Memória: A triste chuva de 1.700 dias sobre Buenos Aires
Leia entrevista concedida há 20 anos pelo cineasta argentino Fernando Solanas, morto pela covid-19 aos 84 anos
O cineasta Fernando “Pino” Solanas morreu aos 84 anos em Paris, alguns dias após dar entrada em um hospital por conta da covid-19. A morte de Solanas foi anunciada neste sábado pelo ministério das Relações Exteriores argentino. Solanas, que foi deputado nos anos 1990 e é uma figura histórica da esquerda argentina, representava a Argentina na Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), sediada em Paris.
“Enorme dor por Pino Solanas. Faleceu enquanto cumpria suas obrigações como embaixador da Argentina na Unesco”, disse o ministério no Twitter. “Será lembrado por sua arte, por seu compromisso político e por sua ética sempre a serviço de um país melhor”, acrescentou.
Solanas era casado com a atriz brasileira Ángela Correa, que também contraiu o coronavírus.
Abaixo, segue texto de entrevista concedida por Fernando Solanas à Folha de S.Paulo, publicada em 11 de fevereiro de 2000, em que ele fala sobre o filme A Viagem. Também republicamos aqui a crítica que acompanhou a entrevista.
A triste chuva de 1.700 dias sobre Buenos Aires
A Nuvem, filme que estreia hoje em São Paulo, começa com Buenos Aires sob chuva contínua, que ultrapassará os 1.700 dias.
O cineasta argentino Fernando Solanas, que não filmava desde 1992 (seu filme anterior foi A Viagem), havia trocado o cinema pela política. Foi deputado da oposição de 1993 a 1997, mas decidiu que não queria se “profissionalizar” como político.
A Nuvem é uma espécie de continuação de A Viagem, em que Buenos Aires é inundada. A cidade real não tem problemas de enchente e as chuvas lá são escassas. A chuva que não para de cair é só uma das metáforas visuais do filme. Solanas coloca carros e pessoas “andando para trás”, com apenas alguns personagens indo para a frente. “Na vida real, não são todos os que andam para trás, apesar do enorme esforço necessário para não se deixar levar pela corrente”, afirmou, em entrevista pelo telefone.
O filme estreia com grande atraso no Brasil. Realizado em 1998, foi muito bem recebido nos festivais de Veneza (Itália) e Biarritz (França). Solanas atribui o sucesso ao fato de “não haver muitos filmes sobre os problemas sociais da globalização” e à união de reflexão crítica e expressão estética no trabalho.
O que mais influenciou A Nuvem: a Macondo, de Gabriel García Márquez, ou a Buenos Aires dos anos Menem?
Fernando Solanas – Acho que a realidade da década de 90 na Argentina foi muito mais absurda do que a que pode ser expressa pela literatura ou pelo cinema. García Márquez não inventou Macondo do nada. A literatura de Cem Anos de Solidão está em cada rua, cada esquina da Colômbia. A Nuvem deu-me a oportunidade de expressar algo que chamo de uma realidade “grotética”, mescla de grotesco e de patético.
A construção dessa realidade você atribui ao ex-presidente Carlos Menem ou a uma “obra coletiva”?
É uma obra coletiva. Menem é um fenômeno argentino, não é um marciano. É a sociedade argentina, muito influenciada pelas modas, que sempre segue algo que vem de fora. Acho que nos anos 90, a Argentina viveu a explosão de sua decadência e a incapacidade de sua classe dirigente, política e empresarial, de inventar um país viável. A Argentina acreditou que a solução era vender todo o patrimônio público e hoje ela deve três vezes mais do que antes das vendas.
Isso muda com o novo governo, de Fernando de la Rúa?
O novo governo tem uma herança muito pesada. É um governo que tem o desafio de se liberar desse país endividado e quebrado deixado por Menem.
Com A Nuvem, mais uma vez, Solanas é simples nas metáforas, herdeiras do realismo fantástico (Reprodução)
Por que você usa o teatro para mostrar essa época?
Os filmes não explicam nada, eles expressam a realidade. A Nuvem tem uma forte relação com a tradição do teatro popular argentino, com a literatura popular. Eu me iniciei estudando teatro. E pareceu-me uma metáfora interessante usá-lo como espelho do que se passa no país. Poderia ter escolhido uma universidade, um hospital público. Na verdade, não é a história de um teatro, é a de um ponto de encontro de dez personagens e nenhuma delas vive do teatro. Há jovens, velhos, um cantor, um ator de TV… É uma homenagem aos artistas, de teatro ou não, que fazem suas obras de arte sem esperar o resultado econômico.
Eles são, para você, uma possibilidade de uma sociedade menos voltada para o dinheiro?
Acho que continua existindo na Argentina uma juventude que quer fazer música, teatro e cinema sem se importar com o resultado econômico. Gente que tem a mesma paixão com que se escolhe uma mulher: você a quer porque a ama, não porque ela dá lucro. “A Nuvem” também homenageia os que esperam com dignidade: empregados, desocupados, pensionistas… Homens castigados por esse tempo inumano, em que se respeita mais a economia do que o homem.
O filme é muito irônico.
Essa é uma característica muito argentina, de Buenos Aires. Procuro utilizar o burlesco, a sátira, o picaresco.
Você monta um grande painel de Buenos Aires, mas evita uma história que centraliza a narrativa. Por quê?
Essa é uma característica dos meus filmes em geral, em que o protagonista não é um só personagem, mas um grupo. Gosto de romper assim com a narrativa hollywoodiana, em que há uma só grande peripécia, da qual derivam todos os pequenos conflitos. Tento fazer um cinema mais ligado ao modo como as coisas se passam na vida, em que não há só um grande conflito, mas conflitos que seguem linhas paralelas.

CRÍTICA: Do dia em que a Argentina goleou o cinema nacional
A estreia de A Nuvem em São Paulo é uma mostra da dupla incompetência brasileira: como pode um filme como esse, feito a um passo daqui, ter de esperar tanto para ser exibido (o velho problema da falta de salas); como podemos gastar R$ 70 milhões por ano com incentivos fiscais e não vermos um só filme que retrate a realidade atual de forma tão contundente, eficaz e poética, quanto a realizada por esse nosso vizinho, a quem devemos vivas.
Fica claro que o problema/solução, no caso, não é dinheiro, mas reflexão. A Nuvem, pronto desde 1998 e com extensa carreira em festivais mundo afora, começa com os carros e as pessoas andando para trás. Utiliza-se de um barato truque de imagem, conhecido desde os pequenos filmes de Méliès, pai do cinema de ficção, que é inverter a posição da fita, rodando-a de trás para frente.
Ao colocar o filme no sentido inverso, Solanas não deixa margem a dúvida: crê e afirma que a sociedade argentina está retrocedendo (apesar de alguns personagens “andarem contra a corrente”). Martelará a posição pouco depois, num redundante e muito bem-vindo exercício de retórica.
Solanas escolhe o teatro Espelho como o símbolo de uma cultura e de uma história a ser defendida, ainda que não seja um sucesso comercial. É um bastião antineoliberal, encravado na zona portuária, que o mercado quer transformar em área mais rentável.
De nada adiantam os apelos de um ex-integrante do grupo, e hoje ator de TV, dizendo que o mundo mudou, que não adianta resistir. Max (Eduardo Pavlovsky), diretor do teatro, e seu companheiros resistirão. Entre eles, a brasileira (e negra) Fulô (Ângela Correa, melhor atriz no Festival de Biarritz e mulher de Solanas), vítima do pior preconceito argentino contra seus vizinhos mais numerosos.
Enfrentarão os burocratas e cafetinas, perderão batalhas, alguns morrerão sob as balas da polícia, dos bandidos, do tempo, da razão e dos decretos, que se sobrepõem a decisões judiciais.
Com A Nuvem, mais uma vez, Solanas é simples nas metáforas, herdeiras do realismo fantástico que tanto apraz escritores e cineastas latino-americanos. São anos tristes e carregados de um governo que vende todo o patrimônio do país, em privatizações e licitações fraudulentas. Acredita-se que a nuvem está baixando e que só irá se dissipar quando tocar o solo (a realidade, o chão).
Em determinado momento, um advogado obstinado enfrenta um juiz. Solanas opta pela ópera, dando uma dimensão trágico-épica-farsesca (Brecht) à disputa, que, óbvio, não termina com a capitulação do magistrado corrompido.
O melhor de tudo, no entanto, é a coragem de Solanas em mostrar um dia a dia que não é apenas a violência policial (como Tata Amaral e o seu Um Céu de Estrelas). ou um predominantemente “pessoal” (Babenco e seu Coração Iluminado), ou ainda só a vidinha besta das comédias de costumes cariocas (em Amores, de Domingos de Oliveira).
Solanas mostra uma compreensão mais completa da realidade urbana, mas nunca totalitária. Seu drama não sugere utopias, mas direitos inalienáveis.
No Brasil, só Eduardo Coutinho foi tão longe, com seu Santo Forte, um documentário que, não por acaso, dialoga com a antropologia assim como Solanas o faz com a sociologia (e menos com a política).
Nossa ficção cinematográfica ainda não consegue beber fortes tragos dessa realidade complexa que a cerca. Tem-se a impressão de que a tragédia por que passamos não merece ser representada numa sala de cinema ou de que ela incomoda demais os cineastas brasileiros.
Grande coisa bater os argentinos no futebol… Difícil vai ser o cinema brasileiro produzir um filme melhor do que esse de Fernando Solanas.
Filme: A Nuvem
Produção: Argentina/França, 1998
Direção: Fernando Solanas
Com: Eduardo Pavlovsky e Ângela Correa























