Sábado, 6 de dezembro de 2025
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A jornalista e pesquisadora Cecília Olliveira compreende que o Brasil vive hoje um fenômeno distinto da chamada “mexicanização”. Para ela, o país não se transformou em um narcoestado, mas em algo ainda mais complexo: um Estado-miliciano, no qual o crime não atua à margem, mas se entranha nas estruturas políticas, policiais e econômicas.

A Opera Mundi, a autora do recém-lançado Como nasce um miliciano (Editora Bazar do Tempo) argumenta que a milícia não deve ser vista apenas como uma organização criminosa comum. Seu diferencial, segundo ela, é articular policiamento, política e negócios privados sob o manto da legalidade, apresentando-se como “agente da ordem” enquanto opera pela lógica do lucro. “É o próprio Estado funcionando de forma seletiva e violenta para interesses privados”.

Ao analisar a gênese das milícias no Rio de Janeiro, a pesquisadora descreve a cidade como um “laboratório do autoritarismo com verniz institucional”. Ali, a combinação de forças de segurança militarizadas e sem controle, a histórica atuação ilegal do Estado em favelas e um robusto mercado informal criaram o terreno fértil para a expansão do modelo miliciano. O que começou como grupos de extermínio transformou-se em uma rede empresarial que controla serviços, territórios e votos.

Para Cecília, enfrentar as milícias exige muito mais do que operações policiais pontuais. É preciso reformar as instituições, combater a corrupção nas forças de segurança, fortalecer mecanismos de controle externo e, sobretudo, mobilizar a sociedade. “O problema não está restrito ao Rio. Cada omissão de hoje será um agravante amanhã”.

Leia a entrevista de Opera Mundi com Cecília Olliveira na íntegra: 

Opera Mundi: seu trabalho já investigava o mundo das organizações criminosas, mas gostaria de saber como e por que você voltou o olhar para as milícias?

Investigar a violência armada no Brasil, especialmente a partir de dados e de políticas públicas, inevitavelmente leva à milícia. No início, meu foco era entender as organizações criminosas como um todo, quais os impactos da existência destes grupos e do enfrentamento a eles. Mas quanto mais eu investigava, mais percebia que a milícia não era um fenômeno isolado ou marginal. Era o próprio Estado operando de maneira seletiva e violenta.

Decidi voltar o olhar para as milícias quando entendi que elas não são apenas mais uma organização criminosa: elas articulam política, policiamento e lucro dentro de uma lógica empresarial. É o Estado funcionando para interesses privados. E para expor esse nível de complexidade, o formato de livro foi o mais adequado.

Qual foi o estopim das milícias? O que significa ser um miliciano?

As milícias surgem da junção entre grupos de extermínio e agentes públicos da segurança que, sob o pretexto de combater o tráfico e crimes de rua, passaram a exercer controle territorial e cobrar por isso. O estopim vem quando esses grupos percebem que há um mercado inteiro disponível: gás, transporte, internet, moradia, votos. Ou seja, o crime vira modelo de negócio.

Ser um miliciano não é ser um criminoso qualquer. É ser alguém que opera com farda ou com proteção institucional, que circula entre gabinetes, campanhas e zonas eleitorais, que domina serviços e impõe regras em nome da “ordem”. O miliciano é um agente da ordem seletiva, e a maior diferença é que ele faz isso com o aval, ou a omissão, do próprio Estado.

Um ponto sobre o qual gostaria muito de ouvi-la é como compreende esse fenômeno das milícias ter estourado no Rio de Janeiro. Por que ali? O que pode explicar esse funcionamento ter dado certo no RJ?

O Rio de Janeiro é um laboratório do autoritarismo com verniz institucional há décadas. É onde o Estado convive com territórios sob controle armado há muito tempo, mas também onde se criou uma cultura política de tolerância – e até celebração – de práticas violentas em nome da “ordem”.

A combinação de forças de segurança altamente militarizadas, violentas e sem controle, um histórico de atuação ilegal do Estado nas favelas, a proximidade entre polícia e política local e um mercado informal robusto criou o ambiente ideal para que o modelo miliciano florescesse. É um território com buracos deixados pelo Estado formal, e a milícia ocupa exatamente esses vazios, oferecendo tudo o que deveria ser público como se fosse um favor privado, usando a estrutura do Estado, como se não fosse algo de direito.

cecilia olliveira / como nasce um miliciano

Cecília Olliveira é autora do livro ‘Como nasce um miliciano’
Divulgação

No livro, você aponta que as milícias se opõem a serem chamadas de traficantes. O que diferencia esses dois mundos? Por que, na sua avaliação, há esse rechaço dos milicianos em relação aos traficantes?

A recusa dos milicianos em serem comparados aos traficantes tem a ver com imagem e legitimidade. Eles se veem como agentes da ordem, muitos vieram da polícia ou têm vínculos diretos com forças de segurança. Eles usam a retórica da moralidade, da disciplina, da “família de bem”. Enquanto o tráfico é apontado como desvio, a milícia se apresenta como correção.

Mas essa distinção é só simbólica. Na prática, eles fazem uso da violência, dominam territórios, cobram por serviços e mantêm populações sob controle. Hoje, inclusive vendem drogas e têm alianças com traficantes. Ou seja, a diferença está na narrativa. O miliciano se blinda com farda, religião, política e, muitas vezes, com o apoio de moradores cansados da “ausência” do Estado. Mas ambos operam pela força, pelo medo e pela lógica do lucro.

Cecília, a série Vale o Escrito colocou o mundo do jogo do bicho no Rio de Janeiro em evidência. Há uma cena, já no fim da obra, em que o Capitão Guimarães afirma que, enquanto ele estiver vivo, a milícia não entra no esquema. Como você avalia a correlação de forças desses dois campos?

Uma falácia. Historicamente, o jogo do bicho funcionou como uma rede paralela de poder no Rio, com estrutura própria, influência política e um código próprio de atuação. Os milicianos sempre prestaram serviços para os bicheiros e o próprio capitão Guimarães era militar e “migrou” de carreira.

Esse é o sonho de vários milicianos – fazer este “upgrade” na carreira, e ter a passabilidade que os bicheiros têm. Ter esta aceitação social de, apesar de criminoso e sanguinário – como qualquer outro – fazer festas enormes no Copacabana Palace, ser amigo de muitos famosos, frequentar rodas da alta sociedade e ser estrela em perfis de Instagram de fofoca.

O Adriano da Nobrega, que ficou nacionalmente conhecido por seu envolvimento no assassinato de Marielle Franco, fazia questão de dizer que não era miliciano – que era bicheiro. E, como vimos, era policial, agia como miliciano que era, prestava serviço para o Bicho e queria ser um deles.

Algumas análises apontam uma “mexicanização” no Brasil, ou seja, a ideia de que o Estado estaria se tornando um “narcoestado”. Você concorda com essa avaliação?

Não concordo – ainda. Pode ser que as coisas mudem, mas o que vemos no Brasil hoje não é exatamente o modelo mexicano, embora tenha algumas similaridades. Aqui, o que se aprofunda é a fusão entre crime, Estado e política. A milícia representa isso de forma explícita: policiais que viram empresários do crime, que se tornam candidatos, que elegem outros políticos e que influenciam leis, orçamentos e decisões públicas.

Não é um narcoestado. É mais um Estado-miliciano, onde o interesse privado que se arma com o aparato público passa a ditar regras. É um crime que se institucionaliza, que participa do jogo político, que se infiltra nas campanhas e que define candidaturas. E o pior: muitas vezes com o voto popular, porque consegue construir narrativa de ordem, proteção e proximidade.

No México os cartéis são uma estrutura a parte do Estado. Eles estão em embates contra o Estado e não necessariamente querem ser e estar nestas estruturas. E isto muito porque eles têm o trabalho voltado para o mercado internacional. O miliciano foca no mercado local.

Há um tom pessimista no livro ao sugerir que não existem vias para derrotar as milícias e as organizações criminosas. Nesse sentido, o que fazer? Qual o futuro da segurança pública no Brasil?

Não é que não existam vias, é que elas exigem enfrentamento real, não só discurso. O combate às milícias não se faz só com operação policial. Exige reforma institucional, enfrentamento à corrupção dentro das forças de segurança, controle externo da atividade policial, transparência, fortalecimento do Ministério Público, atuação firme do Judiciário e uma imprensa independente que não tenha medo de contrariar o discurso governamental.

Também exige repensar o próprio modelo de segurança pública: não dá mais para seguir investindo só em repressão sem tocar nas raízes, como a ausência do estado em sua totalidade, corrupção generalizada, omissões etc.

O livro tem um tom duro porque o cenário é grave. Mas ao mesmo tempo, ele é um convite à mobilização. Nada vai mudar sem pressão da sociedade. E é preciso parar de fingir que esse problema está “lá no Rio”. Ele já está batendo na porta de outros estados, e cada omissão hoje será um agravante amanhã.