Herzog foi vítima de um ódio que ainda persiste na extrema direita brasileira, afirmam ex-companheiros
Ato interreligioso teve presença do vice-presidente Geraldo Alckmin e pedido de perdão de juíza do Supremo Tribunal Militar; combatentes da ditadura disseram que anticomunismo nunca morreu no Brasil
O legado e a memória do jornalista Vladimir Herzog estiveram presentes neste sábado (25/10), na Catedral da Sé, no centro de São Paulo, durante o ato inter-religioso que rememorou os 50 anos do seu assassinato pelas mãos dos agentes da ditadura militar brasileira (1964-1985). As homenagens tiveram início com uma passeata que partiu da sede dos Sindicato dos Jornalistas de São Paulo (SJSP) e foi até a Catedral, levando cartazes que diziam “ditadura nunca mais” e “punição de todos os crimes da ditadura”.
Entre as pouco mais de duas mil pessoas presentes na cerimônia se encontravam muitos ex-companheiros de Herzog, tanto no jornalismo quanto na luta contra a ditadura, os quais alertaram para o fato de que, segundo eles, o discurso anticomunista que o matou “continua vivo no discurso da extrema direita brasileira”.
Segundo José Genoíno, histórico militante da esquerda brasileira, ex-deputado federal e ex-presidente nacional do Partido dos Trabalhadores, “esse discurso não só está vivo como é mais agressivo agora do que era há 50 anos atrás, com uma extrema direita truculenta que tenta dilapidar a democracia que nós temos hoje, e que nós devemos defender mobilizando as ruas em defesa dos nossos valores, com direitos para o povo e sem anistia para os golpistas”.
Genoíno recordou que estava preso quando aconteceu o caso do Herzog, no (presídio do) Barro Branco. “Quando soubemos da morte dele eu e outros presos políticos fizemos uma manifestação dentro da cadeia, e fomos punidos com ainda mais tortura devido àquela manifestação”.
O jornalista Juca Kfouri também ressaltou a vigência do discurso da ditadura na retórica defendida pela extrema direita brasileira, mas acrescentou que “eventos como o de hoje, com a Catedral da Sé novamente lotada para homenagear o Vlado (apelido pelo qual Herzog era conhecido por seus amigos), mostram que a maioria dos brasileiros quer a democracia, e que o legado de Vlado ainda está presente, e isso nós temos que enaltecer”.
Entre as milhares de pessoas que assistiram à cerimônia, muitos aproveitaram para trazer fotos de outras vítimas que, assim como Herzog, também foram assassinadas pelo regime ditatorial brasileiro.
Uma dessas pessoas era Arno Brichta, professor de Geologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), quem trazia uma foto de Dinaelza Santana Coqueiro, estudante baiana e militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) que lutou na guerrilha do Araguaia até ser capturada em 1973. Anos depois, durante os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, o Estado brasileiro reconheceu que ela foi torturada por agentes da ditadura e morta em abril de 1974.
“O Brasil deu muitos passos importantes nas últimas décadas, nós recuperamos a democracia, melhorou muita coisa, mas em compensação, o que nós estamos vendo mais recentemente é uma extrema direita que está voltando com muita força, que é muito perigosa e que monta o seu discurso em cima de factoides, que diz atacar o ‘comunismo’, mas que na verdade está lutando contra qualquer pessoa que defende um mínimo de justiça social e a solução dos problemas da sociedade em termos de direitos igual para todos”, disse.

Pouca mais de 2 mil pessoas compareceram à cerimônia em homenagem a Vladimir Herzog na Catedral da Sé
Victor Farinelli / Opera Mundi
Pedido de perdão
Sendo um ato inter-religioso, a cerimônia contou com lideranças que representaram o catolicismo, cristianismo protestante, judaísmo, islamismo e as religiões de matriz africana. Também estiveram presentes autoridades, incluindo o vice-presidente Geraldo Alckmin, representando o Governo Federal – vale lembrar que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva está em uma viagem internacional pelo sudeste asiático.
Em seu discurso, Alckmin frisou que “a morte do Vladimir Herzog foi o resultado do extremismo do Estado que, ao invés de proteger os cidadãos, os perseguia e matava. Por isso, devemos fortalecer a democracia, a justiça e a liberdade”.
Outra declaração que se destacou foi a da magistrada Maria Elizabeth Rocha, atual presidente do Superior Tribunal Militar (STM), que fez um pedido de perdão oficial, em nome da Corte que lidera, a respeito dos crimes cometidos durante o regime militar. “Eu peço, enfim, perdão à sociedade brasileira e à história do país pelos equívocos judiciários cometidos pela Justiça Militar Federal em detrimento da democracia e favoráveis ao regime autoritário. Recebam meu perdão, a minha dor e a minha resistência”, afirmou a ministra e presidente do STM.
Também esteve presente na missa o filho de Vlado, Ivo Herzog, que tinha apenas nove anos quando o pai foi preso e assassinado pela ditadura. Segundo ele, “hoje nós temos aqui o Estado de mãos dadas com a gente para reafirmar o compromisso com a democracia, a justiça e a verdade”.
A TV Cultura, emissora cujo Departamento de Jornalismo era comandado por Herzog até o dia da sua morte, realizou uma cobertura especial do evento. O repórter Sergio Colacino, que participou da cobertura, ressaltou que o legado de Vlado continua vivo até hoje no canal. “A nossa redação se chama Redação Vladimir Herzog, tem uma placa bem na entrada e toda vez que a nós jornalistas passamos por ela nós entendemos a responsabilidade de estar ali, o que o trabalho que nos fazemos representa”, afirmou.
Paralelo com ato de 1975
As homenagens deste sábado rememoraram o ato ecumênico pelo sétimo dia da morte de Herzog, realizado no dia 31 de outubro de 1975, evento que reuniu cerca de oito mil pessoas dentro da Catedral da Sé e outras milhares do lado de fora, o que configurou a primeira grande manifestação popular em São Paulo desde a imposição do Ato Institucional número 5 (AI-5), em dezembro de 1968.
O evento daquele então também foi marcado por um esquema policial instalado em todo o centro da capital paulista, liderado pelo então secretário estadual de Segurança Pública, o coronel Erasmo Dias, que anos depois também foi apontado em investigações como um dos responsáveis por administrar os centros de tortura no Estado de São Paulo.
O esquema de segurança no ato de 1975 incluiu barreiras policiais em vias de acesso à Catedral, uma quantidade de soldados uniformizados espalhados pela Praça da Sé (e algumas testemunhas afirmam que havia desconfiança com a possível infiltração de agentes à paisana) e também atiradores postados em edifícios ao redor do local.
Apesar da repressão, a missa ocorreu silenciosamente até o seu final. O evento também teve caráter inter-religioso, já que Herzog era judeu, razão pela qual o cardeal arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, comandou a cerimônia juntamente com o rabino Henry Sobel.
Ambos fizeram críticas veladas, porém contundentes ao regime militar. No entanto, ao final da missa, ambos pediram enfaticamente aos assistentes para que deixassem a Catedral em silêncio, alertando para possíveis armadilhas preparadas pelos agentes da ditadura do lado de fora da igreja.

Muitos dos presentes ao ato traziam fotos de outras vítimas do regime militar
Victor Farinelli / Opera Mundi
Prisão e morte
Vladimir Herzog era o diretor de jornalismo da TV Cultura desde o início dos anos 70, além de professor de jornalismo na Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). Foi seu trabalho no canal público, considerado não alinhado às medidas adotadas pelo governo ditatorial, o que provocou uma campanha contra ele na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) promovida pelos então deputados estaduais Wadih Helu e José Maria Marin, ambos aliados do regime.
No dia 24 de outubro de 1975, o Exército convocou Herzog para prestar depoimento sobre as ligações que ele mantinha com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), partido que atuava na ilegalidade durante o regime militar. No dia seguinte, Herzog compareceu espontaneamente à sede do Departamento Operações e Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), na rua Tutóia, entre os bairros paulistanos do Paraíso e da Vila Mariana.
Durante algumas horas, ele ficou preso junto com outros dois jornalistas: George Benigno Jatahy Duque Estrada e Rodolfo Oswaldo Konder. O relato de Konder sobre os acontecimentos, realizado anos depois e incluídos no relatório final da Comissão Nacional da Verdade, indica que os jornalistas foram levados a “um corredor no qual era possível escutar os policiais conversando, se escutou a ordem para trazer a máquina de choques elétricos e um rádio para abafar o som da tortura, ligado no volume máximo”.
O Exército alega que Herzog teria admitido sua ligação com o PCB durante os interrogatórios, e que foi levado, depois de terminado do depoimento, a uma sala isolada, na qual ele teria cometido suicídio, por suposto enforcamento, usando um cinto que, de acordo com essa versão, faria parte do uniforme regular dos detentos do DOI-CODI.
Porém, esse relato começou a ser questionado com a publicação da histórica foto com o jornalista com os joelhos dobrados e o pescoço pendurado em um cinto amarrado em uma grade da janela, a pouco mais de 1,60m de altura, sendo que ele tinha cerca de 1,80m, o que tornaria inverossímil a hipótese de suicídio. Outro elemento questionável da versão oficial foi a questão do cinto, que o informe policial cita como parte do uniforme regular dos prisioneiros do DOI-CODI à época.
Todavia, registros oficiais levantados posteriormente comprovaram que os uniformes de todos os centros de detenção de São Paulo durante aquele ano consistiam apenas de um macacão, e que não havia um cinto.

Sindicato dos Jornalistas foi uma das entidades que marcou presença no ato inter-religioso em memória de Herzog
Victor Farinelli / Opera Mundi
Pós-morte
Em outubro de 1978, o juiz federal Márcio Moraes responsabilizou o governo federal pela morte de Herzog e pediu a apuração da sua autoria e das condições em que ocorrera.
Em 24 de setembro de 2012, o registro de óbito de Vladimir Herzog foi retificado, passando a constar que “a morte decorreu de lesões e maus-tratos sofridos em dependência do Segundo Exército – SP (DOI-CODI”, conforme havia sido solicitado pela Comissão Nacional da Verdade.
Em 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) condenou o Brasil por negligência na investigação do assassinato do jornalista.























