Uma jornalista brasileira a caminho de Gaza
Uma nova missão humanitária sai neste domingo para quebrar o cerco de Israel; neste texto, tudo que os palestinos me ensinaram sobre jornalismo, coragem e humanidade
Nos últimos 694 dias, assistimos a implementação da estratégia de dizimação do povo palestino. Bombardeios; deslocamentos forçados; doenças; fabricação da fome; expulsões; expropriações; prisões; torturas; assentamentos. Ataques deliberados, milimetricamente articulados contra a população civil, infraestruturas hospitalares, escolas, corredores humanitários, tendas de deslocados internos, filas de distribuição de alimentos, jornalistas, médicos, trabalhadores humanitários, crianças.
Através das nossas telas — diretamente das salas de televisão, do metrô para o trabalho, do fim de semana na praia com a família — testemunhamos a violência sendo cometida contra o povo e a terra palestina em todas as suas esferas e dimensões.
Os perpetradores são aqueles para quem o crime de genocídio foi implementado no corpo jurídico internacional, depois de cuidadosamente articulado pelo jurista Raphael Lemkin no pós-Holocausto. Genocídio: atos que têm a intenção de destruir, em parte ou o todo de um grupo por suas características étnicas, religiosas, raciais.
É difícil imaginar que um povo que foi vítima de um genocídio se torne perpetrador de um outro. É claro que todos nós nos lembramos de Auschwitz. Mas será que também nos lembraremos de Tantura, Der Yassin, Sabra and Chatila, Cidade de Gaza, Rafah?
Será que nos lembraremos dos pais palestinos segurando os corpos mutilados de seus filhos? Das senhoras palestinas que desmaiam e definham sob o sol de 40 graus do Levante consumidas pela fome? Dos bebês palestinos com a pele em carne viva porque não há fraldas em Gaza? Das mães palestinas que cavam a terra em busca de restos de farinha para ter algo com que alimentar seus filhos? Das dezenas de milhares de corpos palestinos que, assim como suas oliveiras, foram arrancados da terra e queimados vivos por seus colonizadores?
No último ano, vivi e trabalhei como jornalista em um Líbano também atravessado pela máquina de morte israelense, em uma região marcada pelo luto, honra, dor e trauma dos palestinos. Ali, os refugiados palestinos enfrentam restrições severas: vivem em campos superlotados, não têm o direito de possuir propriedades e são legalmente impedidos de exercer 39 profissões — incluindo medicina, direito e engenharia.
Estar tão próxima da desumanização dos palestinos — um fenômeno que Israel transforma com maestria em transfronteiriço, contagioso, disseminado — me fez abraçar o ativismo como parte da minha profissão ainda que, em tempos de genocídio, declarar-se ativista possa nos custar a reputação, emprego e, em última instância, a vida.
Ao me preparar, como jornalista e ativista, para embarcar na Flotilha da Liberdade — uma missão que reúne pessoas de todo o mundo e que navega pelo mar Mediterrâneo com o objetivo de romper o cerco ilegal imposto a Gaza, criando um corredor humanitário — também me preparo para enfrentar acusações semelhantes às que já foram dirigidas ao ativista e internacionalista Thiago Ávila, que integrou a missão anteriormente.
Quando se trata dos direitos de povos racializados, inúteis aos olhos do capital, levantar o tom e cobrar autoridades é rotulado como estupidez, chilique, radicalismo.
Talvez porque, na lógica do capital, as pessoas em nome de quem se protesta — os palestinos — simplesmente não têm nada a oferecer em troca. E em um mundo onde absolutamente tudo é transacional e tem um preço, onde absolutamente todas as relações e ações são medidas em custo-benefício, agir em favor de quem não pode retribuir é primeiro taxado de loucura e, depois, de terrorismo.
Falar do que está acontecendo em Gaza e, por consequência, de tudo que abraça o tema — as missões da Flotilha não são exceção — se tornou indigesto, obsceno, ofensivo, radical. E se indignar com o genocídio de uma população civil enclausurada, faminta, enlutada, é ainda menos permitido se você é jornalista, já que a profissão é supostamente regida pela imparcialidade.
Como se os jornalistas não estivessem no centro gravitacional de alguns dos maiores desafios da humanidade: nomear violências; escancarar injustiças; insurgir contra o poder e os privilégios; impulsionar mudanças sociais ao jogar luz em temas que são de interesse público.
Jornalistas não são juízes de placar – sobretudo quando o que está em campo é uma máquina de colonialismo de povoamento que opera pela extração e pelo lucro às custas da expulsão de sua população indígena — um processo viabilizado pelo setor corporativo do Ocidente.
No seu último relatório, intitulado Da economia da ocupação à economia do genocídio, a Relatora Especial da ONU Francesca Albanese — que tive o prazer de conhecer pessoalmente em Sarajevo, em julho deste ano — explica o papel das entidades corporativas na sustentação da ocupação ilegal de Israel e de sua atual campanha genocida em Gaza.
Essas empresas — de plataformas de viagem ao agronegócio; do setor de energia às seguradoras; das big techs às universidades — não apenas permitem que a ocupação continue viva e ativa, mas também a financiam e lucram com ela.
A mídia hegemônica ocidental não fica de fora dessa lógica, já que é o reflexo do liberalismo ocidental em si mesmo: tão hipócrita, e o seu compromisso moral com a liberdade humana tão inexistente, que ao primeiro indício de consciência e resistência contra as políticas imperialistas de dominação de povos racializados — indígenas, pretos, árabes, muçulmanos — se silencia, se torna cúmplice, ou pior: chama o oprimido de opressor.
Como fiéis escudeiros do marco civilizatório ocidental, jornalistas e grandes conglomerados midiáticos seguem o ritual sugerido: as narrativas do oprimido são mutadas — e, em alguns casos, combatidas — pelo bem da civilização. Um palestino a mais ou a menos não fará diferença.
Sob a carapuça da imparcialidade dessa mídia se esconde, na verdade, o mau-caratismo, o cinismo, a miséria humana.
Diante do primeiro genocídio ao vivo e em alta definição da história, os tais “jornalistas imparciais” escolhem usar a voz passiva para descrever as bombas que caem sobre Gaza — como se estas caíssem sozinhas, diretamente dos céus. E, como a criatividade do jornalismo brasileiro nos provou, escolhem também desviar das pernas palestinas amputadas sem anestesia; das crianças palestinas que seguram os calçados de seus pais, cujos corpos não podem encontrar; para, então, jogar a câmera nos kitesurfers das praias de Tel Aviv.
Os esforços em nos tornar apáticos, anódinos e apolíticos vêm de todos os lados. A mídia global — e a brasileira não é exceção — mergulha numa escuridão profunda e suas mãos nos puxam como polvos famintos. Esquizofrênicos de espírito, eles nos olham como se os anômalos fôssemos nós.
Optar por não falar do genocídio palestino, por não publicizá-lo, é um privilégio de quem não o vive. Aos mais de 250 jornalistas mortos pelas forças israelenses em Gaza, foi impossível escolher não vê-lo, relativizá-lo, ou não falar de suas mortes, de seus culpados, da fome como uma de suas armas.
Fatima Hassoun, Anas al-Sharif, Mohammed Qreiqeh, Ibrahim Zaher, Mohammed Noufal, Hamza Dahdouh, Hossam Shabat, Ismail Abu Hatab, Ahmed al-Louh, Mariam Abu Dagga, Mohammed Salama, Moaz Abu Taha, Ahmed Abu Aziz.
Esses são alguns dos nomes de colegas de profissão que morreram em Gaza, o lugar mais letal do mundo para jornalistas — sim, mais do que na Primeira e Segunda Guerras Mundiais, nas invasões do Iraque e do Afeganistão, ou ainda nas guerras do Vietnã e da Ucrânia.
Mas também aqueles que permanecem vivos, contra todas as probabilidades, e que, a cada vez que saem com seus microfones e câmeras nas mãos pelos escombros, fazem o que a fotojornalista Fatima Hassoun chamou de “colocar a alma na mão e andar”: Wissam Nassar, Saher Alghorra, Bisan Owda, Haneen Salem, Sara Awad, Yousef Zanoun, Ibrahim Zanoun, Ahmed Abdel.
A estes jornalistas, as vozes de Gaza e da luta do povo palestino — a extensão da luta decolonial para a atualidade, a luta das lutas, a luta de nosso tempo — estendo a minha gratidão pela lição de jornalismo, coragem e humanidade. Enquanto houver ao menos um deles de pé em Gaza, eu embarcarei em direção ao enclave quantas vezes forem necessárias.
“Eu vos confio a Palestina — a joia na coroa do mundo muçulmano, o pulsar de cada pessoa livre neste mundo. Eu vos confio seu povo, suas crianças inocentes e injustiçadas, que nunca tiveram tempo de sonhar ou viver em segurança e paz. Seus corpos puros foram esmagados sob milhares de toneladas de bombas e mísseis israelenses, dilacerados e espalhados pelos muros. Exorto-vos a não deixar que correntes silenciem sua voz, nem que fronteiras os contenham. Sejam pontes para a libertação da terra e de seu povo, até que o sol da dignidade e da liberdade se erga sobre nossa pátria roubada”.
Últimas palavras de Anas al-Sharif, jornalista da Al Jazeera morto por Israel em Gaza em agosto de 2025























