Três em cada quatro palestinos presos por Israel são civis, aponta investigação
Dados divulgados pela +972 Magazine mostram que supostos ‘combatentes’ do Hamas detidos são, na verdade, homens sem vínculos partidários, idosos, doentes e vulneráveis
Diariamente Israel realiza detenções de palestinos e os leva às suas prisões, alegando que os detidos fazem parte de grupos da resistência palestina, como o Hamas e a Jihad Islâmica. Contudo, dados da própria inteligência israelense mostram que apenas um em cada quatro detidos são militantes, sendo os outros três apenas civis.
A estatística foi revelada por uma investigação da revista independente +972 Magazine, em conjunto com o portal Local Call, e o jornal britânico The Guardian. De acordo com “um banco de dados confidencial” das Forças de Defesa Israelenses (IDF, na sigla em inglês), “a grande maioria dos 6.000 palestinos presos [número oferecido pela Suprema Corte de Israel]” desde o início do genocídio, em 7 de outubro de 2023, são civis. Na proporção, apenas 1.450 detidos seriam de fato integrantes dos grupos.
As conclusões foram obtidas a partir dos dados da Diretoria de Inteligência Militar de Israel (Aman, na sigla em hebraico) e da análise de estatísticas oficiais de prisões israelenses divulgadas em processos judiciais.
O banco de dados teria registro de todos os 47.653 palestinos presos por Israel e considerados como militantes da resistência. A investigação independente só conseguiu acesso aos dados sem os nomes e as justificativas de suas prisões, mas foi o suficiente para respaldar denúncias anteriores de grupos de direitos humanos e testemunhos de altos oficiais israelenses.
Segundo organizações civis, como o Centro Al Mezan para os Direitos Humanos, sediado em Gaza, é possível que apenas “um em cada seis ou sete” palestinos presos por Israel tenham alguma ligação com a resistência armada, e não necessariamente às suas alas militares, uma vez que a mera filiação ao grupo já é motivo para que Israel efetue as prisões.
Oficiais superiores das IDF também já admitiram ao jornal israelense Haaretz que “85% a 90%” dos detidos registrados nas imagens de dezenas de homens despidos e algemados não eram membros do Hamas.
“Combatentes ilegais”
Os palestinos detidos em Gaza são primeiramente confinados em centros de detenção militares israelenses e posteriormente levados para as prisões. No âmbito jurídico são classificados como “combatentes ilegais”, termo legal que permite Israel a efetuar prisões “indefinidamente, sem acusação ou julgamento, se houver motivos razoáveis” para acreditar que eles participaram de “atividades hostis contra o Estado de Israel” ou que são “membros de um grupo que participou”.
Apesar da similaridade com os objetivos israelenses atuais, a Lei de Encarceramento de Combatentes Ilegais foi promulgada em 2002, em meio à maior operação de Israel contra a Cisjordânia desde 1967, durante a chamada Segunda Intifada.
Segundo contextualizou a +972 Magazine, a legislação foi elaborada para permitir que Israel prendesse palestinos sem precisar classificá-los como prisioneiros de guerra e ainda pudesse negar seu direito à defesa por até 75 dias. A promulgação da lei foi uma clara tentativa de driblar as determinações das Convenções de Genebra, que estabelecem o Direito Internacional Humanitário.
De acordo com o testemunho de um oficial das IDF, que liderou operações de prisão em massa no campo de refugiados de Khan Younis, a missão da sua unidade era “drenar” o campo e forçar seus moradores a fugirem mais para o sul, usando de detenções em massa nas quais os palestinos eram classificados como “combatentes ilegais”.
“Todos foram levados em longos comboios, com sacos na cabeça, em direção à costa, para Al-Mawasi. [Eles foram levados] para o que chamávamos de centro de inspeção, [onde] as pessoas eram revistadas. Todas as noites, eles carregavam um caminhão aberto com dezenas, centenas de homens, vendados, amarrados, empilhados uns sobre os outros. Todas as noites, um caminhão como este ia para Israel”, disse aos veículos.
O oficial ainda afirmou que o governo de Benjamin Netanyahu não fazia distinção entre “um terrorista que entrou em Israel em 7 de outubro e alguém que trabalhava para a autoridade responsável pela água em Khan Younis”, denunciando prisões arbitrárias, inclusive de crianças e adolescentes.
O Serviço Prisional de Israel (IPS) afirma — sem provas — que “quase todos os combatentes ilegais” detidos após o 7 de outubro, 2.660 no total [segundo dados do grupo israelense de direitos humanos HaMoked], são membros do Hamas ou da Jihad Islâmica.
Além da Lei de Encarceramento de Combatentes Ilegais, outra ferramenta jurídica para o aparato de prisão em massa israelense são as audiências, de apenas alguns minutos de duração, que estendem automaticamente a detenção dos palestinos, baseando-se “em provas secretas” de que eles fazem parte dos grupos armados.
Na análise de Jessica Montell, diretora da HaMoked, Israel usa da legislação, que facilita desaparecimentos forçados “sem qualquer supervisão externa”, para contornar o que seria “o devido processo legal”: julgamentos e acusações específicas, com provas, para cada um dos palestinos acusados.
O IPS não apresenta nenhuma informação sobre membros de outros grupos armados de Gaza, apenas aponta que esta parcela “representa menos de 2% dos detidos”. O órgão também revela que há cerca de 300 palestinos presos em Israel com acusações, diferentemente dos “combatentes ilegais”. O país alega ter provas de que estiveram envolvidos nos ataques do Hamas de 7 de outubro de 2023.
O Centro Al Mezan para os Direitos Humanos, que representa civis palestinos detidos nas prisões israelenses, denuncia “uma campanha sistemática de detenções arbitrárias visando palestinos indiscriminadamente, independentemente de qualquer alegação de delito”.
Já Tal Steiner, diretor do Comitê Público Contra a Tortura em Israel, afirma que se três em cada quatro palestinos detidos não são membros do Hamas ou da Jihad Islâmica “toda justificativa para a detenção é minada”.
Violação de direitos humanos, prisão de doentes e médicos
Para além dos dados específicos, a investigação afirma que, com base em depoimentos de ex-detentos palestinos e soldados israelenses que serviram em centros de detenção, é possível concluir que “Israel sequestrou civis em massa, conscientemente, e os manteve presos por longos períodos em condições precárias”.
Ao longo do conflito, mais de 2.500 palestinos foram libertados sob o reconhecimento israelense de que não eram realmente militantes. Com alguns acordos firmados entre Israel e o Hamas, outros 1.500 classificados como “combatentes ilegais” foram libertados. Todas essas decisões foram tomadas mediante a superlotação das prisões israelenses, uma vez que o número de detentos ultrapassou 21 mil, diante da capacidade para apenas 14.500, segundo o ex-chefe do Shin Bet [Agência de Inteligência de Israel], Ronen Bar.
Os que foram libertados dos centros de segurança israelenses “testemunharam condições extremamente duras, incluindo abusos e torturas diárias”, o que levou dezenas a morrerem sob a custódia de Israel.
Ahmad Muhammad, um homem de 30 anos do campo de refugiados de Khan Younis, marido, pai de três filhos, que trabalhava como barbeiro e nunca teve nenhum tipo de filiação com grupos de resistência, relatou sua experiência de prisão forçada, em janeiro de 2024. “Éramos um grupo aleatório de pessoas. Toda vez que um soldado se aproximava, ele nos xingava, até que um caminhão chegou e fomos jogados lá dentro, empilhados uns sobre os outros, profundamente humilhados”.
Muhammad foi levado para a Prisão de Negev, interrogado sobre a ofensiva do Hamas em 7 de outubro de 2023, e mesmo sem relações ou provas de qualquer tipo de envolvimento, foi mantido preso por um ano sob a condição de “combatente ilegal”. “Passei por dias difíceis na prisão — doença, frio, tortura, humilhação”.
Por meio de um acordo de troca entre o Hamas e Israel em janeiro de 2025, Muhammad foi libertado com outros dois mil palestinos que haviam sido detidos desde 7 de outubro após finalmente terem acesso à defesa e ao procedimento jurídico correto.

Prisioneiros palestinos prestes a serem soltos vestindo roupas das prisões israelenses com uma Estrela de Davi e frase em árabe: “não esqueceremos nem perdoaremos”
Serviço Prisional de Israel
Os relatos de militares israelenses reunidos pela investigação independente também abordaram Sde Teiman, uma base militar no sul de Israel que foi transformada em centro de detenção para palestinos presos em Gaza. Um dos soldados declarou que o complexo foi apelidado de “canil geriátrico” porque todos os detidos eram idosos ou gravemente feridos pela ofensiva israelense, alguns deles tendo sido retirados diretamente de hospitais de Gaza.
“Do Hospital Indonésio [em Beit Lahiya], eles simplesmente tiravam massas de pessoas. Eles traziam homens em cadeiras de rodas, pessoas sem pernas, ou com pernas basicamente inúteis. Lembro-me de um homem, de 75 anos, com cotos gravemente infectados. Sempre presumi que a suposta desculpa para prender pacientes era que talvez tivessem visto os reféns ou algo assim. Todos eles estavam presos na “cela geriátrica”, disse.
Outro soldado disse lembrar da detenção de um homem “na casa dos 70 anos”, de dentro do Hospital Al-Shifa, na Cidade de Gaza. “Ele chegou amarrado a uma maca. Era diabético, com gangrena na perna e incapaz de andar. Não representava perigo para ninguém”, e mesmo assim foi transferido para Sde Teiman.
Outra prisão simbólica de pessoas vulneráveis é a de Fahamiya Al-Khalidi, uma idosa de 82 anos que sofria de alzheimer e tinha dificuldades para andar. A mulher foi detida em 9 de dezembro de 2023 após fugir em meio a ameaças de bombardeio contra seu prédio. Ao refugiar-se em uma escola no bairro de Zeitoun, na Cidade de Gaza, foi levada para o centro de detenção militar de Anatot e transferida para Prisão de Damon, no norte de Israel, onde ficou presa por seis semanas.
Al-Khalidi também foi presa sob a Lei de Combatentes Ilegais e com a justificativa pelas IDF de que teria sido detida “para descartar seu envolvimento com terrorismo”. Posteriormente, o Exército de Israel reconheceu que “em vista de sua condição, a detenção não foi apropriada e foi resultado de um erro de julgamento local e isolado”.
Apesar de serem minorias entre os prisioneiros palestinos, mulheres também foram vítimas da detenção em massa. À investigação, soldados relataram casos de outras palestinas presas, assim como de profissionais de saúde.
IDF dizem que prisioneiros têm acesso à defesa e cuidados médicos
Inicialmente o Exército não negou os dados de que apenas um em cada quatro prisioneiros palestinos são, de fato, militantes de grupos armados. Por outro lado, disseram que a investigação “reflete um mal-entendido sobre os procedimentos de detenção em Israel”.
“As forças das IDF são obrigadas a deter suspeitos em campo, seja com base em informações disponíveis ou devido a suspeitas razoáveis decorrentes das circunstâncias de sua apreensão, e a examinar quem, entre eles, está envolvido em atividades terroristas. As IDF rejeitam categoricamente as alegações de detenções arbitrárias”, afirmaram.
Quanto às alegações de violação de direitos humanos, Israel negou e disse que “os detidos recebem cuidados médicos adequados, que incluem um exame médico na admissão ao centro de detenção e exames médicos regulares para monitorar sua condição”, mesmo diante de tantos relatos contrários.
“Se necessário, os detidos são transferidos para hospitais para tratamento. Os detidos que necessitam de supervisão médica podem ser mantidos juntos para facilitar o acesso e o atendimento pela equipe médica”, escreveram — em clara contradição à situação de detidos que foram presos em completa vulnerabilidade.
As respostam vão na contramão das declarações do ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben Gvir, que afirmou que, uma das prioridades do governo israelense, era “piorar as condições” dos prisioneiros palestinos, fornecendo apenas o “mínimo” de comida.























