento importante para dar visibilidade ao que está acontecendo na Amazônia, mas esse modelo fomentado por essas grandes conferências não traz soluções. Ele precisaria estar vinculado com políticas públicas no âmbito de países e estados, de forma mais profunda para gerar uma maior qualidade de vida.

Todos os relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) mostram que as populações mais vulnerabilizadas são as populações negras nas periferias das cidades e as populações que vivem em regiões mais afastadas.

Transformar floresta em ativo financeiro só reforça desigualdades’, afirma Elisângela Soldatelli
Acervo Pessoal

Com a chegada do governo Lula, tivemos mudança na política ambiental? Quais os entraves ainda?

Existe uma mudança bastante significativa, por outro lado, tem muitas pautas onde o governo está enfrentando oposição do Congresso. Em termos ambientais, antes de assumir, o governo Lula tinha muito forte a questão de ser uma referência em termos ambientais, mas não conseguiu cumprir muito com isso.

Todo o plano de transformação ecológica vinculado ao Ministério da Fazenda, por exemplo, apresenta poucos avanços e está muito mais vinculado com o mercado do que com outras transformações. Havia um discurso muito forte para fora, mas uma contradição importante principalmente com a questão do petróleo na floresta do Amazonas. Como que resolvemos, em um contexto que não é mais possível seguir explorando petróleo, combustíveis fósseis, aprovar algo assim?

Por outro lado, sem relativizar, muitos países estão fazendo exatamente o mesmo. Ou seja, as metas de redução são muito mais fictícias numericamente do que realmente para mudar o que estamos atravessando. Até a participação real dos países está em aberto.

A questão das metas, por exemplo, os países precisam entregar sua contribuição na redução das emissões e a grande maioria não entregou o prometido. Há uma falta de compromisso por parte dos países que assinaram principalmente o acordo de Paris.

Em termos de energia renovável, como estamos?

A questão das eólicas tem avançado muito rapidamente, principalmente na região Nordeste, mas há projetos grandes no sul do país, sem que tenhamos conhecimento de suas implicações. Nós não questionamos o tipo de energia, mas o modelo. Tinha muitas pautas que o governo poderia ter avançado de outra forma e não conseguiu.

Os projetos vinculados com energia renovável ou supostamente renovável são muito ligados à mineração. Não tem como construir painéis solares sem uma base de mineração e das terras raras que são muito importantes na construção das placas solares e dos aerogeradores da energia eólica.

Há reclamações sobre o uso de grandes extensões de terra, porque os projetos em terra ou na costa são mais extensos, e alguns lugares são mais afastados das casas e outros que mais próximos. E as pessoas relatam problemas de saúde, insônia, enfermidades mentais por causa do barulho e das sombras das hélices.

Além de impactos relacionados com os animais, os pássaros. Tem uma luz que fica piscando à noite e isso gera forte impacto nas zonas de reprodução das tartarugas. São questões que muitas vezes nem aparecem nos estudos.

Uma das principais reclamações é a restrição ao acesso ao território. Nós fizemos uma entrevista no quilombo do Cumbi, no Ceará, na região de Aracati, em que uma moradora relatou essa questão. Primeiro vieram as carciniculturas, criação de camarão; depois outros empreendimentos até chegarem as eólicas. Resultado: o território passou a ser restrito para as comunidades.

Historicamente, as pessoas caminhavam por uma trilha até chegar ao mar, hoje ele está cercado por questões ditas de segurança por causa dos aerogeradores. Os moradores agora precisam pedir permissão às empresas. Então, há toda uma incerteza nas comunidades em torno de onde vai ser, o que vai acontecer, se eles precisarão ser deslocados por esses projetos.

Durante o momento de construção, os caminhões que passam com as torres vêm promovendo, por causa do peso, rachaduras nas casas. Há questões de infraestrutura urbana porque as ruas não estão preparadas para esse tipo de transporte.

Além da violência sexual. Um dos relatos menciona os “filhos dos ventos”, que são as crianças filhas dos trabalhadores temporários que lá estão por tempo determinado e depois retornam para suas cidades. Essas consequências todas também não ganham visibilidade.

Esta edição da COP prevê uma maior participação popular, dos movimentos, confere?

Sim, acredito que haverá participação da sociedade. Em COPs anteriores, nos países com um poder mais forte da indústria do petróleo, houve muita restrição para esse tipo de espaço de interlocução. Então, a sociedade não participava ou participava de forma muito restrita e vigiada.

Em 2019, iríamos ter uma cúpula assim no Chile, mas ocorreu a revolta social naquele ano e ela passou para Madrid, sem ter um processo organizativo. Nas outras não houve essa dimensão de participação social.

Existe muita expectativa na Cúpula dos Povos, que será esse espaço de debate. Teremos diversas organizações, como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), o Conselho Nacional das Populações Extrativistas, o MST, Movimento dos Atingidos por Barragens, a Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam), a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), a Coordenação da Articulação dos Quilombos (Conaq).

Historicamente, essas organizações estão envolvidas em processo de conflitos socioambientais e territoriais bastante drásticos. Há, portanto, esse espaço de construção e busca pela implementação de políticas públicas em defesa dos modos de vida que faça o contraponto a essa expansão do modelo hegemônico de desenvolvimento, basicamente de mineração, energia, grandes projetos de infraestrutura.

Então é muito provável que a inovação venha muito mais da Cúpula dos Povos do que das cúpulas dos governos. De forma geral, o evento é positivo para visibilizar e denunciar o que que realmente está acontecendo. Há processos acontecendo sem debate com a sociedade, sem respeitar a legislação que já existe e sem outras proposições. Nisso, o papel dessas organizações é crucial.

A imprensa estará focada em falar sobre a COP, as negociações; por outro lado, tem toda essa contraposição que trará o que realmente está acontecendo nos territórios, inclusive, vinculado com o modelo incentivado ou promovido por essas grandes conferências.

Isso se soma à discussão em torno da exploração das terras raras, a disputa geopolítica. O que estamos vivendo é mais do que uma crise ambiental, climática ou social. É uma crise civilizatória.