Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Na última semana, quando Israel escalou o genocídio com a invasão da Cidade de Gaza, o massacre de Sabra e Chatila, no Líbano, completou 43 anos. O Exército israelense anunciou a “expansão das atividades” em terra na maior cidade do enclave palestino no mesmo dia que marca o início do histórico massacre ocorrido mais de quatro décadas atrás. Entre 16 e 18 de setembro de 1982, mais de três mil palestinos e libaneses foram assassinados por milícias cristãs de extrema direita na capital libanesa com o apoio de Israel.

“Quando vejo o genocídio em Gaza, relembro o que vivi. Os assassinatos, os prédios derrubados, as explosões e o fogo ardendo toda a noite. O que acontece em Gaza, nós vivemos em Beirute”, disse Amal Mohamed, de 55 anos, sobrevivente do massacre de 1982. Mais de quatro décadas depois e vivendo na Palestina, ela recorda com detalhes do que aconteceu naqueles dias no campo de refugiados palestinos de Chatila e no bairro de Sabra, adjacente ao campo, onde vivia.

“Nada, absolutamente nada do que vivemos naqueles três dias sai da minha memória”. Em depoimento exclusivo a Opera Mundi concedido em sua casa, na Cisjordânia, Amal falou sobre os dias de cerco, a chegada dos soldados à sua casa, a entrada, com a família, no campo de Chatila e da vida após o ataque, relacionando os crimes de guerra cometidos por Israel no passado e presente.

O massacre ocorreu durante a guerra civil libanesa (1975-1990), meses após a invasão israelense ao Líbano de junho de 1982. Com apoio material de Israel, as milícias cristãs de extrema direita Kataeb (as Falanges Libanesas, criadas nos anos 1930 com inspiração declarada no nazifascismo) e Forças Libanesas invadiram a região e promoveram um “ato de genocídio”, como definido por resolução da ONU.

Além das mais de três mil mortes, foram comprovados estupros e mutilações em série, além do assassinato deliberado de crianças e mulheres. Outras milhares de crianças – como Amal, à época com 12 anos – testemunharam as cenas de violência. Apesar da resolução aprovada na Assembleia Geral das Nações Unidas de dezembro daquele ano, o caso nunca foi julgado pelos tribunais internacionais e os responsáveis jamais foram punidos.

“Como gado para o abate”

“Andamos em fila, com soldados armados nos cercando pelos lados direito e esquerdo. Notamos que o chão estava escorregadio, que não estávamos pisando no asfalto. E aí percebemos: era sangue”, disse Amal, relembrando como ela e sua família entenderam aos poucos a dimensão do que ocorrera. “Olhamos em volta e vimos os corpos, muitos deles mutilados e alguns já em estado de putrefação. Foi aí que entendemos que um massacre havia acontecido naqueles três dias”.

Já era o terceiro dia de massacre e a família passara a maior parte daquele tempo trancada em casa. Um toque de recolher fora imposto no primeiro dia, logo após Israel cercar Sabra e Chatila. Na casa, localizada no limite de Sabra, próximo à entrada de Chatila, estavam ela, sua mãe, irmão e a irmã mais velha, que se refugiara ali com o marido e oito filhos. Seu pai estava fora do Líbano, trabalhando na Alemanha por um período.

Quando os homens armados chegaram e ordenaram que saíssem imediatamente, a família não sabia quem eram aqueles soldados. As possibilidades, no entanto, eram igualmente assustadoras: israelenses ou membros das milícias cristãs libanesas extremistas. “Minha mãe desceu de nosso prédio já com nossos passaportes. Eles nos juntaram com outros vizinhos. Éramos cerca de 500 pessoas. Então nos fizeram caminhar”.

Em fila, as centenas de pessoas foram guiadas até a rua principal, que ligava Sabra a Chatila. Já na entrada de Chatila, foram forçados a entrar em um hospital. “Colocaram médicos e enfermeiras em um lado, as famílias em outro e separaram os doentes que conseguiam andar. Os que não podiam andar foram todos mortos”, relembra.

Após a matança no hospital, foram levados ao campo. “Entramos em Chatila e percebemos que era muito pior. Havia muito mais pessoas mortas e de forma muito mais brutal. Os corpos estavam mutilados e havia partes de corpos espalhados. Vi uma senhora grávida morta, com a barriga aberta e o feto em cima. Eles não ‘apenas’ mataram, mas também mutilaram e expuseram os pedaços de corpos”.

Amal com a família, na Cisjordânia, onde vive atualmente
Erick Dau

Emocionada, Amal contou o que viu, aos 12 anos, e nunca pôde esquecer. Lembra, também, de amigas da mesma idade que sobreviveram escondendo-se debaixo de camas, de onde testemunharam a morte e mutilação da própria família.

“Muitas crianças viram coisas inimagináveis, como estupros e decapitações, entre outras monstruosidades. Durante a caminhada por Chatila, minha irmã, revoltada, disse ‘isso, nos façam andar como gados indo para o abate’. Um soldado levantou a arma para dar uma coronhada em sua cabeça e outro o impediu, falando ‘não, Tony, não’”. Amal nunca esqueceu o nome do soldado.

Articulação pró-Israel

Na guerra civil, que durou até 1990 e matou mais de 150 mil pessoas e deslocou 1,5 milhão, as milícias cristãs de extrema direita lutaram aliadas a Israel, que treinou e armou os grupos paramilitares desde os anos 1970.

Do outro lado, estavam a Organização para a Liberação da Palestina (OLP), o Partido Comunista Libanês (e outros grupos da coalizão Movimento Nacional Libanês) e as milícias muçulmanas xiitas Amal e Hezbollah, que ganharam mais protagonismo a partir dos anos 1980.

O bloco que reunia a esquerda, o movimento palestino e as milícias xiitas teve o apoio flutuante da Síria. O país enviou 40 mil soldados ao Líbano no segundo ano da guerra civil e combatia Israel, mas ao mesmo tempo se opunha à liderança da OLP e dos movimentos autônomos. Nos primeiros anos da guerra, soldados sírios chegaram a combater a OLP junto às milícias cristãs e, nos anos 1980, apoiaram xiitas contra a liderança palestina.

Foi durante a guerra civil que Israel invadiu o Líbano e ocupou grande parte do território, chegando a Beirute, em junho de 1982. Meses depois, cercou Sabra e Chatila.

“Os ataques aconteciam na parte muçulmana de Beirute [naquele momento, Beirute estava dividida entre parte Ocidental, Oriental, muçulmana e cristã]. E aí veio a invasão de Israel. Em uma semana, eles chegaram a Beirute e à parte onde acontecia o conflito, nos bairros muçulmanos. Tentaram esvaziar Sabra e Chatila e algumas famílias permaneceram – inclusive a nossa. Até que a área foi cercada por Israel”, afirmou.

Um dia antes do cerco, em 14 de setembro, um ataque à sede do Kataeb (milícia cristã de extrema direita), matara seu líder Bachir Gemayel. Ele havia sido eleito presidente semanas antes. Em plena guerra civil, uma articulação entre os Estados Unidos, Israel e a elite cristã libanesa elegeu o líder falangista para a Presidência libanesa, em uma votação esvaziada no Parlamento em meio à ocupação israelense.

Como parte dessa articulação, a OLP foi desarmada e expulsa do Líbano. Em processo conduzido por uma comissão internacional formada por Estados Unidos, França e Itália, Yasser Arafat e outras lideranças foram enviados para a Tunísia. O processo marcou ainda a expulsão dos grupos de resistência armada palestinos dos campos de refugiados, sob promessa internacional de que as áreas seriam protegidas.

Apenas dois dias após a retirada dos combatentes e lideranças da OLP do Líbano, a eleição foi realizada. Um terço dos 92 deputados não pôde sequer comparecer à sessão: estavam confinados em áreas isoladas militarmente. Com 57 votos contra cino nulos, Gemayel, o líder da milícia de extrema direita, foi eleito em 23 de agosto.

Em 14 de setembro, foi morto no ataque à sede do Kataeb junto a outras outras 23 pessoas, a maioria integrantes da milícia. O responsável pelo ataque, Habib Shartouni, do Partido Nacional Socialista Sírio, chegou a ser preso depois. Ao final da guerra civil, foi libertado por milícias sírias e fugiu para o país vizinho. Em 2017, foi condenado à pena de morte em um julgamento à revelia, mas continua foragido.

Após o ataque à sede do Kataeb, as tropas israelenses cercaram Sabra e Chatila, montando postos de controle em todas as saídas e controlando os acessos aos campos. Dali, instalaram os holofotes que iluminaram a área para a entrada das milícias.

Mais de três mil palestinos e libaneses foram mortos no massacre de 1982
UNRWA Archive / Wikimedia Commons

Antes e depois

Amal, que nasceu em Beirute em 1970, relembra com saudades dos primeiros anos de sua vida, antes da guerra e da invasão israelense. “Foram seis lindos anos. Havia muita alegria, muita vida. Era tudo muito colorido”.

Filha de mãe libanesa do sul, onde predomina a população muçulmana xiita, e de pai palestino, viveu em Sabra até depois do massacre. Quando seu pai retornou da Alemanha, resolveu tirar a família dali.

Os momentos após o massacre foram igualmente brutais, com humilhações sistemáticas. Amal relembra que, ainda no terceiro dia, ao saírem de Chatila escoltados pelos soldados, viram uma mulher grávida ser agredida – e, possivelmente, morta. “Colocaram as mulheres e crianças de um lado, os homens de outro, e lançaram uma bomba no grupo dos homens. Uma jovem, grávida, começou a desfalecer. Pedimos que dessem água a ela. Um soldado jogou água no chão, no asfalto quente, para que ela bebesse dali. Tentamos ajudar e não nos deixaram, mandando que voltássemos a andar”.

Quando voltaram, horas depois, pelo mesmo caminho, a mãe de Amal contou ter visto a moça morta. “Minha mãe viu um corpo de mulher com um vestido vermelho – e ela era a única usando vermelho no grupo. Sentamos em um canto. Veio um membro do Exército israelense e fez um discurso, falando uma língua que não sei se era inglês ou hebraico. Nos obrigaram a aplaudi-lo”.

Após a suposta palestra, moradores de Sabra e Chatila foram divididos e orientados a retornar a suas casas. Os homens foram detidos para interrogatório. “Nós chegamos a Sabra e os homens interrogados também, mais tarde. Mas os que saíram para Chatila jamais chegaram, ficaram desaparecidos”, disse, lembrando que, ao entrar em casa, ficou horas em estado de choque, sem conseguir falar.

Amal lembra ainda da manhã seguinte. A família acordou com muita fome. Foi com sua irmã, o cunhado e uma das crianças tentar buscar comida, até que ouviram, na rua, gritos de “Saad Haddad voltou”. Era o nome do comandante do Exército do Sul do Líbano, outra milícia cristã, apoiada e armada por Israel desde 1976. O grupo não foi a principal força no massacre, mas há relatos de participação

“Para nós, aquilo era sinônimo de morte. Eu e meu sobrinho corremos e fugimos. Encontramos um primo que nos escondeu. Quando tentamos voltar para Sabra, a entrada estava fechada para recolhimento dos cadáveres. Minha mãe, que não sabia que tínhamos saído para comprar comida, começou a nos procurar entre os mortos. Ela viu coisas que nunca pôde esquecer”.

Foi nesse cenário que, tempos depois, seu pai decidiu pela saída do Líbano. As crianças foram na frente, com o pai – muitos palestinos da Cisjordânia, como o pai de Amal, têm passaportes da Jordânia, que controlou a região entre a criação de Israel, em 1948, até a ocupação israelense de 1967. A mãe, libanesa, precisou esperar para conseguir documentos.

“Lá, recomeçamos nossa vida e voltamos a estudar”, disse Amal, que depois, aos 21 anos, se casou com um palestino e passou a viver na Cisjordânia. Permanece na Palestina até hoje, onde testemunha a repetição da barbárie que viveu.

(*) Produção e tradução: Ruayda Rabah.